Palavras chave: Justiça de transição. Ditadura civil militar. Violações de direitos humanos.
Abstract: Between the years of 1964 and 1985, Brazil lived under a military civil dictatorship. After a transition period which initiated with Amnesty Law 6,683 of 1979, passing through the promulgation of the 1988 Constitution and Laws 9.140/95 and 10.559/02 responsible for the political Deaths as Disappearances and the Amnesty Commission deployment, democracy was understood as consolidated in Brazil. Yet only these instruments do not complete what is called as “transitional justice” which presents as primordial characteristics the repair to the victims stricken by that period the search for truth and the construction memory, the effectively of justice and reorganization of state´s institutions. In Brazil not all these characteristics were enforced yet. So, within that which denominates “transitional process”, it´s verified difficulty settling identical parameters for different countries and situations violations by the State, being necessary to analyses transitional process occurred in other countries. Within this context, it´s important to analyses the issues under the light of Human Rights and still observe advances already established in the Brazilian transitional process like ADF interposed against interpretation of Amnesty Law by both sides, and still the recent decision of Corte HR condemning Brazil in “case Araguaia” and with Truth Commission of recently approval by Congress which aims ascertain facts still unenlightened in that period.
Keyword: transitional justice. Military dictatorship civil. Human rights.
INTRODUÇÃO.
O Brasil viveu durante os anos de 1964 e 1985 um período de repressão em seu território, onde direitos humanos foram, veemente, violados pelos agentes do Estado. No ano de 1979, iniciou-se através da promulgação da Lei de Anistia um processo de redemocratização do país. Contudo, a referida Lei de Anistia possui uma redação que durante muitos anos deu margem à interpretações dúbias. Em razão desse duplo sentido atribuído à lei, ela vem sendo tema central de diversas discussões, desde a sua promulgação.
No entanto, sempre prevaleceu a interpretação adotada pelo Estado de que a referida lei representou um perdão aos agentes do Estado que cometeram violações aos direitos humanos e por este motivo muitas questões ocorridas durante o período denominado obscuro da Ditadura civil-militar permanecem sem esclarecimentos.
A partir desta fase emerge-se a Justiça de Transição, que tem por base quatro características primordiais, quais sejam, a reparação das vitimas daquele período, a busca pela verdade e construção da memória, a reforma de instituições do Estado e, por fim, o restabelecimento da igualdade dos indivíduos perante a lei. Foi para a efetivação desses ideais da Justiça de Transição que diversos mecanismos foram implementados.
Em razão do surgimento de movimentos que passaram a questionar a posição adotada pelo Estado com relação a política de transição, a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental junto ao STF, questionando a constitucionalidade da Lei de Anistia. Nessa mesma linha de descontentamento com o Estado, um caso de extrema importância ocorrido no Brasil, durante a ditadura civil-militar, conhecido com a Guerrilha do Araguaia, foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos para que esta verificasse a responsabilidade do Estado Brasileiro no presente caso.
Assim, o âmago do presente trabalho é o processo transicional ocorrido no Brasil. Primeiramente será feita uma pequena contextualização histórica, após analisar-se-á as violações dos Direitos Humanos ocorridas durante a ditadura civil-militar, bem como a evolução histórica destes. Estudar-se-á o processo de transição ocorrido no Brasil e a influência da Lei de Anistia na Justiça de Transição e as características desse processo transicional, bem como as questões que giram em torno da interpretação da Lei de Anistia. Nesse sentido, serão trabalhadas as Leis 9.140/95 e a 10.559/02 que foram responsáveis pela implementação de mecanismos que auxiliaram na efetivação da Justiça de Transição, tais como a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia, respectivamente.
Será feito um comparativo do processo transicional ocorrido no Brasil com os processos transicionais e as autoanistias ocorridas em outros países, bem como qual a situação desses países perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ainda, abordar-se-ão as dificuldades que são enfrentadas para a efetivação da Justiça de Transição, como por exemplo, a construção da verdade. Por fim, teremos a situação da justiça de transição e a proteção dos Direitos Humanos no âmbito internacional e os processos enfrentados pelo Estado Brasileiro, como a ADPF impetrada pela OAB perante o STF e o Caso Araguaia levado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a respectiva responsabilização internacional do Brasil.
Por isso, importante alertar para a importância do tema, uma vez que ele está presente na atualidade, como verificamos pela recente decisão do Senado acerca da instauração da Comissão de Verdade, que significa um dos mecanismos disponíveis para a construção da memória e verdade.
1. A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
1.1. HISTÓRICO
O Brasil viveu um momento, entre os anos de 1964 e 1985, em que os militares governaram o País, período este denominado Ditadura Civil-Militar. Tudo iniciou com um golpe da forças armadas contra o então presidente, João Goulart, sob a justificativa que o presidente estaria aderindo às idéias comunistas, em razão das suas reformas de base.[2]
Durante este período não houve democracia, os direitos constitucionais eram suprimidos, foram implantados diversos Atos Institucionais, havendo censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.[3] Durante a jurisdição do Estado-Maior das Forças Armadas, criou-se a Escola Superior de Guerra que ficou marcada pela Doutrina da Segurança Nacional que tinha por objetivo controlar a vida política do País e possuía como principal fundamento a tese de que o inimigo do Estado não era mais externo e sim interno.[4]
O Estado valia-se do sistema formado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), Marinha (CENIMAR) e Aeronáutica (CISA) e dos Destacamentos de Operações e Informações e Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) para reprimir e controlar a sociedade.[5]
Pode-se dizer que após o golpe de 1964, houve o golpe de 1968, com a radicalização da ditadura, quando foi publicado o mais discricionário dos instrumentos legais daquele regime, o Ato Institucional nº 5, que passava para as mãos do Governo poderes absolutos por tempo indeterminado. Em razão disso, o Judiciário ficava impedido de apreciar a legalidade das decisões baseadas no ato.
Durante o Regime Militar, o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos[6], que expressamente dizia que ninguém seria submetido à tortura, foi ignorado. Isso porque um dos principais métodos de repressão foi a tortura. A tortura ocupou no Brasil “a condição de instrumento rotineiro nos interrogatórios sobre atividades de oposição ao regime, especialmente a partir de 1964.” [7] As torturas não se diferenciavam pela idade, sexo ou situação moral, psíquica ou física das pessoas, pois a intenção não era apenas fazê-las sentir dores quase insuportáveis que as fizessem declarar um discurso que favorecesse o sistema repressivo, mas as torturas tinham por objetivo “a destruição moral da vítima, por meio de uma ruptura dos limites emocionais que cercavam as relações efetivas de parentesco”.[8]
Em razão de todas essas arbitrariedades e também devido ao agravamento da crise econômica mundial, as manifestações estudantis e as greves dos trabalhadores começaram a ser mais significativas, bem como o fortalecimento dos grupos políticos que já combatiam a ditadura. Com o surgimento dessas manifestações, a repressão e perseguição aos grupos estudantis e dos trabalhadores foi cada vez maior e mais efetiva. Por estes acontecimentos, onde a sociedade não tinha mais liberdade de expressão nem voz, começaram a surgir diversos movimentos que buscavam a efetivação dos direitos humanos e a aplicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, gerando a partir de então o enfraquecimento do regime, dando espaço, assim, aos Comitês Brasileiros de Anistia, aos grupos de estudantes e suas passeatas, a greve dos metalúrgicos[9], que, por conseguinte pressionaram o governo para a implantação da Lei de Anistia, em 1979.
Em 1979, o então presidente João Figueiredo, assinou o projeto de lei e o enviou ao Congresso Nacional para promulgação. Assim, temos a promulgação da Lei de Anistia em 1979, Lei nº 6.683/79, como um marco do inicio da transição para um regime democrático no País. [10]
O texto da Lei da Anistia, continha em seu artigo primeiro:
“Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
§ 3º Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.”[11]
Durante muito tempo preponderou o entendimento de que a Lei de Anistia concedeu anistia aos militares e aos opositores ao regime, assim não foram investigadas e muito menos punidas as violações aos direitos humanos cometidas por aqueles ao longo de seu regime totalitário, nem os crimes políticos e eleitorais cometidos por estes.[12]
Pela falta de investigação e punição destes crimes, a Lei interferiu no processo de transição, uma vez que estas são etapas essenciais para a reconciliação nacional, bem como necessárias para que se busque a verdade e a memória dos fatos ocorridos ao tempo. Dessa forma, a Lei de Anistia, segundo REMIGIO, “pretendeu selar um acordo e jogar ao esquecimento as perversidades praticadas pelos agentes estatais da repressão, em contramão à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que não reconhece a validade de leis de autoanistia” [13].
Com o fim do regime militar a sociedade deparou-se com a realidade que tinha que enfrentar, ou seja, se confrontar com seu passado de violações aos direitos humanos. A partir disso, a sociedade começa a questionar como fará isso, como irá reparar as vítimas daqueles horrores. Em razão da preocupação com a anistia, o processo de transição da ditadura civil-militar para a democracia no Brasil só surgiu após a Constituição de 1988, com o art. 8º do ADCT, que diz:
“Art. 8º – É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.
§ 1º – O disposto neste artigo somente gerará efeitos financeiros a partir da promulgação da Constituição, vedada a remuneração de qualquer espécie em caráter retro
§ 2º – Ficam assegurados os benefícios estabelecidos neste artigo aos trabalhadores do setor privado, dirigentes e representantes sindicais que, por motivos exclusivamente políticos, tenham sido punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como aos que foram impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos.
§ 3º – Aos cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e nº S-285-GM5 será concedida reparação de natureza econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição.
§ 4º – Aos que, por força de atos institucionais, tenham exercido gratuitamente mandato eletivo de vereador serão computados, para efeito de aposentadoria no serviço público e previdência social, os respectivos períodos.
§ 5º – A anistia concedida nos termos deste artigo aplica-se aos servidores públicos civis e aos empregados em todos os níveis de governo ou em suas fundações, empresas públicas ou empresas mistas sob controle estatal, exceto nos Ministérios militares, que tenham sido punidos ou demitidos por atividades profissionais interrompidas em virtude de decisão de seus trabalhadores, bem como em decorrência do Decreto-Lei nº 1.632, de 4 de agosto de 1978 , ou por motivos exclusivamente políticos, assegurada a readmissão dos que foram atingidos a partir de 1979, observado o disposto no § 1º .”[14]
Assim, é possível dizer que no Brasil, o processo transicional iniciou pela seara da reparação trazida no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, visando maximizar a reparação às vítimas. Contudo, é necessário entender que o processo de transição é bem mais amplo, por isso a necessidade de abordá-lo como um processo, através da implantação de uma verdadeira “justiça de transição”, a qual se explana a seguir.
1.2. A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA ATUALIDADE E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
Inicialmente, é bom trabalhar o conceito do termo anistia, trazido em nossa Lei 6.683 de 1979 que a anistia é “um instituto de caráter eminentemente político, aplicado geralmente aos indivíduos que respondem por crimes políticos.”[15] Na sua origem grega, anistia, significa esquecimento, ou seja, “fazer considerar retroativamente como não punível um fato previsto e punido pela lei penal e, por conseguinte, se o autor do fato já foi condenado, apagar completamente a condenação.” A anistia visava “apagar” acontecimentos passados e não pessoas.[16]
Contudo esse conceito de esquecimento não mais serve para os dias atuais, pois, entre outras questões que irão influenciar esse período, já existe um mecanismo que responde a todas estas questões. Este mecanismo é denominado justiça de transição que seria definido “(…) como o conjunto de esforços jurídicos e políticos para o estabelecimento ou restabelecimento de um sistema de governo democrático fundado em um Estado de Direito, cuja ênfase não recai apenas sobre o passado, mas também numa perspectiva de futuro”[17]e tem por objetivo “investigar a maneira pela qual sociedades, marcadas por passados de abusos de direitos humanos, atrocidades maciças ou diferentes formas de traumas sociais, (…) buscam trilhar um caminho de mais democracia ou apenas de mais paz.” [18]
É possível perceber a origem desse conceito de justiça de transição no final da Segunda Guerra Mundial, sendo desde então, desenvolvidos e aperfeiçoados mecanismos especializados em tratar com essa lembrança de um passado violento. [19] Contudo, as bases da justiça de transição ganharam maior atenção nos últimos vinte e cinco anos do século XX, mais precisamente pelos julgamentos de membros da junta militar na Grécia e na Argentina[20], surgindo para “cuidar da vulnerabilidade não somente das pessoas perseguidas, mas, sobretudo, proporcionar um novo sentimento nacional, agora baseado na segurança, na justiça e na solidariedade”, além de resgatar a democracia que foi perdida durante o regime militar.
De acordo com Piovesan, a “justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática.”[21] Já para Junior,
“Ao problema de se decidir que medidas devem ser tomadas pelo novo governo a respeito dos acontecimentos relacionados ao regime anterior, nós chamamos de ‘justiça de transição’. O novo Estado, para construir seu plano futuro, deve antes decidir sobre questões relacionadas ao antigo regime.”[22]
Ou seja, para que existam transições democráticas, é necessária uma série de medidas judiciais e não judiciais com o intuito de “resolver” as injustiças e ilegalidades do passado, bem como contar a obscura história do passado, ocorrida durante um regime autoritário e por fim, garantir a estabilidade estatal e que aqueles crimes não mais ocorram.[23]
Desse modo, denominou-se justiça de transição uma série de iniciativas através dos mecanismos internacionais e regionais nos países em processo de democratização, envolvendo suas políticas públicas, suas reformas legislativas e o funcionamento de seu sistema de justiça, para que seja possível uma transformação política bem sucedida, e alcançar não apenas a democracia eleitoral, mas sim o Estado de Direito.[24]
Assim é possível observar que diferentes autores têm conceituações diversas para a tão polêmica justiça de transição, no entanto todas estão corretas e se complementam.
A justiça de transição foi diretamente influenciada pela atuação das organizações defensoras dos direitos humanos e pela normativa internacional (legislação de direitos humanos e legislação humanitária), bem como pelas experiências que se desenvolveram após a segunda metade do século XX em diversos Estados. A concepção de justiça de transição é consolidada no final dos anos 80 e princípio dos anos 90 como resposta às mudanças políticas e às demandas por justiça e verdade em países latino-americanos e da Europa oriental.[25]
É possível salientar os quatro pilares transicionais, quais sejam: reparação às vítimas, fornecimento da verdade e construção da memória, restabelecimento da igualdade perante a lei e a reforma das instituições perpetradoras dos crimes contra os Direitos Humanos. Esses pilares também servem de base para a redemocratização após o período autoritário. [26] Assim, a Justiça de Transição visa à recomposição do Estado e da sociedade, resgatando a cidadania perdida. Terá como alicerces a verdade, a justiça, a reparação, a reforma das instituições e a responsabilização do Estado, visando, assim, evitar que tudo se repita. [27]
Dentre os quatro pilares anteriormente citados, temos como principal, a busca pela verdade e construção da memória, aquela que nada mais é o reconhecimento por parte do Estado dos abusos ocorridos durante um período de ditadura; ou seja, juntamente com a busca pela verdade temos a construção da memória que é a “possibilidade de se dar outro sentido ao sofrimento vivido, de forma a tornar a lembrança um sentimento aliviado. A memória aqui deve ser entendida como instrumento que sinalize à sociedade que num passado recente ela estivera presa à dominação estatal.” [28]O direito à memória vem para que as vítimas e seus familiares não tenham esquecidas as suas histórias sem antes o reconhecimento por parte do Estado pelos crimes praticados pelos seus agentes.[29] É o dever de não esquecer. É o direito de saber onde os corpos de seus familiares estão enterrados e é ter acesso aos documentos da época. É o direito à memória que impulsionará o direito à verdade, uma vez que abertos os registros, estão abertas as prova dos crimes ocorridos nos porões da ditadura.
Após, temos a reparação às vítimas por parte do Estado em razão das graves violações sofridas. Essa reparação pode ser material, através do pagamento de indenização; psicológica e medidas simbólicas, e ainda, dias de comemorações nacionais.
Já as reformas institucionais consistem em dissolver as instituições responsáveis pelas violações aos Direitos Humanos pretendendo o afastamento das pessoas responsáveis por estas violações das instituições governamentais. Estes programas servem para restaurar a integridade dessas instituições, bem como recuperar a confiança dos indivíduos nesses órgãos e descaracterizar por completo o paradigma da repressão.[30]
Por fim, temos o restabelecimento da igualdade perante a lei que é baseada na obrigação de “investigar, processar e punir” os perpetradores dos crimes do regime, principalmente com relação àqueles crimes cuja responsabilidade foi assumida pelo Brasil em compromissos internacionais.[31]
Como um resultado da efetivação desses pilares temos a reconciliação, um conceito um tanto complexo, tendo em vista que muitas vítimas encaram a reconciliação como uma forma de perdão aos perpetradores de atos abusivos durante o regime de exceção. Por esta razão que a reconciliação não pode reduzir-se a ignorar o passado e negar o sofrimento das vítimas, mas restabelecer a democracia e a confiança dos cidadãos no Estado, tendo este uma figura de protetor e não mais de violador dos Direitos Humanos.
Em face do período de ditadura civil-militar ocorrido no Brasil, entende-se que esse ainda não terminou devidamente o processo de transição para a Democracia, devendo ser melhor aprimorados os pilares transicionais aqui tratados.
1.3. PROCESSOS DE TRANSIÇÃO OCORRIDOS EM OUTROS PAÍSES
O Brasil não foi o único país a passar por um período de repressão autoritária, bem como pelo seu processo transicional em busca da redemocratização. Nesse sentido, existem países com situações semelhantes que optaram pela utilização da justiça de transição, enquanto outros escolheram o esquecimento. Nunca haverá um consenso mundial, enquanto uns buscam a redemocratização outros, minoria, muitas vezes, remexem no passado. [32]
Inicialmente, na Europa, houveram três etapas de busca da verdade e justiça transicional. A primeira ocorreu em um período pós-Segunda Guerra, tendo como marco o Tribunal Internacional de Nuremberg. Um segundo momento ocorreu no sul da Europa ainda também no pós-Segunda Guerra. Contudo, cada País elegeu meios diversos dos demais, na Grécia houve um julgamento daqueles que lideraram o golpe de 1967, já na Espanha optou-se pelo método do esquecimento das violações ocorridas na Guerra Civil. E o último momento, que ocorreu na década de 1990 na Europa Central e Lestes, ficou marcado pela abertura de arquivos da polícia e por julgamentos oficiais[33]
Com relação a “América Latina, as políticas transicionais de memória e verdade ocorreram após o fim de vários regimes militares autoritários na região, começando pelos países do Cone Sul no meio da década de 1980, e continuando durante os anos 90 com processos de paz na América Central.”[34].
Países como Argentina[35], Brasil, Chile[36] e Uruguai[37] aderiram às chamadas “anistias”, enquanto que na América Central houve uma busca pela verdade e não pela justiça. Em fase posterior, essas anistias gerais foram questionadas.
Primeiramente no Chile, o decreto-lei nº 2.191/78 que previa anistia aos crimes perpetrados na era Pinochet, foi revogado por decisão do sistema interamericano, por violar o direito à verdade. Já na Argentina houve uma decisão da Corte Suprema de Justiça da Argentina, que afirmou que as leis de anistia impediam o julgamento das violações cometidas durante o período de 1966 à 1973, bem como eram incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que permitiu a partir de então o julgamento de militares por crimes cometidos durante o período de repressão. [38]
A partir disso, foi possível observar a utilização de outro instrumento denominado “Comissões de verdade”. As comissões de verdade são órgãos temporários, sancionados pelo Estado ou por uma organização governamental internacional que servem para investigar um padrão de abusos contra os direitos humanos, ou seja, além de se buscar saber o que ocorreu no passado, como violações aos direito humanos, é necessário que o governo, os perpetradores e toda a sociedade reconheçam a injustiça e gravidade de tais abusos.
Esse conhecimento das violações ocorridas no passado faz com que a população se oponha a um possível retorno dessas práticas abusivas. Nesse sentido, as comissões de verdade abrem um espaço para que as vítimas e seus familiares relatem o que sofreram durante o período autoritário, bem como contestem as mentiras oficiais e os mitos que envolvem violações dos direitos humanos.[39]
A origem da utilização da denominada “comissão de verdade” ocorreu na Argentina e no Chile. Nesses países, a comissão de verdade conseguiu “desmascarar” as diversas versões ou a versão “oficial” que existia acerca do paradeiro dos opositores ao regime. A sociedade ficou sabendo que estes não haviam fugido ou se escondido, mas que foram assassinados por membros das forças militares em desenvolvimento, ou desapareceram. [40]
Já a África[41], esteve sob um regime de segregação racial, denominado “apartheid” o qual durou de 1948 à 1994. Durante esse período os negros foram privados da cidadania, sendo proibidos de tudo e excluídos do governo nacional, não podendo votar. Quando da queda do regime do apartheid, as comissões foram instituídas pelos Poderes Executivo e Legislativo, dessa maneira os movimentos nacionais e internacionais tiveram um papel significativo na construção de Estado, nos contextos de conflito civil.
Ainda com relação à África, pode se dizer que houve um apoio internacional para processar os violadores dos Direitos Humanos, não ocorrendo uma anistia geral, que fizesse o passado ser esquecido; foi dada uma maior atenção para a busca da verdade e responsabilização.[42]
“A idéia da comissão de verdade começou, ironicamente, com as acusações de abusos aos direitos humanos cometidos pelo Congresso Nacional Africano em alguns campos no exílio. A resposta do Congresso foi instaurar uma comissão de inquérito. Em março de 1992, o presidente Nelson Mandela criou a Comissão de Inquérito sobre as Reclamações feitas por Antigos Prisioneiros e Detidos pelo Congresso Nacional Africano.”[43]
Para o arcebispo anglicano Desmond Tutu, uma justiça na forma de Nuremberg não seria possível na África do Sul, pois colocaria em risco a transição pacífica e negociada.[44]
Como anteriormente referido, o processo transicional não é unânime nos termos dos Direitos Humanos, cada país adota o meio e as formas que entende mais correta e efetiva, sendo que a exposição do presente item buscou demonstrar alguns dos diversos modos de transição ocorridos após períodos autoritários e abusivos.
1.4. DESAFIOS DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E NO MUNDO
É possível observar que “quanto mais uma transição ocorre com a derrota da velha elite autoritária e dos agentes da repressão, maior é a margem de manobra para o desenvolvimento das políticas de verdade e justiça.”[45] As ditaduras ocorreram de diversas maneiras e em diferentes tempos em cada país, tendo assim cada país um tempo para o processo transicional. Apesar da justiça de transição ter os mesmos pilares em qualquer país, o tempo de desenvolvimento dela vai variar de acordo com a situação do país e com as marcas que os regimes ditatoriais deixaram. Não é possível generalizar o processo transicional, em cada país ele ocorre de uma maneira.
Assim, é consenso na doutrina internacional que não existe um modelo único para o processo de justiça de transição. Este se revela como um processo peculiar, onde cada país, precisa encontrar seu caminho para lidar com o legado de violência do passado e implementar mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade.[46]
Assim, segundo Paulo Abrão,
“as quatro dimensões políticas da Justiça Transicional adquirem plenamente o status de obrigações jurídicas ao passarem a compor o acordo político constitucional que dá integridade a um sistema de direitos fundado nos valores da democracia e dos direitos humanos, articulando, inclusive, o Direito interno e o Direito Internacional.”[47]
Numa perspectiva histórica, podemos observar que o discurso jurídico da cidadania sempre enfrentou a tensa divisão entre os valores da liberdade e da igualdade.[48] Assim, sempre se estará em busca da liberdade, mas conjuntamente da igualdade perante o outro e igualdade de ambos perante a Lei.
No caso brasileiro é possível dizer o advento da Lei de Anistia (6.683/1979) serviu de mediação entre duas forças, quais sejam a política de segurança nacional dos militares e de outro, o movimento para restabelecimento da democracia.[49]Contudo, de acordo com Santos, na Anistia Brasileira está ausente o elemento legitimidade nacional, ou seja, a representação da vontade popular em um governo eleito pelos cidadãos, uma vez que o projeto de lei da anistia foi apresentado por um governo militar, onde as eleições para presidência da República eram de forma indireta, projeto que não atendia aos anseios do povo. [50]
Assim, como já referido, o termo “anistia” não servirá mais com a conotação de perdão ou esquecimentos, mas sim como um pedido de desculpas do Estado brasileiro aos cidadãos que foram perseguidos enquanto deveriam estar sendo protegidos pelo Estado. Dessa maneira a Justiça de Transição busca a construção da paz em um período pós-conflito. O processo de transição deve auxiliar o restabelecimento da confiança dos indivíduos no Estado, demonstrando que o mesmo não pretende violar seus direitos, mas sim protegê-los.
Diante dos desafios que se mostra é que o processo transicional brasileiro deve ser objeto de estudo e análise, uma vez que ele se iniciou pelas mãos dos militares, os mesmos militares responsáveis pelas atrocidades cometidas durante o regime militar. É preciso ter um processo transicional que atenda aos anseios da população e não às vontades dos responsáveis pelas violações ocorridas durante a ditadura.
2. PROCESSO TRANSICIONAL
2.1. PROCESSO TRANSICIONAL NO BRASIL SOB A PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS
Inicialmente é necessário fazer uma introdução da evolução dos direitos humanos[51] no âmbito do direito internacional. Para o direito internacional durante muitos anos os sujeitos eram apenas o Estado e algumas organizações, contudo ao longo dos anos o indivíduo vem ganhando espaço. O indivíduo passa a se tornar sujeito do direito internacional, tanto na figura de autor de crimes quanto na de vítima. [52]
Assim, os acontecimentos ocorridos no Brasil durante o período de repressão, bem como a promulgação da Lei de Anistia, devem ser analisados sob a ótica do direito internacional dos direitos humanos. O direito internacional dos direitos humanos servirá como base para qualquer análise que envolva as violações aos direitos humanos, tendo em vista que enumera os direitos das vítimas, bem como estabelece as formas de proteção e reparação.[53]
Uma questão a ser observada é a soberania estatal, pois introduzindo o indivíduo como sujeito de direito internacional, passa a existir um desafio para o conceito clássico de soberania do Estado de direito, tendo em vista que o direito internacional afirma a soberania dos Estados, mas ao mesmo tempo ele vai garantir aos direitos humanos uma posição de superioridade às leis internas dos estados.[54] Esta soberania designada para o estado não pode ser invocada para o descumprimento do tratado internacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos insere a idéia de que os direitos humanos têm a característica de universalidade e indivisibilidade, ou seja, a única condição da titularidade desses direitos é a condição de pessoa e indivisível pois a garantia dos direitos civis e políticos serve como garantia do exercício dos direitos sociais, econômicos e culturais. Assim a violação de qualquer um deles gera a violação dos demais. A partir de então começa o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos.[55]
Ainda, com o Estatuto de Nüremberg, concretizou-se o costume internacional de que qualquer violação aos direitos humanos pode atentar contra a humanidade[56], “desde que dentro de um padrão sistemático e generalizado de perseguição contra a população civil, por razões éticas, políticas, raciais ou religiosas.” [57]
No caso Brasileiro, em virtude dessa soberania, emitiu-se uma lei de anistia, que gerou como conseqüência “a impunidade dos agentes do Estado que cometeram inúmeros crimes contra os dissidentes políticos, o que veio a desrespeitar inúmeros tratados de direitos humanos que foram ratificados pelo país.”[58]Sob a perspectiva do direito internacional dos direitos humanos o dever do Estado de levar os responsáveis por crimes contra a humanidade a julgamento é estabelecido em diversos tratados de proteção aos direitos humanos como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Político, Convenção Americana dos Direitos Humanos e a Declaração dos Direitos do Homem[59], não cabendo assim ao Estado anistiar tais crimes, pois assim ele estará violando suas obrigações internacionais.
Nesse ponto é necessário destacar que o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, do qual o Brasil faz parte, que é composto por dois órgãos que atuam na proteção e efetivação dos direitos humanos, quais sejam a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que atua a partir do recebimento de denúncias sobre violações cometidas pelo Estado ou por terceiros e nas quais haja omissão do Estado em relação a efetivação dos direitos humanos expressos na Convenção Americana,[60] e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual é órgão judicial autônomo que possui atribuições de julgamento e interpretação . Tal sistema interamericano se torna importante instrumento para a proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas. “O sistema interamericano tem a força catalizadora de promover avanços no regime de direitos humanos.” [61]
Dessa maneira, o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos tem exercido forte papel na contribuição da desarticulação dos regimes ditatoriais, exigindo justiça e o fim da impunidade nas transições democráticas. Além disso, demanda o fortalecimento das instituições democráticas com o necessário combate às violações de direitos humanos e proteção aos grupos mais vulneráveis.” [62]
No caso em questão, a ditadura civil militar no Brasil foi marcada pela violação dos direitos de seus cidadãos, “por meio da organização pelo Estado de um aparelho repressivo e brutal que institucionalizou a prisão, a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinato de setores da população civil, em virtude da intolerância ideológica.” [63] Para exemplificar a ação do Estado de perseguição, por intermédio de seus agentes, temos o caso da Guerrilha do Araguaia, onde militantes da área rural foram fortemente reprimidos, bem como toda a população da área rural foi ameaçada e, a grande maioria, encarceradas em campos de prisioneiros do Exército brasileiro.
Esse fato gerou a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, declarando-o como responsável pelo desaparecimento de aproximadamente setenta pessoas no Araguaia (Caso Gomes Lund e outros). Esta decisão na Corte utiliza como fundamento as disposições da Lei de Anistia que impedem a investigação e punição dos crimes contra os direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, ou seja, a interpretação da Lei de Anistia está em desacordo com o Direito Internacional.[64]
Outro caso, é o da anulação das leis de autoanistia do Chile pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que igualmente declarou que o decreto-lei chileno nº 2.191/78 é incompatível com Convenção Americana, carecendo nesse sentido de fundamento jurídico.[65] Nesse sentido, a Corte recomendou que o Estado ajustasse sua legislação interna de acordo com a Convenção Americana, possibilitando assim que as violações de direitos humanos pudessem ser investigadas, estabelecendo a responsabilidade e a devida punição dos culpados. [66]
Assim, os casos citados demonstram a necessidade de um novo entendimento, no sentido de que a proteção dos direitos humanos vai além da competência nacional, não podendo ser reduzida ao domínio do Estado, pois; a proteção dos direitos humanos trata-se de um assunto de repercussão internacional.[67]
No caso brasileiro, os crimes ocorridos no período da ditadura ferem os direitos humanos, tendo o Estado, o dever de investigá-los e puni-los. No entanto existem dificuldades relacionadas ao decurso do tempo e falta de provas, entre outros. Mesmo assim, alguns autores, como Roberto Lima Santos, entendem que essa investigação deve ocorrer, mesmo que seja em desacordo acordo com os tipos penais existentes em seu direito interno. Este dever de investigação e punição são obrigações de jus cogens, ou seja, direito cogente, assim os Estados têm o dever de cumpri-las.[68]
2.2. FASES DO PROCESSO DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
Como anteriormente referido, o processo transicional é composto por quatro dimensões, quais sejam, reparação, busca da verdade e da memória, restabelecimento da igualdade perante a lei e, por fim, a reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos. No Brasil, esse processo transicional ocorre lentamente, comparado a outros países da América Latina[69].
No caso brasileiro, antes de se iniciar qualquer reparação às vitimas é necessário o reconhecimento por parte do Estado de que os crimes danosos ocorridos no período da Ditadura foram de sua responsabilidade, bem como de seus agentes. No entanto, isso não ocorreu de maneira linear. Só a partir de então que é possível iniciar um programa de reparação e indenização às vítimas e suas famílias. Então, a reparação, no caso brasileiro, não ficaria restrita a reparação econômica, devendo ir além.
No âmbito da reparação, tem-se primeiramente, após a Constituição de 1988, para cumprimento do art. 8º do ADC, o estabelecimento da Comissão de Mortos e desaparecidos (vinculada Secretaria Especial de Direitos Humanos ligada à presidência da República) com a instituição de Lei específica sob o nº 9.140/95, na qual busca-se a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos, aberturas de arquivos, bem como o reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de 136 pessoas, que constavam no anexo da lei. Os familiares e vítimas buscavam indenizações também. Contudo a Lei foi considerada restrita pelos autores, uma vez que atendia bem mais aos interesses políticos do que da sociedade, mais uma vez.[70]
Posteriormente, temos no ano de 2001, a Lei 10.559, a qual é destinada àqueles que foram vítimas de torturas, desaparecimentos, prisões, demissões bem como o exílio por razões políticas.[71]
Já no Governo Lula, a partir do ano de 2003 houve a implementação de novos mecanismos de reparação, os quais foram impulsionados internamente pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, responsável pela aplicação da Lei 10.559, que são: Caravanas da Anistia e outros projetos de cunho educativo que serão explicitados mais adiante, no sentido de destacar a necessidade do Direito à Memória e à Verdade.
Com relação à reforma das instituições é possível dizer que no Brasil há um constante aperfeiçoamento das instituições, com reformas que levaram a extinção do Serviço Nacional de Informações, o fortalecimento do Ministério Público que tem a tarefa de proteger o regime democrático, a ordem pública e os interesses individuais e sociais indisponíveis. Ainda, nesse sentido destaca-se a criação da Defensoria Pública da União e de programas voltados ao estudo dos direitos humanos para as corporações de polícia; a extinção do DOI-CODI e DOPS; a revogação da lei de imprensa criada na ditadura e a criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos[72].
Porém, no caso brasileiro, antes de se ter iniciado qualquer reparação às vítimas seria necessário o reconhecimento por parte do Estado de que os crimes danosos ocorridos no período da Ditadura foram de sua responsabilidade, bem como de seus agentes. No entanto, isso não ocorreu de maneira linear, uma vez que foi dada ênfase primeiramente ao processo de reparação.
Deve ficar destacado que só a partir do reconhecimento dos fatos danosos ocorridos é possível iniciar um programa de reparação e indenização às vítimas e suas famílias. Então, a reparação, no caso brasileiro, não ficaria restrita a reparação econômica, como vem acontecendo, devendo ir além.
Podemos estabelecer que a justiça de transição tem três grandes fases. Na primeira são mapeados os dois “elementos principais” da política transicional, quais sejam, a reforma das instituições perpetradores dos crimes e a responsabilização individual. Assim, a primeira fase é caracterizada pela restauração/implementação de um Estado de Direito através de mecanismos punitivos. Já a segunda fase é marcada por injunções políticas, deixando de lado as intervenções penais, fazendo surgir a partir de então novas formas de promoção de justiça, tais quais, a reparação e o estabelecimento de comissões de verdade, o que ainda não ocorreu no Brasil. Dessa forma, a segunda fase deveria ficar marcada pela pluralização de meios de acesso à verdade e construção da memória.[73]
Por fim, a terceira fase será a responsável pela consolidação da justiça de transição, pois há uma estabilização das fontes normativas que servem de base para a orientação das políticas e medidas de transição. A partir de então, começa-se a recorrer aos tribunais internacionais e aos instrumentos internacionais existentes em torno destas questões.
Após a análise dos procedimentos da justiça de transição é possível concluir que no Brasil o processo de reparação tem um papel estruturante na transição política. Ainda, as Comissões de Reparação tem tido um papel fundamental na busca pela verdade. Por fim, com relação a este procedimento, podemos concluir que no Brasil há “implantação de uma rica variedade de medidas de reparação, individuais e coletivas, materiais e simbólicas.”[74] No entanto, ainda peca pela não responsabilização dos perpetradores de torturas e sem o estabelecimento de busca da verdade.
3. PRINCIPAIS MECANISMOS REPARATÓRIOS E DE TRANSIÇÃO
3.1. LEI DE ANISTIA DE 1979
A Lei nº 6.683/79, que serve de marco da transição política brasileira, foi assinada no governo de João Baptista Figueiredo, após um período conturbado, com exigência de diversos setores sociais, onde políticos, pensadores e jovens envolvidos na política tiveram seus projetos e sonhos abortados.[75] Outra situação grave da época era a suspensão do auxílio norte-americano ao Brasil, o qual foi um dos grandes patrocinadores de golpes pela America Latina[76], pois eles também enfrentavam uma crise interna.
Como anteriormente citado, o AI-5 foi responsável pelo fim do livre pensamento na Universidades. No entanto a partir de 1978, os Cômites Brasileiros pela Anistiam começam a surgir com grande expressão e, logo em 1979 o referido ato institucional é revogado. Ainda que os militares estivessem no poder quando da promulgação da Lei de Anistia de 1979, eles acabam perdendo força. Contudo, o projeto para um lei de anistia “ampla, geral e irrestrita” sofreu algumas restrições impostas pelos militares,[77] uma vez que o governo militar pretendia estabelecer a pacificação e o esquecimento do sistema repressivo, mais do que promover justiça e esclarecimento da verdade as vítimas do sistema.[78] Uma crítica feita em razão da promulgação da lei quando os militares ainda estavam no governo, foi que a referida lei não investigou os agentes de órgãos de segurança envolvidos em atos ilegais contra presos políticos.[79]
Houve ainda, em São Paulo, o Movimento Feminino pela Anistia, que visava abarcar aqueles atingidos pelos atos de exceção. Este grupo era formado praticamente por mães, esposas e irmãs de atingidos pela ditadura. Para esse movimento, a luta pela anistia significava a reconciliação da nação com ela mesma, ou seja, tinha um caráter nacional que assegurava que o futuro da nação seria de paz e reconciliação. [80]
A Lei de Anistia de 1979 acabou concedendo a todos que tivessem cometidos crimes políticos e aos que tiveram seus direitos políticos suspensos, uma anistia ampla, geral e irrestrita. No entanto a referida lei foi uma lei pela “metade”, pois não anistiou todos os presos, cassados, banidos, exilados e perseguidos políticos, tendo em vista que não anistiou os “condenados por atentados e seqüestros políticos, deixou os cassados ainda inelegíveis, subordinou a reintegração dos funcionários à decisão das autoridades de cada setor envolvido”[81]. Não se pode esquecer que a promulgação desta lei ocorreu com os militares ainda no poder. A lei foi o marco para a redemocratização, contudo ela representou uma política de esquecimento. [82]
Diferentemente do que ocorreu em outros países, no Brasil a anistia aos perseguidos políticos não foi apenas desejada, mas fortemente reivindicada, desde o início da ditadura.[83] Na Argentina e Chile a anistia foi uma imposição do regime contra a sociedade, ou seja, uma autoanistia do regime, já no Brasil a anistia foi amplamente reivindicada socialmente, pois se referia originalmente aos presos políticos, tendo sido objeto de manifestações históricas[84] que até hoje são lembradas.
Contudo em razão dessa “dupla interpretação” da Lei 6.683/79, a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou no STF uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), questionando a constitucionalidade da referida lei.
Segundo Marlon Alberto Weichert, Procurador Regional da República, Lei de Anistia nasceu sob a seara da reparação econômica, no entanto nos últimos anos ela visa a reparação moral e a construção da memória.[85] Igualmente à Piovesan ele afirma que a Lei de Anistia não abrangeu os agentes do Estado e sim as vítimas destes.[86]
Como referido por Junior em seu artigo, autores como Fábio Konder Comparato, Nilo Batista e Dalmo Dallari, acreditam que os crimes praticados durante a repressão política não representam crime políticos ou praticados por motivação política. Assim, a Lei nº 6.683/79, nunca anistiou os agentes do regime militar; o que ocorreu, segundo eles, com relação a punição dos responsáveis pela criminalidade foi uma má interpretação da lei, quando se refere que os agentes estatais foram anistiados.[87]
Vejamos as palavras de Dalmo Dallari:
“A tortura de presos políticos era praticada por pessoas degeneradas, que se aproveitavam do posto que ocupavam para praticar este crime. As próprias leis da ditadura jamais colocaram a tortura de prisioneiros como objeto da ação do regime. Se em algum país perdoa-se torturadores, a interpretação é de que estaria ocorrendo auto-anistia, que não teria nenhum valor jurídico. Os próprios torturadores não podem se perdoar, o que seria um absurdo.”[88]
Com um pensamento contrário, temos José Carlos Moreira da Silva Filho, conselheiro da Comissão da Anistia, que acredita que a Lei de Anistia apesar de ser o marco da transição do regime autoritário para a democracia, ela representa uma política de esquecimento.[89]
De acordo com José Carlos Moreira da Silva Filho:
“Contextualizando um pouco mais o tema específico da ditadura brasileira, é preciso lembrar que a anistia de 1979, que, neste ano, completa 30 anos, revelou-se uma nítida política de esquecimento. Uma das consequências mais atrozes desse esquecimento imposto foi a impunidade dos agentes públicos que violaram até mesmo a própria lei que vigorava durante a ditadura militar, torturando, matando e desaparecendo com os restos mortais das suas vítimas”.[90]
Além de Lei da Anistia não ter concedido anistia a muitos perseguidos políticos e de não ter reconhecido a realização dos desaparecimentos forçados, não previu também nenhum tipo de indenização pelos prejuízos sofridos às vítimas.[91]
Conforme afirma Piovesan, é preciso se afastar a idéia de que a Lei de Anistia seria uma lei de “duas mãos”, que beneficia torturadores e vitimas, pois esta é uma idéia equivocada que se tem ao ler “crimes conexos” na lei. A grande controvérsia, nesse sentido estaria no fato de que muitos interpretaram a lei no sentido que ela anistiaria os agentes do Estado que cometeram crimes contra os direitos humanos. No entanto, esses crimes conexos significam que são crimes praticados por uma pessoa ou um grupo que se ligam em suas causas. Assim, impossível, afirmar que os crimes praticados pelos perpetradores são conexos as ações das vítimas.[92]
Como veremos mais adiante, o STF, em decisão recente, acabou entendendo que a referida lei é válida, não sendo possível assim restringir sua aplicação aos crimes comuns, excluindo a tortura de seu campo de aplicação, o que vai contra o posicionamento adotado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que também será abordada.
3.2. A COMISSÃO DE MORTOS E DESAPARECIDOS
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, instituída pela Lei nº 9.140/95 ou Lei dos Desaparecidos, que visa solucionar o caso de desaparecimentos e mortes ocorridas durante o período de 1961-1988 é vinculada à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Ainda a referida Lei marcou o reconhecimento por parte do Estado de sua responsabilidade pelo assassinato de opositores políticos durante o período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.[93]
Como objetivos da Lei nº 9.140/95, temos o reconhecimento pelo Estado da sua responsabilidade pelos crimes cometidos na ditadura civil militar, a criação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, indenização às vítimas e seus familiares, desarticulação dos órgãos de repressão política, entre outras medidas. Foi através desta Lei que foram declarados como mortos 136 pessoas que formavam uma lista anexa a Lei.[94]
Durante os onze anos de trabalho da comissão, foram julgados 475 processos. Destes, 136 casos que já constavam no Anexo I da Lei nº 9.140/95, obtiveram imediatamente o reconhecimento da responsabilidade por parte do Estado pelas mortes ou desaparecimentos. Os outros 339 casos foram objeto de análise e debate pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Resultando dessa análise, 118 indeferimentos e 221 deferimentos.[95]
No entanto a Comissão enfrentou muita dificuldade na busca por documentos e restos mortais. Nas pesquisas realizadas nos arquivos que foram abertos ficava claro que os documentos disponíveis eram apenas os de interesse do Estado, uma vez que páginas foram eliminadas, sequências inteiras de relatos foram subtraídas; bem como no reconhecimento dos corpos, tendo em vista que nos documentos constavam nomes falsos ou os corpos encontravam-se em valas clandestinas que nem mesmo registros possuíam. Através da reunião desses documentos e dos relatos obtidos pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, foi elaborado um livro contendo todo o dossiê produzido pela Comissão conjuntamente com os relatos e documentos.[96]
3.3. A LEI 10.559 DE 2002
Posteriormente, para regulamentar o artigo 8º do Ato das disposições Constitucionais Transitórias, o qual descrevia que seria
“Concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídico”[97]
Foi promulgada a Lei 10.559 de 2002, a qual em seu artigo 1º, implementou a Comissão da Anistia, que é ligada ao Ministério da Justiça e ainda fica responsável pela apreciação e julgamento dos requerimentos de anistia. Com a promulgação da referida lei é possível observar uma considerável mudança no conceito de anistia.[98]
Nesse sentido,
“O conceito de anistia que vem sendo trabalhada pela Comissão de Anistia é, portanto, muito diferente da anistia tradicional. Em primeiro lugar, ele não implica no perdão do Estado a um criminoso, mas sim no inverso, no pedido de desculpa do Estado por ter agido como um criminoso, na possibilidade de um perdão concedido pela vítima em relação ao ato criminoso do Estado.”[99]
Essa Lei prevê direitos como a declaração de anistiado político, a contagem de tempo para a aposentadoria entre outros.[100] Ainda, o art. 2º da referida lei estabelece quem são declarados anistiados político, como os “punidos com fundamento em atos de exceção, institucionais ou complementares, ou sofreram punição disciplinar, sendo estudantes”, “punidos com a cassação da aposentadoria ou disponibilidade”,[101] entre os demais elencados nos dezessete incisos.[102]
A Lei nº 10.559/02 é a responsável por tratar da seara da reparação. Ela estabelece duas fases para o cumprimento da reparação, quais sejam, a declaração de anistiados políticos, a qual pode ser considerada como um “ato de reconhecimento ao direito de resistência dos perseguidores políticos e também de reconhecimento dos erros cometidos pelo Estado contra seus cidadãos.”[103]
Já a segunda fase do processo de reparação estabelecido pela Lei nº 10.559/02 é responsável pela concessão da reparação econômica. Contudo, existe a possibilidade que alguém seja declarada anistiado político e não venha a receber nenhuma reparação econômica. Isso pode ocorrer, ou porque este já fora indenizado por legislações anteriores, ou seja, através da lei de anistia de 1979, muitas pessoas que haviam sido afastadas de seus cargos por apenas ter alguma filiação política já haviam sido reintegradas e recebido a indenização correspondente, ou pela perda do direito com o falecimento da vítima, tendo em vista que trata-se de direito personalíssimo[104], aqui entendidos como direitos absolutos, irrenunciáveis e intransferíveis, ou seja é um direito que não se transfere para os sucessores, exceto as viúvas e os dependentes.[105] Por esta razão a existência dessas duas “fases” da reparação, uma vez que ser declarado anistiado é diferente de receber uma reparação econômica.
A reparação econômica pode ser através de prestações mensais pagas as vítimas ou uma prestação única. É possível a escolha de qual reparação prefere, no entanto as duas não podem ser cumuladas. [106]
Contudo, há quem critique a reparação ocorrida no Brasil, chamando essas indenizações ou pensões pagas de Bolsa Ditadura, como Ricardo Noblat, em seu artigo para O Globo, o qual afirma que o Brasil já gastou mais de dois bilhões e meio efetuando as reparações e este valor deve aumentar consideravelmente, tendo em vista a fila de espera que existe. “Há casos clamorosos em que existe evidente desproporção entre a indenização paga e o dano alegado.”[107] Ainda de acordo com Elio Gaspari, que também publicou seu artigo na Folha de São Paulo e no O Globo, “aquilo que em 2002 foi uma iniciativa destinada a reparar danos impostos durante 21 anos a cidadãos brasileiros transformou-se numa catedral de voracidade, privilégios e malandragens.”[108] Ou seja, existe um sentimento de que as reparações pagas pelo Estado fugiram do seu foco principal, que era devolver, economicamente, aos cidadãos o que eles perderam em razão das atrocidades cometidas pelo Estado e se transformou na busca pelo enriquecimento.
De acordo com José Carlos Moreira da Silva filho a Lei nº 10.559/02 surgiu para estabelecer avanços com relação à Lei nº 6.683/79, no entanto não abrangeu todos os pontos necessários, uma vez que, de acordo com a Lei de 2002, há um privilégio aos que sofreram algum tipo de violação se este ocupasse algum cargo público em detrimento daqueles que eram estudantes militantes. Isso porque a lei privilegia os militantes que possuíam um emprego e foram demitidos por razões políticas. Assim o que possuía um emprego passou a receber uma prestação mensal no valor aproximado do que estaria recebendo se não houvesse sido demitido, já o estudante recebeu uma indenização que trata-se de 30 salários mínimos por cada ano de perseguição no limite máximo de cem mil reais.[109]Esta é uma das dificuldade que a Comissão de Anistia encara para a efetivação do direito à reparação, pois existia uma assimetria entre os valores reparatórios percebidos por diferentes anistiados. [110]
Pela existência dessa diferença entre os valores das pensões e aposentadorias e por alguns valores discrepantes que foram concedidos a Comissão de Anistia vem realizando uma revisão nos valores desses benefícios, reduzindo consideravelmente os valores. Essa ação apresenta uma economia de aproximadamente R$ 1,9 milhões nos valores pagos aos anistiados. Paulo Abrão Pires Junior, presidente da Comissão de Anistia, afirma que a Comissão não aceita que as indenizações exorbitem a realidade brasileira.[111]
Além disso, embora não haja previsão legal, é possível destacar ainda que uma das mais importantes políticas educativas e de memória implementadas pela Comissão de Anistia foram as Caravanas de Anistia, que consistem na realização de audiências públicas itinerantes para apreciação de pedidos de anistia política.
Estas caravanas percorrem as cidades para garantir uma participação da sociedade. Elas visam também resgatar e divulgar a memória brasileira através de debates sobre o período da ditadura civil militar.[112]Bem como contribuir para o conhecimento sobre os períodos de repressão ocorridos no Brasil e para a possibilidade de “recolocar no plano simbólico a violência negada e repetitiva.”[113] José Carlos Filho, afirma que as Caravanas servem também para que os jovens entendam que os problemas que existem hoje como “violência, corrupção, ausência de reforma agrária, problemas sérios no campo educacional e déficit democrático de um modo geral estão diretamente relacionados ao intenso período autoritário vivido no país a partir de 1964”.[114]
Além desse projeto das Caravanas, a questão da busca pela verdade e memória, destacam-se outros projetos: o projeto “Direito à Memória e à Verdade” que consiste em uma exposição itinerante de fotografias e a publicação do livro que aborda o tema da ditadura no Brasil; e o projeto “Marcas da Memória” que consiste na realização de audiências públicas, financiamentos à projetos e ações culturais que são organizados pela sociedade, publicação de obras sobre a memória, a anistia e a justiça de transição;[115] bem como o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias Reveladas, que é responsável pela produção de estudos e pesquisas sobre o regime político que vigorou entre 1964-1985.[116]
Outro importante projeto que a Comissão de Anistia implementou foi a construção do Memorial da Anistia, que consiste em organizar, arquivar e disponibilizar os autos dos processos da Comissão de Anistia aos interessados, bem como a disponibilização de um acervo de depoimentos orais gravados.[117]
Importante referir, para finalizar, que até o ano de 2010 a Comissão de Anistia analisou 59.163 pedidos, sendo destes, 35% (21.138) indeferidos e 65% (38.025) deferidos; sendo que ainda há aproximadamente 15 mil pedidos a serem apreciados.[118] O deferimento desses pedidos significa o reconhecimento solene das violações praticadas pelo Estado.[119]
3.4. A QUESTÃO DA PUNIÇÃO DOS CRIMES OCORRIDOS DURANTE A DITADURA CIVIL MILITAR – ADPF, DECISÃO DO CASO GOMES LUND E COMISSÃO DA VERDADE
Esta talvez seja a parte mais complicada de todo esse processo transicional. Isso porque durante o período militar, muitos crimes graves contra a humanidade foram cometidos, no entanto até o momento não há nenhuma decisão transitada em julgado contra os responsáveis pelas atrocidades, e tudo isso em razão da interpretação equivocada de Lei nº 6.683/79, ou seja, sob o fundamento de que a mesma não anistiou apenas os presos e exilados por crimes políticos, mas também aos agentes do Estado que cometeram os referidos crimes contra os direitos humanos.[120]
No ano de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou junto ao STF a ADPF/153 com o objetivo de garantir que a Lei de Anistia nº 6.683/79 fosse interpretada de acordo a Constituição Federal, “estabelecendo a inexistência de regimes jurídicos diferenciados para os anistiados políticos, independentemente da época e dos fundamentos legais da declaração de anistia.” [121] Nesta ADPF a OAB questiona a anistia concedida aos agentes do Estado que durante a ditadura civil-militar protagonizaram uma série de violações aos Direitos Humanos. Na mesma ação, requereu que fossem revelados os nomes dos militares e policiais que agiram em nome do Estado. [122]
Fábio Konder Comparato, que representou a OAB, posicionou-se no sentido de que a ação visava “recompor a posição de dignidade do Estado Brasileiro no concerto das nações, recuperar a honorabilidade das Forças Armada, após os atos de arbitrariedade, terrorismo, sequestro, assalto, tortura, atentado pessoal, praticados por integrantes da corporação contra opositores do regime militar.”[123]
É preciso atentar para a questão de que o crime de tortura e desaparecimento forçado violam a ordem internacional e, em razão de suas gravidades, são insuscetíveis de anistia ou prescrição. O crime de tortura é considerado um crime de lesa humanidade, sendo, assim, imprescritível, de acordo com a ordem internacional, bem como o crime de desaparecimentos forçado.[124] Há o entendimento de que esses crimes ocorreram em um contexto de ataques generalizados por parte do Estado brasileiro contra as pessoas que se opunham ao regime autoritário, e assim, caracterizariam crimes contra a humanidade, de acordo com o direito internacional público. [125]
Em que pese o crime de tortura seja reconhecido há anos no cenário internacional, apenas em 1997, através da Lei nº 9.455/97, é que o Brasil constitui o referido delito.[126]
Assim, segundo os doutrinadores de direito internacional, pelo fato do crime de desaparecimento forçado representar um crime permanente, não é possível definir um marco para contagem da prescrição. E nesse sentido, o Estado tem o dever de investigar e punir os responsáveis por estes crimes.[127]
Contudo, no Brasil, o crime de desaparecimento forçado ainda não possui regulamentação, estando a proposta de tipificação no Senado aguardando votação.[128]
De acordo com Santos,
“A prescrição não se coaduna com as características dos crimes contra a humanidade, pois a impunidade, sobretudo quando bloqueia qualquer processo, impede a formação de uma memória coletiva para que a sociedade possa se preparar para o futuro, deixando nas vítimas e familiares um contraditório sentimento que transita entre a vontade de esquecer os horrores e o de se realizar a justiça.”[129]
No entanto, o STF julgou improcedente a ação por sete votos a dois. Um dos principais, o fundamento utilizado pelos Ministros que votaram pela improcedência da ação foi que de houve um acordo realizado entre os dois lados.[130] Ainda, o Ministro Eros Grau sustentou que “não cabe ao Poder Judiciário rever o acordo político que, na transição do regime militar para a democracia resultou na anistia de todos aqueles que cometeram crimes políticos no Brasil.”[131] De acordo com Kenarik Boujikian Felippe, integrante da Associação Juízes Para a Democracia (AJD), essa foi uma lamentável decisão, tendo em vista que a decisão menospreza a luta pela redemocratização do Brasil.[132]
Contudo em recente decisão a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no Caso Araguaia, ou seja, responsabilizou o Brasil pelos crimes ocorridos durante a ditadura no Araguaia. O caso Araguaia refere-se a um movimento de resistência ao regime militar, integrado por alguns membros do Partido Comunista do Brasil, que aconteceu entre os anos de 1972 e 1975, onde aproximadamente setenta pessoas foram torturadas pelas forças do Exército Brasileiro ou desapareceram. [133]
Esta decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de certa forma se opõe a posição adotada pelo STF, que primeiramente entendeu que a Lei de Anistia era Constitucional e deveria ser interpretada de acordo com o momento político, jurídico e social nos quais ela foi promulgada. Isso porque para o direito internacional um Estado será considerado responsável quando ele viola uma obrigação internacional. [134]
Pela razão dos Tratados Internacionais estabelecerem duas obrigações para o Estado. A primeira seria a de quais sejam a de “respeito, isto é, existe uma obrigação de não-fazer, que se traduz na limitação do poder público face aos direitos do indivíduo”, aqui temos o exemplo dos direitos humanos agredidos durante a repressão, ou seja, o Estado não poderia exercer práticas que violassem esses direitos. A outra obrigação se revela na “garantia, que concretiza uma obrigação de fazer, consistente na organização, pelo Estado, de estruturas capazes de prevenir, investigar e mesmo punir toda violação dos direitos humanos”, esta obrigação é a que se busca com a justiça de transição.[135]
Se o Estado não foi capaz de prevenir, investigar e punir os seus agentes, as vítimas necessitam recorrer aos mecanismos internacionais. Nesse sentido é possível dizer que o dever de proteção aos direitos humanos vai além da competência nacional, não podendo ser reduzido ao domínio do Estado. Assim, a proteção dos direitos humanos trata-se de um assunto de repercussão internacional,[136]não cabendo ao Estado invocar o direito interno para se abster da responsabilidade por descumprimento da uma obrigação internacional em razão da Convenção[137] de Viena sobre Direito dos Tratados.[138]
Ainda que o Estado Brasileiro tenha criado a Lei nº 9.140/05, que de certa forma reconheceu a criminalidade do regime militar e acabou por possibilitar a indenização as vítimas e seus familiares, trata-se de uma medida considerada insuficiente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.[139]
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou importante o pedido formulado pela Comissão, para que o Estado crie de uma Comissão de Verdade. Essa foi uma importante iniciativa do Governo Luiz Inácio da Silva, e foi recentemente sancionada pelo Governo de Dilma Roulssef. Assim, as “Comissões de Verdade”, darão voz às vítimas para que elas contem a sua história e assim desmintam os relatos oficiais acerca do ocorrido no período ditatorial, bem como demonstrem que os atos de violação dos direitos humanos não foram fatos isolados na história.[140] Acima de tudo, elas buscarão alcançar o objetivo principal que é reconhecimento por parte do Estado de sua responsabilidade pelas mortes denunciadas.[141]
Para que o projeto que criou a Comissão de Verdade fosse aprovado na Câmara e no Senado ele sofreu algumas alterações, como a impossibilidade de punição dos torturadores, via Comissão. Nesse sentido, a então Presidente da República afirmou que caberá ao Judiciário definir sobre o julgamento de repressores e que a presente comissão visará unicamente a busca pela verdade e memória do nosso passado. [142]
De acordo com o artigo de Tarso Genro e Paulo Abrão,
“A recuperação da memória não se faz, portanto, sem o confronto de valores. Trata-se, menos de ‘punir os torturadores’ do que expô-los ao cenário da história, tal qual os perdedores, em regimes ditatoriais, foram expostos e, neste cenário, contrapor os valores que nos guiam e os valores que erigiram a fundação de regimes repressivos, que somente foram possíveis de serem implementados pela violência armada.”[143]
Assim, para a Corte a criação da Comissão de Verdade “servirá para cumprir a obrigação do Estado de garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido”.[144] Podendo ainda contribuir para a “construção e preservação de memória histórica, o esclarecimento de fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados períodos históricos de uma sociedade.”[145]
Contudo na opinião de Marlon Alberto Weichert ainda há no Brasil grupos que se opõem à abertura dos arquivos da ditadura, ou seja, não conseguem aceitar o Estado Democrático de Direito, não aceitam que a sociedade brasileira conheça o seu passado, aprenda, para que as atrocidades cometidas no passado não se repitam no presente e futuro.[146] Assim, ele acredita que a dificuldade na implementação de uma Comissão de Verdade está no Congresso, ou seja, este não entende a importância de se conhecer e saber o passado.
A decisão da Corte determinou a tipificação do delito de desaparecimento forçado como um crime contra a humanidade uma vez que viola os direitos à personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal[147] que o Estado deve estabelecer cursos para as Forças Armadas que visem a capacitação de integrantes das Forças Armadas sobre os princípios e normas de proteção dos direitos humanos e os limites a que devem ser submetidos. Cursos que versem sobre Direitos Humanos, para que estes entendam as violações que ocorreram durante a ditadura militar.[148]
Em que pese a existência de diversos programas que visam a construção da memória e da verdade e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil ainda possui muita dificuldade de superar essa etapa da busca pela memória e verdade, da abertura dos arquivos para as devidas responsabilizações e para poder esclarecer para a sociedade o ocorrido durante o período da ditadura civil-militar, uma vez que ainda existem arquivos sigilosos protegidos por lei (Lei 8.159/9 e Decreto 4.553/02).
CONCLUSÃO
Após, uma breve análise histórica no período da Ditadura Civil-Militar podemos verificar que durante este período os direitos humanos foram plenamente violados, com uma ampla proibição de manifestação política e cultural, ou melhor, só era permitido o que o Governo entendesse possível. Em razão dessas repressões vividas pela sociedade, surgiram movimentos voltados à efetivação dos direitos humanos. E essa “pressão” desenvolvida pela população resultou na promulgação da Lei de Anistia em 1979, um pouco diferente do projeto apresentado inicialmente. A referida lei é considerada o marco da redemocratização do país.
Contudo, a doutrina internacional calcada na perspectiva dos direitos humanos, tem entendido que os países que enfrentam períodos conturbados de ausência de democracia devem adotar medidas transicionais mais abrangentes.
No caso, a Justiça de Transição, a qual possui como características a busca pela verdade e construção da memória, a reparação das vitimas e seus familiares, a reforma das instituições do Estado e o restabelecimento da igualdade de todos perante a lei e que deveria ter sido implementada.
Sobre esse aspecto é possível concluir que em termos internacionais existe a necessidade de um novo entendimento com relação a proteção dos direitos humanos, a qual deve ir além da competência nacional, não podendo ser limitada apenas a soberania do Estado, pois a proteção dos direitos humanos é assunto de repercussão internacional.
No caso brasileiro entende-se que esse processo transicional não está completo, uma vez que embora tenha havido a Lei de Anistia de 1979, com outras Leis visando a reparação na sequencia (Leis nº 9.140/95 e 10.559/02), mesmo assim, o Brasil ainda não enfrentou o ponto da busca pela verdade e memória e punição aos violadores de direitos.
Verifica-se que em que pese o Brasil tenha declarado através do STF que a interpretação que adotou por mais de trinta anos acerca da Lei de Anistia é constitucional (ADPF 153), em recente decisão (Caso Gomes Lund e outros) a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou que a mesma é incompatível com as normas internacionais, declarando na mesma oportunidade a responsabilidade do Estado Brasileiro pelo descumprimento de normas internacionais a respeito do Caso Araguaia.
Desse modo, conclui-se também que em razão desta interpretação feita pelo Estado, durante todos esses anos, muitos objetivos e projetos do processo transicional tiveram sua atuação dificultada ou prejudicada.
O presente trabalho, portanto, estabeleceu uma base composta pela história da ditadura civil-militar no Brasil com a promulgação da Lei de Anistia para se chegar ao que hoje chamamos de Justiça de Transição. Também teve como objetivo expor e caracterizar detalhadamente os mecanismos criados para a efetivação dos ideais do processo transicional e as dificuldades encontradas por estes, para, enfim, chegar-se a analise do processo transicional brasileiro frente as instituições internacionais e a responsabilização do Estado brasileiro frente a estas instituições.
Acadêmica de Direito
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