Resumo: Este trabalho propõe-se a estudar o tema da inseminação artificial homóloga post mortem, em análise aos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade. O objetivo é verificar a (im)possibilidade de tal técnica frente aos preceitos constitucionais mencionados e à legislação brasileira.
Palavras-chave: Dignidade da Pessoa Humana – Autonomia da Vontade – Fertilização post mortem
Sumário: 1. Introdução. 2. Direitos humanos e princípios constitucionais. 2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana. .2.2. Princípio da autonomia da vontade. 3. Reprodução humana assistida. 3.1. Métodos de reprodução humana artificial. 3.2. Fertilização artificial post mortem. 4. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Com os avanços da biotecnologia, principalmente com relação às técnicas de reprodução humana assistida, presentes desde o século passado, principalmente após a segunda metade do sec. XX, iniciou-se importante discussão acerca dos impactos trazidos por tais técnicas à sociedade e, por conseqüência, ao direito.
A falta de amparo legislativo impulsionou a doutrina a debruçar-se sobre o tema, analisando-o sobre diversas perspectivas – ética, jurídica, filosófica, científica, médica, tecnológica – buscando desnudar os inúmeros efeitos jurídicos decorrentes da utilização da biotecnologia na reprodução humana assistida.
A estas indagações emergem mais questionamentos, que soluções prontas e acabadas. Todavia, o respeito ao ser humano, dentro de seu viés axiológico, acaba por traduzir o fundamento ético às indagações suscitadas. O reconhecimento da dignidade do ser humano, esculpido na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e, posteriormente, tendo recebido alcance na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO/2005, trazem possibilidades de respostas às questões existentes. Não se buscando, necessariamente, o certo ou o errado, mas sim a solução que melhor atende ao valor da dignidade do ser humano.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988, como norma matriz de todo ordenamento jurídico brasileiro, elencou em seu texto normativo a dignidade da pessoa humana como um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, dando-lhe a qualidade de norma embasadora de toda ordem constitucional e definidora de direitos e garantias fundamentais. Todavia, não menos importante, o princípio da autonomia da vontade, com análise coerente aos princípios da bioética e do Direito, merece papel de destaque quando objetivamos estudar a inseminação artificial homóloga post mortem.
Com os avanços tecnológicos na área da reprodução humana assistida a hermenêutica constitucional aparece como instrumento capaz de ajudar na realização da efetiva concretização destas normas basilares do ordenamento jurídico pátrio.
A atual realidade, requer um maior entrosamento entre os vários ramos das ciências, estabelecendo um estudo interdisciplinar, o qual trabalha na intenção da formação da síntese comum entre os conhecimentos.
Desta forma, não apenas conhecimentos jurídicos, mas também requer do operador do direito uma troca entre os entendimentos das ciências biológicas, genéticas, médicas, sociais, psicológicas, entre outras, as quais afetam de forma preponderante a análise de tais práticas pela sociedade.
Deste modo é possível uma melhor compreensão do texto legal, a fim de integrar a Constituição e o Código Civil à realidade, buscando a concretização, realização e aplicação das normas jurídicas, bem como a efetivação dos princípios fundamentais nela contidos.
Para tanto, para que se possa garantir a efetividade da Constituição Federal de 1988 frente aos avanços tecnológicos na área da reprodução humana assistida, é necessário que a eficácia formal trazida pelo texto constitucional dê lugar, através de uma hermenêutica interdisciplinar, a uma eficácia material de concretização dos princípios constitucionais.
Por isso, o presente estudo visa analisar, de forma sistemática, o disposto no art. 1.597, inciso III, do Código Civil brasileiro, o qual dispõe acerca da inseminação artificial homóloga post mortem, avaliando sua real possibilidade frente aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, esculpidos na Carta Maior, sem, contudo, deixarmos de voltar o olhar aos Direito Humanos, da Declaração Universal dos Direito Humanos das Nações Unidas, também vislumbrados na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO/2005.
Para tanto, é indispensável informar que o presente estudo não abarcará qualquer questão religiosa/filosófica ou divergências existentes entre o início e o fim da vida, mas tratará do tema sob o viés jurídico/bioético. Isto posto, vale fazer a referência de que os princípios da bioética estão permeados na própria temática em questão, não podendo ser deixados à margem do estudo. Todavia, não se realizará uma análise profunda das questões bioéticas, mas tão somente como pano de fundo à compreensão dos princípios constitucionais.
Cabe esclarecer, ainda, que não se pretende estabelecer um posicionamento em favor ou desfavor da prática, visto que, para haver posicionamento a ser defendido, torna-se necessário o aprofundamento do estudo. Todavia, frente a assunto extremamente complexo, é necessário nos debruçarmos sobre a questão, em razão da palpitação e do clamor da tutela jurídica.
2. DIREITOS HUMANOS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
O último século foi marcado por descobertas e inovações científicas sem precedentes na História. Época, esta, em que os avanços científicos e tecnológicos desenvolvidos foram voltados à saúde humana, quando podemos fazer referência aos fármacos, mais pontuais e eficazes, às diversas terapias, aparelhos e procedimentos médicos, tornando possível o combate de doenças, o alívio da dor e o aumento da expectativa de vida.[1]
Neste mesmo sentido, o mapeamento do genoma humano e o desenvolvimento da engenharia genética propiciaram, entre outros avanços, o estudo e o aprimoramento da chamada terapia-gênica, procedimento que tem por objetivo curar graves moléstias.[2]
Assim, com o crescimento e com o avanço das técnicas médicas, o direito, compreendido como fenômeno social, cultural e histórico, não pode se manter à margem dos problemas práticos – morais e políticos – que afetam a sociedade.[3] Deve, sim, buscar responder ao andar acelerado das ciências da saúde e das biotecnologias e trazer mais segurança jurídica às novas palpitações que batem às portas do judiciário.
Recebendo a influencia das discussões iniciadas no campo da bioética, o direito vem refletindo acerca do estabelecimento de limites jurídicos às práticas biomédicas e dando início à regulamentação, seja no interior dos ordenamentos jurídicos nacionais, na forma de legislação sobre temas específicos; seja no plano internacional, por meio de declarações que incorporam valores partilhados por diferentes culturas e sociedades nacionais.
Todavia, em razão das dificuldades que permeiam a normatização jurídica quanto à reprodução humana, necessário se faz buscar complementaridade na bioética.[4]
O objeto da bioética é justamente trabalhar com os critérios baseados na ética, nos valores e nos princípios, os mais genéricos possíveis, as quais servem de parâmetro para orientar na elaboração de legislações nacionais e declarações internacionais específicas e nas tomadas de decisão nos casos concretos. Assim, é indispensável pensar o direito como estreitamente vinculado ao âmbito da ética.
A preocupação com o rumo de pesquisas, com o uso dos novos conhecimentos e com seus efeitos não apenas sobre os seres humanos atuais, mas sobre toda a espécie humana e as futuras gerações, encontra respaldo na categoria dos direitos humanos universalizáveis[5], na medida em que esta vem elaborada em torno da idéia de necessidade de proteção e promoção daqueles valores e direitos considerados mais básicos para a vida digna dos seres humanos.
Desta maneira, ocorrendo a revalorização da idéia de direitos humanos, quando em momento histórico posicionado após a Segunda Guerra Mundial[6], no ano de 1948 foi elabora a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que iria influenciar intensamente a formulação de posteriores declarações de direitos.
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, esta categoria de direitos atinge uma fase de afirmação que é, no dizer de Norberto Bobbio “simultaneamente de universalização e de positivação”.[7] De fato, a Declaração tem a pretensão de universalidade, a partir da afirmação de que são direitos inalienáveis e inerentes a todos os seres humanos.[8] É, ainda, uma fase de positivação no sentido de que não se restringe somente à sua proclamação enquanto ideais, mas passam a ser reconhecidos e garantidos pelos ordenamentos jurídicos nacionais.
Todavia, cabe aqui ressaltar o caráter benéfico do processo de positivação da categoria dos direitos humanos, quando se evita que resulte em mero proclamar formal de direitos universais e, em um reducionismo epistemológico do tema à sua dimensão legalista.[9]
É possível afirmar que os direitos humanos tem como principal característica o fato de referirem-se às necessidades mais básicas e fundamentais dos seres humanos, consistindo-se, portanto, em direitos desejáveis, importantes ou bons para o desenvolvimento da vida humana.[10]
Assim, enquanto estamos diante de questões que envolvem a biotecnologia e os avanços nas áreas médicas, é de suma importância perceber a dimensão que representa os direitos humanos, sendo a expressão de complementaridade entre ordens normativas da ética e do direito.
Na análise e resoluções das questões éticas e jurídicas é necessária a lembrança da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, de 19 de outubro de 2005[11], a qual o Brasil é signatário. Tal declaração proclama princípios gerais, baseados em valores comuns, objetiva orientar os avanços científicos, o desenvolvimento tecnológico e a transformação social, servindo de guia aos Estados na elaboração de legislações e políticas públicas, bem como aos indivíduos, grupos, comunidades e instituições.
Referido texto consagra alguns princípios, como: dignidade e direitos humanos; autonomia e responsabilidade individual; consentimento; respeito da vulnerabilidade humana e da integridade pessoal; privacidade e confidencialidade; igualdade, justiça e equidade; não-discriminação e não-estigmatização; respeito da diversidade cultural e do pluralismo; solidariedade e cooperação; responsabilidade social e saúde; aproveitamento partilhado dos benefícios; proteção das futuras gerações; e proteção do meio-ambiente, da biosfera e da biodiversidade.
Em suas Disposições Finais, no art. 28, a Declaração de 2005 prevê a salvaguarda dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da dignidade humana com relação à interpretação. Entretanto, deve-se ter claro que os princípios proclamados na Declaração, assim como os direitos humanos aclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, possuem certo grau de abertura com relação à determinação de conteúdos. Os contextos culturais particulares, assim como as peculiares circunstâncias presentes em casos concretos, podem influir significativamente na definição de um conteúdo específico em si, sem implicar a negação da idéia essencial que dá forma a tais valores.
Mediante a leitura e análise das declarações internacionais referidas, chega-se ao entendimento de que a esfera jurídica necessita se socorrer nos princípios éticos e morais, sobretudo utilizando-se da bioética, na perspectiva de solucionar os futuros conflitos e as novas demandas dos tribunais.
O estudo deve-se pautar nas reflexões e relações interdisciplinares, que visam sobretudo a ética, sem contudo deixar de lado a moral, a cultura, o direito, a história, o ambiente e a sociedade. Desta forma, ciente de que os direitos humanos são um construído e não um dado, os mesmos convergem à idéia da dignidade da pessoa humana. Tal percepção tem caráter essencial na perspectiva emancipatória dos mecanismos das instâncias jurídicas, uma vez que não são, em si mesmos, fins que se fecham e sim possibilidades que se abrem para a concretização de direitos, centrados na igualdade, na liberdade, na justiça e no pluralismo.
No princípio-fundamento da dignidade da pessoa humana[12] – que será na seqüência analisado – reside o cerne dos direitos materialmente fundamentais já que todos estes respondem, em maior ou menor grau, à concretização desta.
2.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Expostas as linhas anteriores acerca da teoria geral dos direitos humanos, nota-se que no campo doutrinário florescem mais dúvidas do que pontos finais.
Por mais distintos que os enunciados dos direitos humanos e fundamentais se apresentem, estes ainda guardam uma relação entre si e conseqüentemente com os princípios fundantes do Estado de Direito. Pontua Ingo Sarlet ao dizer:
“[…] A dignidade vem sendo considerada (pelo menos para muitos e mesmo não exclusivamente) qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer ser humano e certos de que a destruição de um implicaria a destruição de outro, é que o respeito e a proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as pessoas) constituem-se (ou, ao menos, assim o deveriam) em meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.”[13]
Os constituintes da carta de 1988 se apoiaram em bases universais. Assim o princípio da dignidade da pessoa humana possui vida recente na história da formação jurídica brasileira vez que o texto constitucional de 1988 foi o primeiro a recepcionar sua positivação expressa.
Como bem destaca Jorge Miranda, “os direitos e garantias fundamentais podem, com efeito, ainda que de modo e intensidade variáveis, ser conduzidos de alguma forma à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas”.[14] De tal modo, todos os direitos fundamentais guardam, com modos de intensidade diversos, reflexos do princípio da dignidade da pessoa humana. Segundo José Afonso da Silva este princípio atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais.[15]
Neste diapasão, delineada a relação intrínseca entre os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana, torna-se necessário destrinchá-la já que o conteúdo de todos os direitos fundamentais encontra em maior ou menor grau, nela sua vertente.
Compreende-se de forma clara o surgimento do princípio da dignidade da pessoa humana através do desenvolvimento do pensamento jusnaturalista[16], nos séc. XVII e XVIII. Assim, especialmente por meio das idéias de Samuel Pufendorf[17] e Immanuel Kant, o princípio da dignidade da pessoa humana é difundido a partir de uma perspectiva racional e laica.
Para Kant, o homem não pode ser utilizado como meio para obter determinados fins, pois, possui valor intrínseco – sua dignidade – que não admite ser substituído por quaisquer equivalentes. Assim, afirma: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio”.[18]
O período da segunda grande guerra, suas causas e conseqüências, representaram o rompimento fático[19] com relação aos direitos humanos.[20] Destarte, durante o pós-guerra começa a se delinear uma perspectiva de reconstrução destes. Neste sentido expõe Fábio Konder Comparato:
“Após três lustros de massacres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimento do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da história, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio a aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos”.[21]
É esta conjuntura que fornece o suporte fático para que o Direito Internacional esboce um sistema normativo de proteção aos direitos humanos e, por conseguinte, sedimenta o princípio da dignidade da pessoa humana.
Reflexa e concomitantemente, nos sistemas constitucionais, surgem os textos dotados de elevada carga axiológica, trazendo, na centralidade e fundamentalidade, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Carmen Lúcia Antunes Rocha apud Melina Fachin nos traça a idéia do princípio
“a dignidade é a idéia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoa ou social. Não há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência um direito pré-estatal […] Existe para o homem, como fim em si mesmo que é, quer dizer, como sujeito de dignidade, de razão digna e supremamente posta acima de todos os bens e coisas, inclusive o próprio Estado”.[22]
Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana avulta no ordenamento jurídico constitucional a partir da sua centralidade que privilegia a posição do sujeito concreto e suas necessidades, passando a incidir de forma especial e diversa sobre os demais princípios constitucionais.
Para demonstrar o caráter material do princípio da dignidade da pessoa humana, Ingo Sarlet conceitua como:
“Qualidade intrínseca de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direito e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra o todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.[23]
A partir dessas premissas é impraticável reduzir a uma fórmula abstrata e genérica aquilo que constitui o conteúdo da dignidade da pessoa humana. Assim, sendo, as reflexões acerca da dignidade devem ser miradas in casu[24] sob pena de recair em mero abstracionismo que inviabilize sua aplicação prática.
Nesta busca, contata-se que a formulação kantiana da liberdade individual (autodeterminação) ainda ocupa o conteúdo objetivo do princípio da dignidade da pessoa humana, todavia, não se restringe a ele. Conforme aponta Ana Paula de Barcellos apud Melina Fachin:
“Interessantemente, e nada obstante os vários retrocessos históricos, a concepção kantiana de homem continua a valer como axioma no mundo ocidental, ainda que a ela se tenham agregado novas preocupações, como a tutela coletiva dos interesses individuais e a verificação da existência de condições materiais indispensáveis para o exercício da liberdade”.[25]
Maria Cecília Bodin de Moraes, neste sentido, ancorou a essência material da dignidade da pessoa humana em quatro desdobramentos:
“(i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; (ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica que é titular; (iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; (iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado”.[26]
A dignidade da pessoa humana sustenta, agrega e encentra o sistema constitucional ao redor de seu conteúdo fundamental: direito à igualdade material, à integridade psicofísica, à liberdade e à solidariedade.
E, justamente pela busca da efetividade, que o princípio da dignidade da pessoa humana atua de modo bifronte: na garantia de um espaço de autonomia individual (aquilo que Kant chamara outrora de autodeterminação) e também no imperativo do atendimento das necessidades humanas essenciais, envolvendo aí a ação Estatal ou atuação coletiva.
Em suma, estas eram as noções acerca da dignidade da pessoa humana a serem expostas no presente estudo, visto que não é possível apresentar, com a profundidade necessária, as discussões que envolvem todos os diversos aspectos do princípio da dignidade da pessoa humana, que aqui deixaram de ser examinados.
2.2 PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE
O Princípio do Respeito à Pessoa, como também é denominado o princípio da autonomia da vontade, surge dentro da tradição liberal do pensamento político e jurídico. Todavia, também deita suas raízes no pensamento kantiano, quando o indivíduo é um sujeito de direitos, garantido o exercício de sua autonomia.
Tal princípio é ponto central na Bioética, vez que possui algumas características que o compõe, tais como a privacidade e a veracidade.
A utilização deste conceito básico assume diferentes perspectivas, desde as mais individualista até as que inserem o indivíduo no grupo social.
Uma das bases teóricas utilizadas para o princípio da Autonomia é o pensamento de Johan Stuart Mill apud Goldim, no qual propôs que “sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano”.[27]
Kant, em sua obra Fundamentos da Metafísica dos Costumes, propôs o Imperativo Categórico. De acordo com esta proposta a autonomia não é incondicional, mas passa por um critério de universalidade.
“A autonomia da vontade é a constituição da vontade, pela qual ela é para si mesma uma lei – independentemente de como forem constituídos os objetos do querer. O princípio da autonomia é, pois, não escolher de outro modo, mas sim deste: que as máximas da escolha, no próprio querer, sejam ao mesmo tempo incluídas como lei universal”.[28]
O Relatório Belmont[29], que estabeleceu às bases para a adequação ética da pesquisa nos Estados Unidos, denominava este princípio como Princípio do Respeito às Pessoas. Nesta perspectiva propunha que a autonomia
“incorpora, pelo menos, duas convicções éticas: a primeira que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos, e a segunda, que as pessoas com autonomia diminuída devem ser protegidas. Desta forma, divide-se em duas exigências morais separadas: a exigência do reconhecimento da autonomia e a exigência de proteger aqueles com autonomia reduzida.”[30]
Diante de tal perspectiva, uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir na direção desta deliberação. Assim, respeitar a autonomia é valorizar a consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras pessoas.
Demonstrar falta de respeito para com um agente autônomo é desconsiderar seus julgamentos, negar ao indivíduo a liberdade de agir com base em seus julgamentos, ou omitir informações necessárias para que possa ser feito um julgamento, quando não há razões convincentes para fazer isto.
José Roberto Goldim, tratando do princípio da autonomia nos traz a referência de Beauchamp e Childress, os quais admitem que a “autonomia tem diferentes significados, tão diversos como auto-determinação, direito de liberdade, privacidade, escolha individual, livre vontade, comportamento gerado pelo próprio indivíduo e ser propriamente uma pessoa”.[31]
Desta forma, o conceito de Autonomia segue na vertente de que duas condições são essenciais: liberdade (independência do controle de influências[32]) e ação (capacidade de ação intencional).
O Princípio da Autonomia, assim, não pode ser entendido apenas como sendo a autodeterminação de um individuo. Esta é apenas uma de suas várias possíveis leituras. A inclusão do outro na questão trouxe, desde o pensamento de Kant, uma nova perspectiva do princípio que alia a ação individual com o componente social.[33] Desta perspectiva, surge a responsabilidade pelo respeito à pessoa, que talvez seja a melhor denominação para este princípio.
Destarte, em que pese o referido princípio remeter-se à Bioética, há um estreito relacionamento com o Direito Constitucional vez que encontra sede na carta federativa, respectivamente: no princípio da dignidade da pessoa humana, no princípio do bem-estar e no princípio da liberdade[34], como objetivos a serem atingidos pelo Estado.
No que tange seu relacionamento ao princípio da dignidade da pessoa humana, este refere-se ao respeito à autonomia do ser, enquanto valorização.
Quanto ao bem-estar, há a proteção constitucional da vida, quando esta se dirige a cuidar de elementos tanto materiais (físicos e psíquicos), quanto imateriais (espirituais) que integram o todo chamado ser humano.
Em conseqüência, podemos aguardar do legislador constituinte uma tutela da vida humana em vários aspectos, cuja consideração parece ser unânime na doutrina brasileira.[35]
Neste sentido, observamos de um lado o resguardo à vida, entendida como sinônimo de integridade física; de outro, a proteção da vida a partir do amparo do que poderíamos chamar as manifestações vitais do ser humano e, ainda, o resguardo das condições que, em conjunto, dariam lugar à vida digna.[36]
No que se refere à liberdade assegurada pela Constituição Federal, como parte do princípio da Autonomia, não se tem a pretensão de realizar um estudo detalhado sobre os mecanismos instrumentais por meio dos quais o constituinte a hospeda no sistema normativo maior. Mas, tão somente, elucidar, através de uma visão panorâmica, a capacidade humana de autodeterminação.
Nossa Constituição é pródiga no elenco das liberdades, é um monitoramento sistemático e amplo. O homem brasileiro nasce e sente a incidência de todo o conjunto normativo. Assim, pode-se analisar seqüencialmente, por exemplo, que o homem pensa e expressa seus juízos de valor sobre o mundo, e a Carta Magna garante sua liberdade de expressão do pensamento (art. 5, inciso IV); o homem cresce a aprende outras formas de manifestar seu raciocínio, pois, então, a Constituição Federal garante o direito de expressar-se por meio das artes, da sublimação de seu espírito (art. 5, inciso IX); o homem se translada de um lugar a outro, consagra-se sua liberdade de locomoção (art. 5, inciso XV); o homem procura coletivizar sua opinião, e o Estado Fundamental garante sua liberdade de reunião e de associação (art. 5, incisos XVI, XVII e XVIII). Desta forma, perante cada manifestação do ser humano vivo, há um dispositivo constitucional que resguarde o exercício de seu direito.
De todo o exposto, é necessário reafirmar que o Direito Constitucional serve como eixo condutor, do ponto de vista jurídico, às soluções dos problemas enfrentados pela Bioética. No momento em que, os avanços biotecnológicos se aceleram, é necessário esclarecer que a Bioética, assim como o Direito Constitucional, enfrenta as mesmas dúvidas e incertezas e o trabalho de interpenetração permanente, ainda que respeitando os limites de cada um, pode conduzir mais facilmente à solução de tais desafios.
3. REPRODUÇÃO HUMANA ASSITIDA
A possibilidade de se recorrer a métodos artificiais, ou melhor, não naturais de concepção, para realização do desejo de concretização do projeto parental está intimamente relacionado com o conceito de família trazido pela Carta Maior brasileira, que a revela como sendo o centro de realização do indivíduo.
Neste sentido, nos ensina Maria Cláudia Crespo Brauner que
“o desejo de ter filhos constitui um objetivo a atingir para a maioria das pessoas que chegam a idade adulta. Mas o momento de concebê-los e o número de filhos que pretendem ter é definido e programado antecipadamente pelo casal, no intuito de proporcionar melhores condições de vida a uma prole reduzida e de possibilitar a realização pessoal e profissional de cada um dos cônjuges”.[37]
A possibilidade de recorrer-se às técnicas de reprodução assistidas é, sem dúvida, um conforto àqueles que vivem sua esterilidade como defeito físico, ou também, como causa de alienação ou exclusão social.
O Código Civil de 2002, no seu art. 1.597[38], enumera as hipóteses de presunção de filiação para aqueles concebidos na constância do casamento[39], tendo os incisos I e II, praticamente o mesmo texto do Código Civil anterior. Inovação trouxe o legislador ao inserir ao sistema de presunção pater is est os incisos III, IV e V, que tratam da reprodução humana assistida, tanto homóloga (quando o material genético provem do casal – pai e mãe) como heteróloga (quando se utiliza material genético de terceiro, estranho ao projeto parental).
O texto do Código civilista foi alvo de críticas por não disciplinar, de forma mais detalhada, tema tão relevante da ordem civil e que cada vez mais faz parte da vida cotidiana de pessoas que tenham problemas para gerar naturalmente um filho.
Todavia, o texto aberto, indeterminado e genérico trazido pelo art. 1.597, inc. III a V, CC/2002, foi opção do legislador, o qual remeteu às vias ordinárias a tarefa de detalhamento do texto de alta especificidade técnica.
Assim, o ordenamento jurídico permanece frente a um vazio legislativo[40] no que concerne a disciplina legal das técnicas de reprodução humana assistida, remetendo às Resoluções do Conselho Federal de Medicina as diretrizes para análise da presente questão.
3.1 MÉTODOS DE REPRODUÇÃO HUMANA ARTIFICIAL
A medicina, através das técnicas de reprodução humana artificial, traz métodos inovadores a fim de possibilitar, àqueles que encontram dificuldades para procriar, a realização do tão esperado projeto parental.
A incapacidade para a procriação pode derivar de diversos fatores – fisiológicos, psicológicos, médicos, biológicos – vindo essas técnicas de reprodução, cujo objetivo é a gestação, substituindo ou facilitando alguma etapa que seja deficiente no processo natural, trazer esperança àqueles que sonham com a filiação.
Atualmente, com os avanços biotecnológicos nesta área, as técnicas de reprodução humana assistidas estão cada vez mais próximas do cidadão comum, não podendo mais ser consideradas uma prática de poucos. O próprio texto constitucional (art. 226, § 7º, CF[41]), acompanhado da legislação especial (Lei n. 9.263/1996 – Lei do Planejamento Familiar), vem estabelecer normas para o acesso às técnicas de reprodução humana assistida buscando possibilitar a qualquer cidadão o livre acesso ao planejamento familiar.
Desta forma, todas as pessoas têm direito ao planejamento familiar, o qual, neste contexto, deve ser entendido como a possibilidade de se buscar tanto métodos conceptivos como contraceptivos, estabelecendo um “conjunto de ações de regulação de fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (art. 2º, Lei n. 9.263/96).[42]
Dentre os métodos artificiais de reprodução humana, os mais usuais são: a inseminação artificial e a fertilização in vitro.
A inseminação artificial, segundo Jussara Maria Leal de Meirelles pode ser definida como “[…] a técnica científica mais antiga e consiste, basicamente, na introdução do esperma na cavidade uterina ou no canal cervical, por meio de uma cânula, no período em que o óvulo se encontra suficientemente maduro para ser fecundado”.[43] De outra sorte, a fertilização in vitro, ainda segundo os ensinamentos da ilustre Autora, “[…] consiste, basicamente, em se retirar um ou vários óvulos de uma mulher, fecundá-los em laboratório e, após algumas horas ou em até dois dias, realizar a transferência ao útero ou às trompas de Falópio”.[44]
Todavia, não se pode deixar de mencionar a possibilidade da técnica de reprodução humana assistida ser empregada mesmo em situações nas quais a gestação se dará por substituição, quando, em razão da existência de algum problema médico, for contra-indicado à doadora genética passar por uma gestação.
Referida possibilidade encontra-se prevista na Resolução n. 1.358, de 1.992, do Conselho Federal de Medicina, a qual estabelece alguns requisitos para utilização da aludida técnica: (i) a doação temporária do útero deverá ser gratuita, sendo vedado qualquer fim lucrativo ou comercial, e (ii) as doadoras, em regra, devem ser parentes da doadora genética até 2º grau.[45]
Atualmente, com o progresso da biotecnologia com relação às reproduções humanas assistidas, torna-se possível armazenar óvulos, sêmens ou até mesmo embriões excedentários por longos períodos, através das modernas técnicas de criopreservação.
Assim, a criopreservação permite que o material genético permaneça armazenado a temperaturas extremamente baixas (em torno de -196º C), possibilitando sua utilização tempos depois de colhido o sêmen ou óvulo.
Desta maneira, considerando as diversas possibilidades oferecidas em matéria de reprodução assistida, pode-se buscar a realização e a concretização do desejo da filiação. Todavia, há de salientar-se que existem envolvimentos éticos e riscos na utilização dos procedimentos das técnicas de reprodução artificial humana, bem como não há uma legislação específica que organize ou estabeleça critérios e responsabilidades pelos métodos empregados.
Assim, em matéria de legislação pontual quanto às reproduções artificiais, o Brasil vive em um vazio normativo. No momento atual contamos, apenas, com o amparo das disposições da Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina.[46]
Todavia, o Código Civil, inovando na ordem jurídica, traz, no seu art. 1.597, inciso III, a possibilidade da inseminação artificial homóloga ocorrer após o falecimento do marido. Tal dispositivo trata da existência de gametas masculinos criopreservados e da possibilidade de sua utilização pela mulher do doador após o seu falecimento.
Referida técnica será abordada com maior ênfase, sob a reflexão dos princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana e da Autonomia da Vontade.
3.2 FERTILIZAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM
A fertilização artificial post mortem torna-se possível em razão das modernas técnicas de criopreservação do material genético[47] do marido ou do companheiro, possibilitando a esposa ou companheira, mesmo após o falecimento daquele, utilizar o material genético, vindo a gerar um filho de pai pré-moriente.
Todavia, tal hipótese é alvo de constantes embates doutrinários acerca de sua aplicação.
A doutrina jurídica divide-se em duas correntes com relação à referida temática: àqueles que defendem a aplicação do inciso III, do art. 1.597, do Código Civil, entendendo ser plenamente possível a prática da inseminação artificial homologa post mortem e a outra corrente que entende não ser possível tal prática.
No que se trata da corrente que não verifica a possibilidade de tal prática, o ilustre jurista, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, rechaça a inseminação artificial homóloga após a morte do genitor.
Tal posicionamento é defendido alegando a falta de validade constitucional da referida prática, por afrontar aos princípios da paternidade responsável, dignidade humana, melhor interesse da criança e igualdade dos filhos.
O renomado autor se posiciona no sentido de que o princípio da paternidade responsável não poderia ser exercido face o falecimento de um dos pais, não sendo possível o exercício do projeto parental apenas por ato unilateral da mãe. Com relação ao princípio da dignidade da pessoa humana defende a aplicação do referido princípio não só a pessoa existente, mas também às futuras gerações. No que tange ao melhor interesse da criança, deve-se recorrer além das normas jurídicas, também a outros ramos da ciência, como a psicologia, para que se possa analisar os efeitos de uma criança nascer sem ter a possibilidade de jamais conhecer seu pai, por ato volitivo unilateral de sua mãe. Neste mesmo sentido, tece quanto ao princípio da igualdade dos filhos, visto que o nascido por inseminação artificial post mortem jamais terá a possibilidade de convivência paterna.
Em sua obra, A nova filiação: o biodireito e as relações parentais, o referido autor apresenta o entendimento, colocando que
“[…] ao menos no estágio atual da matéria no direito brasileiro, não há como se admitir, mesmo com vontade expressa deixada em vida pelo falecido, o acesso da ex-esposa ou ex-companheira às técnicas de reprodução assistida homóloga, diante do princípio da igualdade em direitos entre os filhos”.[48]
O ilustre professor Eduardo de Oliveira Leite, também desposa do mesmo entendimento de não ser possível deferir pedido para a prática da inseminação artificial após o falecimento do genitor. Ensina o afamado jurista que
“A resposta negativa a um pedido desta natureza se impõe. E isto, por diversas razões. Inicialmente, vale lembrar que tal pedido sai do plano ético reconhecido à inseminação homóloga; ou seja, se não há mais casal solicitando um filho, nada mais há que justifique a inseminação. Num segundo momento, tal solicitação provoca perturbações psicológicas em relação à criança e em relação à mãe. Nada impede que nos questionemos se esta criança desejada pela mãe viúva não o é, antes de tudo, para preencher o vazio deixado pelo marido. Além disso, a viuvez e a sensação de solidão vividas pela mulher podem hipotecar pesadamente o desenvolvimento psico-afetivo da criança. Logo, a inseminação “post-mortem” constitui uma prática fortemente desaconselhável”.[49]
Entretanto, com relação à corrente que defende a aplicação do dispositivo legal, os doutrinadores fundamentam-se no princípio da autonomia da vontade, no princípio do planejamento familiar e na igualdade entre os filhos. Neste sentido, o professor Carlos Cavalcanti apud Fischer esclarece que “o planejamento familiar, sem dúvida, dá-se quando vivos os partícipes, mas seus efeitos podem se produzir para após a morte”[50]. Com o mesmo entendimento, Douglas Phillips Freitas ensina que
“A nossa Carta Magna em seu art. 226, §7º, defende a livre decisão do casal quanto ao planejamento familiar, vedando qualquer minoração deste direito, por quem quer que seja, e, se houver, estará atacando os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.
A vontade do doador (cônjuge ou companheiro) na reprodução assistida sempre será expressa por força da Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, sem que, necessariamente, haja o doador realizado um testamento, por isto, é importante prever uma solução para o caso concreto de haver material genético para reprodução assistida sem testamento indicando a prole futura.
[…] havendo clara vontade do casal em gerar o fruto deste amor não pode haver restrição sucessória alguma, quando no viés parental a lei tutela esta prática biotecnológica.”[51]
Assim, o projeto da parentalidade serve como argumento para corrente que defende a prática da inseminação post mortem, visto que o número de famílias monoparentais, dirigidas apenas pela mãe, é crescente em nossa sociedade, não se podendo falar em possíveis traumas para crianças que são criadas apenas pela mãe, sem a existência de estudos pontuais quanto a isto.
Silmara Juny Chinelato, acerca desta questão, ensina que “não há discordância quanto a ser ideal a biparentalidade, mas ela não pode afastar a inseminação post mortem, na hipótese de ter havido um projeto biparental em vida – identificando-se a receptora do sêmen”.[52]
Posicionamento semelhante de Andréa Silva Rasga Ueda
“[…] Reitero: no meu sentir, de acordo com a posição atual da legislação, entendo que, com base na autonomia da vontade das partes envolvidas, lastreada na razão, é possível a implantação, por ter se tratado de um projeto familiar decidido e aceito pelo casal e no qual não vejo maiores problemas ao futuro bebê do que aqueles que lhe ocorreriam se o pai fosse vivo e sua mãe morresse no parto, ou se o pai morresse no exato momento em que se realizasse a implantação. […]”[53]
Seguindo na mesma compreensão, temos os ensinamentos de Maria Cláudia Crespo Brauner, que nos aponta
“Veja-se, justamente, que o direito a ter um pai e uma mãe e, de conhecer a ambos e conviver com eles é um direito que, em certos casos, pode não se concretizar, sem que se possa afirmar, no entanto, que o bem estar físico e psíquico da criança estejam comprometidos. Talvez esta atenuação ao direito à biparentalidade se refira, não simplesmente, aos casos de adoção plena, mas também, tenha-se reconhecido um espaço reservado às famílias monoparentais.
De fato, o interesse da criança deve ser preponderante mas isso não implica concluir que seu interesse se contrapõe, de forma reiterada, ao recurso às técnicas de procriação artificial e que ela não possa vir a integrar uma família monoparental, desde que o genitor isolado forneça todas as condições necessárias para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto.”[54]
E continua
“Sim, defende-se a idéia de que o filho desejado e buscado será bem vindo e que o projeto de monoparentalidade pode ser exercido normalmente, como já o é, por muitas mães solteiras e viúvas e também, por alguns pais solteiros e, em casos mais controvertidos, mas já constatados, por casais homossexuais.”[55]
A mesma autora defende a necessidade de ser realizado um estudo antecipado do perfil da mulher que deseja ser mãe e as motivações que lhe impulsionam a uma procriação artificial com sêmen do marido falecido. Desta sorte,
“[…] o direito de dar a vida só poderia ser cerceado ou limitado se a pessoa não apresentasse condições psíquicas para se ocupar de uma criança, por doença mental ou, se sua intenção de gerar fosse imoral, ou ilícita ou ainda, desvirtuasse a idéia, menosprezando o papel e a responsabilidade do genitor na vida do filho”.[56]
Desta forma, verifica-se que os embates travados acerca da possibilidade da inseminação artificial homóloga post mortem, nos dois pólos debatedores, apresentam fortes argumentos tanto para sua autorização como para sua negativa, visto que ambos tecem seus argumentos através de uma hermenêutica constitucional.[57]
Contudo, os debates são travados em face do vazio legislativo existente, visto que o ordenamento jurídico brasileiro não disciplina de forma adequada a matéria. No Brasil, não temos legislação proibitiva da inseminação post mortem, como acontece na Alemanha e na Suécia, tampouco existe lei específica para tal prática.[58]
Face ao vácuo legislativo existente em relação à reprodução humana assistida, utiliza-se a Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, a qual, apesar de não ter força vinculativa, estatui normas éticas para a utilização das técnicas reprodutivas artificiais.[59]
No que concerne a possibilidade de criopreservação do material genético, o item 3 da seção V da Resolução 1.358/92, estabelece a necessidade dos cônjuges ou companheiros, no momento da criopreservação, expressarem por escrito sua vontade quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, “em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um ou de ambos”.
No entanto, a Resolução 1.358/92 não esclarece quanto ao consentimento informado no que tange ao sêmen criopreservado do marido ou companheiro falecido. Entretanto, em razão da falta normativa, utiliza-se o que restou estipulado no item V.3, quanto aos pré-embriões, e defende-se o entendimento de que a mulher apenas poderá proceder a fertilização quando também houver consentimento expresso do marido, autorizando a referida prática.
Na tentativa de minimizar as discussões quanto ao tema, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, na I Jornada de Direito Civil, sob coordenação do ilustre ministro Ruy Rosado, aprovou o Enunciado nº. 106[60] com o teor
“Enunciado n. 106 da I Jornada de Direito Civil – art. 1597, inciso III: para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte”.
Assim, há de estar expresso que o sêmen doado poderá ser utilizado para a técnica de reprodução artificial após o seu falecimento.
Desta sorte, sem a devida autorização expressa do marido, tal prática seria vedada, visto que, como bem ensina Silmara Chinelato, “não se pode presumir que alguém queira ser pai depois de morto, devendo o sêmen ser destruído se não houver manifestação expressa de vontade quanto à inseminação post mortem”.[61]
Observando este entendimento, se tal prática viesse a se concretizar, sem a devida autorização expressa do marido, considerar-se-ia o sêmen do marido falecido como material proveniente de doador anônimo, não apresentando qualquer reflexo no direito de família ou no direito sucessório.
Todavia, em que pese a omissão legislativa, o direito terá que responder objetivamente frente às futuras demandas e à existência de um sujeito concebido através da técnica referenciada.
A noção do Direito como ordenação de experiência humana segundo certos valores perpassa todo o Código Civil, e está traduzida na sua estrutura e na noção de sistema que contém. Assim, permite o estabelecimento de ligação intra, extra, intersistemáticas viabilizadoras da comunicação entre as suas normas, os fatos da vida social e os valores do Ordenamento. Permite, antes de tudo, o estabelecimento de férteis conexões intersistemáticas entre o Código Civil e os Direitos Fundamentais, auxiliando a sua concreção e viabilizando a sua expansão.[62]
Frente a tais ensinamentos, na tentativa de se encontrar às soluções, haverá que se vislumbrar posicionamentos. Das práticas de fertilização homóloga post mortem decorrem diversos efeitos.
4. CONCLUSÃO
As questões biotecnológicas, cada vez mais presentes na realidade jurídica, trazem inúmeras indagações ao direito, o qual não consegue encontrar respostas prontas e acabadas para estas novas questões que clamam por tutela. Acredita-se que isso se deva basicamente em face da dificuldade que todo estudo novo propicia, mas, também, da necessidade de desvendar novos caminhos, a respeito da problemática criada sobre a biotecnologia e sua relação com as técnicas de reprodução humana assistida.
O vácuo legislativo existente no ordenamento jurídico pátrio acaba por gerar discussões antagônicas acerca da problemática que envolve a fecundação artificial post mortem, posto se tratar de tema aberto que, por isso, envolve as mais diversas discussões a respeito.
Não demorarão a chegar às portas do judiciário as lides que envolvam os mais diversos procedimentos de biotecnologia. Os avanços tecnológicos na área da medicina trazem novos paradigmas para o estudo do direito, visto que tal prática afeta e transforma as relações jurídicas.
Tal reflexão deve se calcar nos Direitos Humanos, consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO. Direitos, estes, que se tornaram princípios fundamentais e estruturam nossa Constituição Federal, sendo suporte de toda a hermenêutica jurídica.
Assim, a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade, princípios basilares que servem de norte quanto ao estudo do tema aqui proposto, flutuam entre as legislações ordinárias e as Resoluções do Conselho Federal de Medicina.
Necessário, também, o entendimento de que é indispensável a conciliação entre o direito e a bioética. Pois, é a partir de um estudo sistemático e interdisciplinar dos princípios constitucionais e dos princípios da bioética, que nascerão as respostas aos novos direitos.
Em razão de que o sujeito não pode ficar desagasalhado pelo direito, deve o operador jurídico considerar os princípios como um conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição. A nova realidade que emerge com a biotecnologia requer uma interpretação conjunta dos princípios elencados em várias áreas do direito, passando da interpretação formalista das regras, para um novo momento, no qual se verifica a supremacia das interpretações principiológicas dos textos constitucionais.
Garantir a efetividade de tais princípios é o dever dos operadores do Direito que encaram as transformações do século XXI. Compreender, confrontar, sobpesar os princípios, quando necessário ao caso concreto, produzirá a materialização do direito que hoje se persegue.
Advogada. Especialista em Direito de Família e Sucessões, pela Faculdade IDC; Pós-Graduanda em Bioética pela PUC/RS; Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS; Diretora Estadual (RS) da ABRAFAM, Associação Brasileira dos Advogados de Família; Palestrante; Parecerista e Consultora Jurídica.
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