Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a complexa questão da responsabilidade civil das empresas que comercializam cigarros perante seus consumidores que, após anos de uso do produto reconhecidamente maléfico, contraem doenças.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Nexo de causalidade. Indústria do tabaco.
Sumário: 1. Algumas palavras introdutórias; 2. Um “passeio” pela responsabilidade civil; 2.1. os elementos da responsabilidade civil (art. 186); 2.1.1. nexo de causalidade; 2.1.2. causalidade alternativa; 3. Responsabilidade civil e indústria do tabaco; 4. O caso concreto; 5. Análise crítica e perspectiva.
1. Algumas palavras introdutórias
Muitos ainda têm o estúpido hábito de fumar. Não me arrependo de utilizar expressão tão ríspida, porque até mesmo aqueles que fumam sabem dos malefícios do seu hábito e a grande maioria desejaria ter forças suficientes para deixar o vício de lado.
De todo modo, o consumo de cigarros de tabaco é uma questão de saúde pública. Quanto mais fumantes, mais se gasta com o tratamento de doenças inevitavelmente daí resultantes.
Paralelamente, é viva na doutrina e jurisprudência a discussão sobre a responsabilidade civil das empresas que comercializam cigarros perante os consumidores que ficam doentes após anos de consumo. Seriam tais fornecedores civilmente responsáveis pelos danos experimentados por quem, anos a fio, consumiu seu produto, reconhecidamente lesivo à saúde?
Neste breve artigo viso justamente trazer alguma contribuição para a compreensão dos aspectos jurídicos envolvidos nesta questão, sem, evidentemente, pretender esgotar o tema.
Uma confissão inicial me parece conveniente: as linhas que passo a escrever se inspiraram em julgamento já considerado histórico por muitos – refiro-me ao Recurso Especial 1.113.804, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), relatado pelo Min. LUÍS FELIPE SALOMÃO – e, assim, o faço ainda no calor dos debates, muito embora simpatize com a matéria desde algum tempo.
O caminho que pretendo trilhar passa inicialmente por considerações bastante simples e resumidas da responsabilidade civil, com maior detalhamento apenas do nexo causal, por sua importância diante do tema concretamente apreciado. Adiante, analisam-se genericamente as premissas criadas face à realidade da indústria do tabaco para, finalmente, cotejar tais informações com o caso concreto.
Insisto, sem querer cansar meu leitor pela repetição, que em momento algum eu quis esgotar o tema, que está longe de uma posição consolidada. O que quero é tão só adicionar minhas impressões pessoais, dando uma noção segura do atual estágio de compreensão do tema. Se obtiver tal resultado, dou-me por satisfeito.
2. Um “passeio” pela responsabilidade civil
A responsabilidade civil tem suas linhas mais genéricas desenhadas pelo arts. 186, 187, 927 e 944, todos do Código Civil (CC).
Assim sendo, se alguém, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito (art. 186); o mesmo se diga daquele titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Consequência inafastável da prática do ato ilícito, desde que gerador de dano, é a obrigação legal de reparação dos prejuízos experimentados pela vítima (art. 927)[1], certo que a respectiva indenização há de ser proporcional à extensão do dano causado pelo ato ilícito (art. 944).[2]
2.1. os elementos da responsabilidade civil (art. 186)
O ato ilícito – primeiro elemento da responsabilidade civil, previsto nos arts. 186 e 187 do CC – é aquele resultante de conduta humana contrária ao ordenamento jurídico, que causa dano a outrem. É contrário ao ato lícito, que se submete à ordem legal e, assim sendo, não ofende direito alheio.
Pode decorrer o ilícito tanto de ato comissivo quanto de ato omissivo, este último verificado sempre que o agente deixa de atuar quando deveria fazê-lo. Daí falar-se na ação ou omissão do agente.
Em segundo lugar, o ilícito deve ter sido praticado com culpa lato sensu, ou seja, tanto dolosamente quanto com culpa stricto sensu, indiferentemente, numa primeira análise, nada obstante o grau da culpa possa ser relevante na fixação da indenização (art. 944, parágrafo único).
O ato ilícito culposo pode ser fruto de negligência, que se verifica sempre que o agente deixa de tomar os cuidados necessários a evitar um dano; ou de imprudência, que acontece quando se abandonam as cautelas normais que deveriam ser observadas[3]. A imperícia – assim sempre compreendi –, embora não prevista no atual Código, permanece como hipótese geradora de responsabilidade civil, ainda que absorvida por alguma das formas expostas.
O elemento subjetivo da responsabilidade civil – culpa stricto sensu ou dolo – pode ser dispensado em determinadas situações, como prevê o art. 927, parágrafo único, do CC. Estes casos são os de responsabilidade civil objetiva, justamente porque prescindem do elemento subjetivo.
O terceiro elemento – o dano ou prejuízo – é “a lesão a um interesse jurídico tutelado – patrimonial ou não –, causado por ação ou omissão do sujeito infrator.”[4]–[5]
À margem das interessantíssimas questões ligadas ao dano, é sensível que o legislador tenha, em consonância com o art. 5º, X, da Constituição, previsto a possibilidade de dano exclusivamente moral, assim considerado aquele que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio, mas sim um bem que integre os direitos da personalidade, causando dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação.[6]
Em quarto e último lugar, é elemento da responsabilidade civil o nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano experimentado pela vítima. Diante da sua relevância e complexidade, opto por analisar este aspecto, separada e detalhadamente, no item seguinte.
2.1.1. nexo de causalidade
O nexo de causalidade é o mais complexo elemento da responsabilidade civil. É aqui, decerto, que a maior parte das controvérsias sobre o tema se desenvolve.
Pode-se dizer, sinteticamente, que o nexo causal é a relação necessária entre a ação ou omissão e o prejuízo experimentado. Se PGSC, sob o efeito de álcool, trafega em alta velocidade em via pública com seu veículo, avança o semáforo vermelho e atropela o pedestre RAE, causando-lhe fraturas múltiplas que o impossibilitam de desempenhar seu trabalho por vários meses, é lógico que a ação daquele – PGSC – foi causadora do prejuízo deste (RAE). Eis o nexo de causalidade.
O exemplo acima fornecido foi propositadamente simples, para que meu paciente leitor pudesse enxergar a noção básica do nexo de causalidade. Mas a riqueza prática traz situações de difícil solução. Imagine-se, na mesma ilustração de que me ocupei agora, que RAE tenha sido conduzido ao hospital por uma ambulância, que fatalmente capota no trajeto, o que ocasiona o falecimento da vítima. Considerando que RAE não estaria na ambulância se não tivesse sofrido o atropelamento, PGSC responde civilmente pelo resultado morte? Ou então, se a mãe da vítima RAE, a senhora IME, cardíaca, ao saber do acidente do filho, sofre infarto fulminante e morre, PGSC responde civilmente pelo resultado morte dela?
Diante da aspereza do assunto, teorias sobre o nexo de causalidade foram, e ainda são, formuladas. Duas se destacam e delas passo a me ocupar diante.
A primeira – conhecida por teoria da equivalência das condições – é aquela pela qual tudo aquilo que concorra para o evento será considerado causa.[7] Tal teoria não se aplica entre nós, no âmbito da responsabilidade civil, porque é extremamente rígida e até mesmo injusta, pois gera a responsabilidade daquele que pouco ou nada concorreu diretamente para determinado evento. Fosse esta teoria aplicada, PGSC responderia em todas as situações que acima descrevi.
A segunda – teoria da causalidade adequada – preconiza que a causa é o antecedente necessário e adequado à produção do resultado danoso, de tal sorte que nem todas as condições serão causas, senão aquela mais apropriada para produzir o evento. A jurisprudência lhe revela inegável simpatia[8], assim como respeitável parcela de doutrina.[9] Adotada esta teoria, PGSC não poderia responder pela morte de RAE, porque o atropelamento foi causador apenas das fraturas e da suposta perda da capacidade laboral da vítima, mas não foi o evento que gerou a capotagem da ambulância, tampouco a fraqueza cardíaca de IME.[10]
Tomo como premissa que o Brasil adota esta teoria da causalidade adequada, que atribui ao julgador elevado grau de discricionariedade na perseguição e análise daquilo que se compreende por causa.[11]
2.1.2. causalidade alternativa
A prova do nexo causal, por tudo que já pude expor acima, é complexa. Ausente o nexo causal – ou pelo menos a sua prova, pois isto é o que interessa ao processo –, conclui-se invariavelmente pela irresponsabilidade do agente.
Neste contexto, tem-se discutido a aplicação da chamada teoria da causalidade alternativa, originada na discussão sobre o tratamento a ser dado à causalidade em hipóteses em que se mostra impossível a determinação precisa do causador do dano, malgrado seja possível identificar o grupo de cuja atuação este adveio.[12]
A situação é diferente daquela em que todos participantes concorrem com o resultado (causalidade concorrente), porque aqui não se sabe qual agente foi o responsável pela lesão, embora seja certo que nem todos contribuíram para a verificação do dano.
3. Responsabilidade civil e indústria do tabaco
Alguns entraves jurídicos se colocam àqueles que buscam indenização da indústria do tabaco em razão de doenças supostamente adquiridas pelo consumo de cigarros.
É difícil, em primeiro lugar e principalmente, comprovar o nexo de causalidade entre o fumo e as doenças da pessoa que fuma, por diversos motivos. O mais relevante de todos eles se dá em razão das diversas concausas presentes. Tais doenças não têm causa determinante única, certo que existem pessoas que fumaram a vida toda e nunca tiveram problemas[13].
Considerando que nosso ordenamento jurídico fez uma opção pela teoria da causalidade adequada, terá o julgador grande espaço para considerar se o fumo foi, ou não, causador de eventuais moléstias. Não se prescindiria, então, de uma prova convincente de que as doenças estão efetivamente ligadas ao consumo de tabaco, sem o que não se fala em indenização. Esta demonstração, porém, é de complicada realização, por razões que extrapolam a própria ciência jurídica e alcançam o estudo médico.
Deve-se lembrar, em segundo lugar, que o fumante – e suposta vítima – deve comprovar que consumia os cigarros daquele determinado fabricante, a quem se atribuiu a qualidade de réu no respectivo processo. Sem tal prova, quebra-se um dos elementos da responsabilidade civil, isto é, a ação (culposa ou não, a depender do regime jurídico do caso concreto).
Todavia, caso entre nós a teoria da causalidade alternativa (cf. item 2.1.2 supra) venha a prosperar, não se descarta que brevemente haverá ações de indenização contra os fabricantes de cigarros embasadas nesta tese, com o que se supera a barreira da complexa prova do nexo de causalidade entre certo fabricante e a vítima do tabaco. Em nossa doutrina, vale repetir o destaque, a inexistência do nexo causal está diretamente ligada à irresponsabilidade. Todavia, comovidos pelas vítimas desamparadas pelo instituto, os juristas brasileiros têm considerado a possibilidade de aplicação da causalidade alternativa[14].
Outra dificuldade, igualmente, se impõe às supostas vítimas: é que todos sabem dos possíveis riscos do produto e nem por isso deixaram de consumi-lo[15], sem olvidar de que as empresas do ramo atuam em atividade absolutamente lícita (produção e comercialização do cigarro), o que – de novo – rompe o nexo de causalidade, como se lê no art. 188 do CC.
E se a comoção for chamada a atuar aqui também, deve-se acrescentar que estas empresas são geradoras de muitos empregos e pagam pesados tributos, o que traz à tona sua importância social, sem que com isso eu pretenda justificar o consumo do cigarro[16].
Ademais, a propaganda que incentiva o consumo do tabaco, ao que parece, não é irresistível, não pelo menos atualmente.
Neste contexto, é preciso lembrar que a Constituição (art. 220, § 4º) não proíbe, mas apenas cria restrições à publicidade do tabaco, como se lê na Lei 9.294/96, alterada pelas Leis 10.167/2000 e 10.702/2003, entre outras. As imposições legais têm justamente a finalidade de esclarecer à população dos já conhecidos males que causa o cigarro[17] Se a publicidade se deu dentro dos parâmetros legais, fica logicamente afastado qualquer argumentos de ilicitude.
4. O caso concreto
Com tem sido noticiado com alarde, o dia 27 de abril de 2010 será um marco em termos da responsabilidade civil decorrente do consumo de tabaco. Nesta data, a 4ª Turma do STJ afastou, por unanimidade, o dever da indústria do cigarro de indenizar fumantes que desenvolveram câncer de pulmão.
Como já era esperado, entendeu-se que não há nexo de causalidade entre o uso contínuo de cigarro e a doença, pois o câncer tem várias outras causas, certo que não é possível determinar que foi exatamente o cigarro que provocou o mal. O nexo causal, destacou-se no julgamento, não pode ser presumido.
É possível concluir, portanto, que o acórdão se apegou à teoria da causalidade adequada e os Ministros julgadores, dentro de sua discricionariedade legalmente conferida, recusaram no caso concreto a relação entre a doença da vítima e o consumo do tabaco.
Afastou-se, de igual modo, as afirmações de que a publicidade aliciou a vítima, justamente sob os argumentos que lancei acima acerca da Lei 9.294/96, alterada pelas Leis 10.167/2000 e 10.702/2003, entre outras.
5. Análise crítica e perspectiva
O julgamento narrado traz um resultado até certo ponto esperado, pelo que se nota do atual estágio de compreensão da matéria. Salvo uma ou outra voz contrária, inclusive na jurisprudência, tem se consolidado opinião convergente com tudo que já pude articular neste escrito, o que encontra repouso na lei.
Entre tantos bons argumentos, quero destacar que, em primeiro lugar, à luz do ordenamento brasileiro, não há ato ilícito na comercialização de cigarros. Bem ao contrário, a atividade é lícita e encontra inúmeras restrições legais. Trata-se de verdadeiro exercício regular de um direito.
De todo modo, não acredito que a discussão possa ser considerada encerrada. É que a questão da licitude pode ser revisitada desde que se prove – e tal atividade é de extrema dificuldade – que a propaganda do cigarro, a despeito das restrições legais, é de fato irresistível.
De outro lado, no que se refere ao nexo de causalidade, estou pouco convencido dos argumentos lançados pela doutrina e, mais recentemente, pelo STJ, de que não é possível atribuir a doença ao consumo do tabaco. Outras, realmente, podem ser as causas do câncer, de doenças pulmonares e circulatórias, mas a possibilidade de que tenham sido causadas pelo consumo do tabaco é elevadíssima. A discricionariedade do julgador, talvez, devesse pender a favor das supostas vítimas, especialmente se considerar que elas são consumidoras sob o manto de proteção da Lei 8.078/90.
Finalmente – e ainda concentrado na causa –, não será o Direito que responderá tal pergunta, mas sim a Medicina e suas técnicas. Se hoje não é possível definir com precisão se a causa é o cigarro, talvez amanhã o seja, e toda jurisprudência que deve se criar em torno do caso concreto analisado será revista.
Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Professor de Direito Civil e Direito Processual Civil na Faculdade de Direito de Itu (FADITU), no Curso Robortella, na Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA/SP) e na Escola Paulista de Direito (EPD), entre outros. Coordenador do curso de pós-graduação “lato sensu” de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito de Itu (FADITU). Autor de inúmeros artigos e capítulos de livros na área jurídica. Advogado e consultor jurídico em São Paulo.
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