Partindo da operação concreta da justiça penal juvenil, e estendendo a abordagem para a operação do sistema de justiça como um todo, o texto propõe que os desafios relacionados ao enfrentamento da violência e criminalidade não podem limitar-se a reformas gerenciais ou estruturais, visto que o problema não se resume à eficiência do sistema, mas à sua eficácia e efetividade, o que implica numa questão de conceito. Propondo o esvaziamento das sançoes meramente punitivas, que radicam num modelo de Estado e cultural em que a autoridade se afirma por meios violentos, reproduzindo violência, levanta a pertinência das abordagens restaurativas como mecanismos hábeis a promover responsabilização, função essencial à preservação da liberdade e da democracia e, com elas, à promoção de uma coesão social que pode se converter numa alternativa à coerção na efetivação do próprio Estado de Direito. A partir do relato da experiência do projeto Justiça para o Século 21, que promove práticas restaurativas no atendimento a violências envolvendo crianças e jovens em Porto Alegre, a vocação da jurisdição na área da infância e juventude para sediar práticas restaurativas é sustentada por seus aspectos políticos e estratégicos, bem como apresentam-se os fundamentos jurídicos da aplicabilidade do modelo no sistema legal vigente. A partir dessa experiência, por fim, são esboçadas algumas formulações quanto à incidência de uma abordagem responsabilizante na jurisdição penal juvenil, concluindo com as impressões vivenciadas pelos próprios participantes de processos restaurativos.
Fonte: Slakmon, Catherine F., Machado, Maíra Rocha e Bottini, Pierpaolo Cruz (org.). Novas Direções na Governança da Justiça e da Segurança. Brasília – DF: Ministério da Justiça, 2006.
Era uma manhã de inverno, no mês de julho de 2005, quando, encurralado por ameaças e agressões que estariam sendo impostas a ele e a sua família pela vítima, um rapaz de 17 anos eliminou com cinco disparos calibre 38 o vizinho hostil. Ocorrido num subúrbio de uma outrora pacata cidade de colonização alemã do interior gaúcho, o homicídio do entregador de jornal pelo filho da dona do carrinho de cachorro quente – fato pelo qual o rapaz foi condenado e preso – retrata uma realidade na qual se tornou comum a utilização de meios violentos, incluindo homicídios, como meio de resolução mesmo dos conflitos mais banais. No caso, a execução da vítima foi o momento culminante de uma sucessão de desentendimentos iniciados oito meses antes em razão de uma briga entre dois cachorros da vizinhança. Desde então, por três vezes antes do homicídio, em ocorrências diferentes, o problema aportou no sistema de justiça à busca de pacificação.
Os relatos do adolescente autor do homicídio e de sua mãe perante o juiz[1] apresentam uma síntese notável do quadro de violência evoluindo sob as vistas e, de certa forma, sob a discreta contribuição do sistema de justiça:
“Adolescente: O que posso dizer para o senhor eu tentei resolver até um pouco da outra maneira, da maneira certa, demos queixa dele várias vezes, que ele tentou me matar, que ele tinha arma em casa, que ele agredia a minha família, ninguém fez nada, a polícia não fez nada. Isso começou com outro vizinho que tomou as dores do meu cachorro, brigou com a cadela do vizinho e ele tomou as dores. Daí ele não deixava a minha mãe passar com o carrinho de cachorro quente, que a minha mãe vendia, não deixava passar em cima da calçada porque a calçada era dele. Pregava madeira na calçada, botava a moto, não deixava passar. A mãe deu queixa dele sobre isso aí, daí começou a rixa de família. Cada vez foi aumentando. Juiz: Moravam perto? Adolescente: Vizinhos. Juiz: De lado? Adolescente: É, tinha uma casa no meio. Juiz: Você não viu outra maneira de resolver isso? Adolescente: De repente até teria, mas… Juiz: …Você não viu, só viu essa. Você se sentia muito ameaçado por ele? Adolescente: Bastante, tanto que eu não ficava mais em casa. Estava morando na casa de uma prima minha porque eu não podia chegar em casa, ele ficava me esperando em casa. Juiz: Tinha acontecido alguma coisa entre você e ele concretamente? Adolescente: Uma vez ele veio atrás de mim, ele até efetuou alguns disparos de arma atrás de mim, eu consegui fugir dele. Juiz: Ele atirou? Adolescente: Atirou em mim. Eu fui na delegacia, dei queixa dele. Falei que tinha vindo armado atrás de mim, estava ele e mais um cara de moto. A gente teve audiência eu, ele e a mãe, não fizeram nada, não aconteceu nada. Juiz: Vocês tiveram a oportunidade de se encontrar depois no foro? Adolescente: Sim, ele até falou para o juiz, se arriando no juiz, “se o senhor quiser o senhor pode ir lá procurar, o senhor não vai achar arma em casa”. O juiz falou “tu acha que eu sou trouxa”, ele já batia de frente até com o juiz, ele é assim. Juiz: Antes de tudo que aconteceu vocês estavam com esses problemas e já tinham registrado duas queixas, uma por causa da tua mãe, e outra por causa dessa tua. Foram duas? Mãe: Não, foram mais. Juiz: A senhora pode falar. Mãe: Porque ele não deixava eu passar em cima da calçada ele colocava a moto na calçada. Juiz: A senhora tinha que sair ali para ir trabalhar com o carrinho de cachorro quente? Mãe: Sim. Eu tinha ido na delegacia, eu tinha ido na prefeitura, levei azulzinho lá. Uma vez multaram e nada adiantava, ele trabalhava no jornal. Então um amigo meu deu a idéia de nós tirar uma fotografia da moto em cima da calçada e publicar no jornal. Juiz: O jornal “dele”? Mãe: É o único da cidade, mas pelo menos podia ser que ele ia ganhar uma represália, alguma coisa. O meu amigo foi tirar a foto e ele e o pai dele saíram de dentro do pátio, o pai dele segurou o meu amigo e ele deu com um pedaço de pau. Aí chegaram duas viaturas. Juiz: Bateu nele? Mãe: Bateu muito, ficou muito, mas o meu amigo não fez lesão corporal. Juiz: Não fez exame? Mãe: Não, ele foi na delegacia, até nas audiências do ..(adolescente).., ele deu depoimento também. No outro dia de manhã eu saí de casa um pouco antes das 08 e quando eu estou passando na calçada deles a mãe do …(vítima)… levantou o cabo de vassoura e me deitou no chão. Juiz: O que quer dizer isso? Mãe: Me derrubou no chão. Juiz: A paulada? Mãe: Eu segurei o cabo. Juiz: Aí a senhora se desequilibrou? Mãe: Sim, e caí no chão. Como ela via que eu não largava o cabo para dar em mim ela me puxou os cabelos, eu não larguei o cabo daí ela me mordeu a mão. Eu até fiz corpo e delito. Mas depois do que aconteceu eu… Juiz: Depois do quê? Mãe: Depois do que o …(adolescente)… fez eu não continuei esse processo com ela, eu vim de muda. Juiz: A senhora se mudou? Mãe: Sim, na hora. J: A senhora tinha combinado com ele que ele tomasse “providências”? Juiz: Não, inclusive ele já vinha uns dois meses me pedindo para me mudar, sair daquela casa. Juiz: Ele (o adolescente)já tinha saído? Mãe: Sim, mas aquela casa era herança do meu pai eu não tinha onde morar. Eu tenho mais dois filhos, pagar aluguel não dá. Juiz: Eu fico lhe perguntando porque é que um fato tão grave, tão extremo, tão difícil da gente aceitar, e ele começa por coisas que são aparentemente muito pequenas. Mãe: Cada vez que ele enxergava o …(adolescente)… ou ele perseguia para afrontar “eu vou te matar, eu vou botar uma corda e te puxar na moto”, e a maneira que a gente viu ele agredindo o meu amigo, ele e o pai dele. Juiz: A senhora havia feito quantos registros de ocorrência dessa situação, ao longo de quanto tempo? Mãe: O primeiro registro eu acho que deve ter sido em novembro. Juiz: Esse fato aconteceu em julho de 2005. Em que ano foi? Mãe: Então novembro de 2004. Ele pregou madeira, botou madeira dentro da cerca e pregou na árvore na hora que eu ia sair de casa com o carrinho. Juiz: Isso é atravessando a sua calçada? Mãe: Isso, na calçada dele, que eu passava na frente. Juiz: Entre a árvore e a cerca a senhora não podia atravessar? Mãe: Sim. Juiz: A senhora registrou essa ocorrência. E a próxima? F: Janeiro ou fevereiro. Juiz: Que foi o quê? Mãe: Que a mãe dele me agrediu, e que o meu amigo apanhou. Juiz: Foi quando vocês foram tirar a fotografia? Mãe: Sim, mas nesse meio tempo eu botava o pé fora de casa eu escutava um desaforo. Juiz: Especificamente os registros policiais, o próximo que aconteceu foi já quando ele atirou contra o …(vítima)…? Mãe: Sim. Juiz: Nada mais.
Essa cadeia de incidentes evidencia o quanto o enfrentamento e a prevenção da violência não pode se resumir a estratégias de confrontação com o crime organizado, ou a modificações da legislação penal, ou a ações de integração comunitária, ou mesmo a reformas institucionais limitadas ao campo da gestão e da organização judiciária.
Os fatos expostos retratam a falta de efetividade do sistema de justiça em estancar a escalada da violência mesmo entre cidadãos que os laudos psicossociais apontariam – apesar da renda modesta – como personagens social e economicamente inseridos, membros do que esses mesmos laudos costumam referir como famílias estruturadas. Literalmente, um “arranca rabo” entre cachorros evoluiu para desentendimentos que se transformaram em hostilidades, agressões e morte. Com a agravante de que os episódios agressivos foram, reiteradamente, levados ao conhecimento da autoridade. Ao longo desses oito meses, segundo os depoimentos transcritos, quatro ocorrências policiais teriam sido registradas: a primeira quando a passagem pela calçada teria sido barrada com a moto e com a táboa, a segunda quando o fotógrafo teria sido agredido, a terceira, quando o adolescente teria sido “corrido a tiros” pela vítima. Mesmo assim continuaram sem resposta eficaz da justiça. A quarta – a morte do vizinho – ocorrência foi então a trágica resposta final.
A audiência no juizado especial criminal evidencia que se o problema evoluiu não foi por falta de eficiência, já que acesso e intervenção da justiça houve, e em tempo razoável – ao menos, pôde antecipar-se ao desfecho fatal. O que certamente faltou? Eficácia e efetividade. O que se demonstra aí é que o problema da justiça não se esgota em inovações gerenciais ou de estrutura organizacional. A principal lacuna a preencher é de conteúdo, e está relacionada à abordagem dos problemas que aportam no cotidiano da jurisdição. A propósito, o mesmo caso ainda ilustra o quanto o processo convencional, eminentemente acusatório, induz os envolvidos no conflito a esconderem suas armas e protegerem-se por detrás de escusas e atitudes formais, valendo-se de mecanismos legais que lhes permitem subtrair-se de qualquer responsabilidade e, até mesmo, se autorizarem a desafiar o juiz.
Falhas como estas não são falhas nem de estrutura nem de gestão, mas de valor e de concepção. Concepções que permitem aos conflitos transitarem por dentro do sistema de justiça, atravessando-o sem alcançar solução material. Sem uma solução capaz de estancar essa espiral de retro-alimentação negativa de emoções perturbadoras como raiva, ciúme, inveja, orgulho ou vingança – muitas vezes, potencializando-as, parte significativa dos conflitos, instalados à margem ou mesmo transitando por dentro do sistema de justiça, e tanto mais quanto menores pareçam, persistirá reverberando no mundo sob a forma de ações agressivas. Enquanto isso o sistema, tão perplexo ou conformado quanto a sociedade que o paga, assiste instalarem-se as soluções da justiça de mão própria em substituição do seu papel social esvaziado, num descrédito que se acumula sob a forma de frustrações concretas vivenciadas pelas partes de cada processo arquivado.
Enquanto os operadores da justiça lutam contra montanhas de processos e declaram vitórias parciais perante números sempre esmagadores, a operação insensível do sistema, arquivamento a arquivamento, abre mais e mais espaço à reinstalação da justiça de mão própria. Não são apenas acertos de contas sangrentos entre vizinhos outrora confiantes na lei que retratam esse declínio. Ele está exposto nas silenciosas cobranças de dívidas por tóxicos ao preço de vidas ou nas chacinas entre criminosos rivais – das quais pouco mais que algum estampido na vila e alguns corpos no IML será lembrado depois. Embora apresentada por diferentes atores e em diferentes graus, trata-se aqui, também, da mesma violência que retorna à cena sob a forma das tentativas de linchamentos de meninos assaltantes, dos corpos humanos se debatendo enquanto afundam no rio, na rotina das revistas truculentas impostas pela polícia aos cidadãos da periferia ou, ainda, nas prisões em flagrante que se convertem em sessões sumárias de julgamento e imposição de penas corporais.
Admitida a violência como resultante de uma trama de fatores complexos e interdependentes, não é difícil deduzir de um quadro desses a justificativa para a banalização de sacrifícios que vão desde vizinhos em discórdia às vítimas de assaltos, ou até mesmo para o rebelamento organizado e selvagem das populações carcerárias, ou, ainda, a vingança cruenta e sumária com que lhe respondam as forças policiais.
A cada um desses gestos, com seu significado secreto e sem que suas queixas veladas se escutem, a espiral da violência prospera proporcionando entropia, sofrimento e horror.
Justiça, acolhimento e escuta.
Se a lei é pai e limite, a justiça deveria ser mãe, acolhimento e escuta. Os olhos vendados da deusa lembram a importância do ouvir, antes de pensar, pesar, julgar. Antes: que os ouvidos sintam antes que os olhos concluam. Ouvir antes: antes que os pré-conceitos julguem. Uma justiça isenta, acolhedora e dialógica – equivalente a uma justiça que não parta dos pressupostos da imputação, investigação, culpa e castigo – haveria de ser capaz de escutar a cada um e dar voz e vazão a suas dores, dramas e tragédias. Andar sete dias e sete noites nas sandálias do pecador. Nem tanto: sete minutos para ouvir cada pessoa na inteireza da sua humanidade, respeitado o limite das próprias circunstâncias, talvez bastassem. Meninos de rua, policiais, taxistas, vítimas de assaltos, viúvas do latrocínio, adolescentes infratores ou suas mães: que qualquer um enfim pudesse comparecer a uma sala de audiências – ou a qualquer outro espaço mais adequado, mas não menos simbólico, dedicado à escuta do conflito – para expressar a turbilhão de sentimentos e emoções subjacentes às causas e aos efeitos da infração. Livres para não ter de proteger-se das terríveis ameaças da deusa enfurecida e livres para transparecer aquilo que, pelas vias tormentosas da violência, fizeram ouvir sob a forma de uma impronunciada demanda: a demanda pela satisfação de suas necessidades – as quais, por se reduzirem em regra à satisfação de valores, quando não de direitos, no mais das vezes ecoarão um grito universal, quase sempre trazendo um fundo humano legítimo por mais que inadmissível seja sua estratégia de reivindicação.
Uma escuta assim qualificada permitiria realizar a verdade da precisa formulação de Marshall Rosemberg (2006), para quem todo ato de violência é a expressão trágica de uma necessidade não atendida. Necessidades que, por mais diversas – respeito, inclusão, dignidade, participação, reconhecimento, toda sorte de valores, a maior parte já firmados como direitos fundamentais da pessoa humana, enfim, podem ser resumidas numa única e última fórmula: justiça. Simplesmente justiça.
Posto assim que a cada violência subjaz uma demanda – ainda quando expressa de forma injusta – por justiça, o que se pede quando se pede justiça? A descoberta é que o reverso acaba por ser também verdadeiro, e nele reside a raiz de todos os enganos e males. Desde que os iluministas conceberam o Estado moderno como resultante de um contrato social no qual em troca de segurança os cidadãos lhe delegam a função de garantir a ordem e a justiça, concebe-se também a justiça como meio para o exercício do monopólio da violência estatal. Essa concepção, que cristaliza os principais vetores (hierarquia, verticalidade, unilateralidade, controle, submissão) de uma cultura patriarcal arraigada desde os primórdios da civilização (MATURANA, 2005) induz a crer que reivindicar justiça implica reaver a força impositiva da violência, agora legitimada pela mediação do Estado-juiz, para ser colocada em favor da pretensão – necessidade, valor – inatendida. Justiça como violência legal e legítima, mas não menos violenta, pois. Violência traiçoeira, porque radicada desde a raiz principiológica do modelo de Estado, sustentada por toda a dogmática jurídica, invocada e exercida com fundamento constitucional. Não admira que seus resultados, quando não esvaziados no percurso, resultem na manutenção de uma ordem social violenta e violentadora.
Nesse diapasão prosseguem outros fluxos e refluxos: se a justiça que se concebe para responder às violências é por sua vez violenta, há que se construir respostas para conter a violência da justiça. Conquistas da humanidade e do cidadão: o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, o terceiro imparcial e justo, as nulidades e os recursos por todas as vias e a todas as instâncias, enfim. Dado o pressuposto de que à acusação sobrevirá vingança e punição, o processo acusatório se instala como uma arena especializada em evasivas, embates, hipocrisias, mentiras e desencontros, onde toda sorte de artifícios para subtração de responsabilidades são admitidos e utilizados, muito mais contribuindo para aprofundar conflitos do que para pacificá-los.
Pois se a força da vingança estatal é assim tremenda (as populações carcerárias que o digam), de sã consciência quem daria a mão à palmatória? Além da mentira a que já recomendaria o bom senso, as relações atravessam os filtros da falácia jurídica, instalados em ambientes suntuosos onde transita uma cultura requintada, que se locupleta solvendo questões de alta indagação. Versados acusadores, defensores e julgadores atêm-se aos mínimos detalhes: pressupostos, requisitos, formas, ritos, provas, prazos, preclusões, cálculos e quantificações. Um balé de movimentos sofisticados e unívocos, dedicados a fazer ouvir a voz da lei. Mas caberia ouvir a voz das pessoas, numa arena assim?
Mude-se a raiz, mude-se o mal: se a coerção violenta é o principal atributo operacional a garantir a eficácia do ordenamento jurídico através do sistema de justiça, e do qual entretanto não se pode prescindir, a questão remete a outra, mais uma vez apontada com precisão por Marshall Rosenberg(2006), que é a questão relacionada à necessidade de distinguir entre o uso da força e o uso da violência. Isso levará à conseqüência de que a força pode e deve ter um uso protetivo (da ordem jurídica) que não pode se confundir com seu emprego violento: a força deve ter legitimidade, a violência não. Esse o requisito para uma justiça capaz de promover responsabilidade e não mera submissão. E diante disso, dado que o esgotamento do sistema punitivo de justiça equivale ao esgotamento dos mecanismos heterônomos de controle de comportamentos, ou seja, o esgotamento da eficácia dos vetores tradicionais, da ordem externamente imposta, só um modelo fundado na promoção da autonomia do sujeito e na coesão da sociedade poderá oferecer uma saída de auto-regulação social: onde houver coesão, a coerção pode ser aliviada. Essa a força que se distingue da violência, instituindo a força da autoridade, e não a autoridade da força. Força moral, porque fundada em valores, antecedendo a força jurídica e os garrotes da coerção.
Justiça e Responsabilidade.
Embora atinentes à justiça penal juvenil, a reflexões oportunizadas pela experiência com a Justiça Restaurativa em Porto Alegre vem demonstrando na prática que, independentemente do contexto normativo ou da área de aplicação institucional que se escolha para abordar, as principais falhas do sistema de justiça residem em (a) não promover uma escuta qualificada dos conflitos, (b) não atender às necessidades a eles subjacentes, e (c) não promover responsabilização. Sobre esse último aspecto está centrada a ênfase das presentes reflexões.
No que interessa à gestão do processo político em que se insere a garantia de direitos através da prestação juriscional: no campo dos interesses individuais, responsabilidade é o atributo indispensável ao exercício do valor máximo representado pela liberdade: não se pode exercer liberdade sem limite, sem respeito: responsabilidade perante o outro. No campo dos interesses coletivos, responsabilidade é o atributo indispensável ao exercício do valor máximo representado pela democracia. Não se pode exercer democracia sem que cada cidadão tenha presente as conseqüências de suas escolhas e o peso da sua participação: responsabilidade perante todos. Somente relações pautadas pela responsabilidade perante o outro e pela responsabilidade para com todos pode instalar um ambiente de confiança. A confiança, pressuposto da coesão, é a contrapartida (perante o outro) e o dividendo (para todos) da responsabilidade. A responsabilidade é o tributo da confiança. E assim como sem responsabilidade não há confiança, sem confiança não há restauração, nem justiça, e sem justiça não há coesão social. Em cada fissura da sociedade que esquecida dessa fórmula se desagrega, o gérmen oportunista da violência instala a dor e a destruição.
Sendo as instituições da justiça investidas da função de garantidoras, em última instância, dos princípios regentes do Estado representados pela liberdade e pela democracia, a proposta de promover responsabilização não se justifica apenas como foco central da administração da justiça, mas passa a constituir-se numa contribuição à efetividade do próprio Estado Democrático de Direito. Uma justiça que promova autonomia e responsabilidade promove coesão, garante direitos e estabiliza relações sociais, fundamentando a constituição de um “Estado de Responsabilidade Social”.
Lode Walgrave[2], citado por Mylène Jaccoud (2005), propõe que, ao referenciar-se nos prejuízos e adotar como meio a obrigação de restaurar, o modelo restaurativo de justiça projeta, para além do Estado opressor correlacionado ao modelo punitivo de justiça, ou do Estado providência correlacionado ao modelo reabilitador de justiça, a idéia da construção de um Estado responsável – contraparte do empoderamento que leva os participantes dos procedimentos a se investirem de uma responsabilidade ativa enquanto cidadãos.
Ora, se a construção de um Estado responsável e de uma atitude ativa do cidadão passa a ser um objetivo ao alcance e na dependência do seu modelo de justiça – que desde a esfera institucional, por seu lugar simbólico, influencia todas as práticas sociais em que se exerçam funções análogas – então é de admitir-se que, embora valores como inclusão, encontro, reparação e reintegração possam ser citados como valores restaurativos da maior relevância (SCURO, 2003), melhor se aplicarão ao campo dos processos restaurativos, ao tempo em que a responsabilização deveria ser o valor restaurativo de maior relevância enquanto resultado almejado pelo procedimento.
Definir um foco – dado pela percepção das conseqüências do delito e compromisso com sua reparação – e direcionar a ele não somente o olhar do infrator, mas de todas as pessoas e comunidade a ele relacionadas, inclusive funcionários da rede de atendimento e operadores do sistema da justiça, seguramente vem sendo a contribuição mais relevante das idéias restaurativas no campo da jurisdição penal juvenil.
Ao contrário da justiça tradicional, que se ocupa predominantemente da violação da norma de conduta em si, a justiça restaurativa ocupa-se das conseqüências e danos produzidos pela infração. Valoriza a autonomia dos sujeitos e o diálogo entre eles, criando espaços protegidos para a auto-expressão e o protagonismo de cada um dos envolvidos e interessados – transgressor, vítima, familiares, comunidades – na busca de alternativas de responsabilização. Partindo daí, fortalece e motiva as pessoas para a construção de estratégias para restaurar os laços de relacionamento e confiabilidade social rompidos pela infração. Enfatiza o reconhecimento e a reparação das conseqüências, humanizando e trazendo para o campo da afetividade relações atingidas pela infração, de forma a gerar maior coesão social na resolução do conflito e maior compromisso na responsabilização do infrator e no seu projeto de colocar em perspectiva social seus futuros modos de interagir.
A justiça restaurativa corresponde a uma atitude transformadora que, quando fiel aos valores restaurativos, também no campo das estratégias políticas haverá de optar pelo não-conflitual, por dialogar com o próprio sistema para acolhê-lo em sua imperfeição e respeitar a sua diversidade. A partir daí, inocula-se nas fissuras do sistema, em suas frestas, como um vírus, ou melhor, como um anticorpo à violência institucional, como um gérmen silencioso da mudança. Nisso, a pertinência do sentido de ‘complementaridade’: pela disponibilidade de convívio com o próprio sistema, dentro do próprio sistema (embora indo além dele), pela oportunidade de enriquecê-lo (no sentido de atribuir-lhe algo que no momento lhe falta), e transformá-lo (ou seja, a partir do pontual, reconstruí-lo para que institucionalmente incorpore a superação dessas faltas).
O que se traz de novo com a Justiça Restaurativa não são nem exatamente valores, mas atitudes que se inspiram neles. E, derivados dessas atitudes, novos procedimentos, aptos a comunicarem de forma fidedigna esses valores. E o que advém de mais relevante são, sobretudo, questionamentos que não apenas redirecionam o foco, mas instalam um novo modo de olhar a Justiça.
A experiência de Justiça Restaurativa em Porto Alegre
Como a justiça pode ser mais efetiva ao promover responsabilização, sem oscilar entre estratégias violentas, por um lado, ou permissivas, por outro?
Como evitar abordagens meramente punitivas, ou meramente terapêuticas, e desenvolver estratégicas que respeitem a autonomia do sujeito e da sua comunidade, ao mesmo tempo em que promovam o protagonismo responsável de todos na resolução sustentável dos próprios problemas?
Responder a essas e outras indagações relacionadas é o objeto da investigação desencadeada pela testagem das concepções da Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça da Infância e da Juventude e, dentro dela, mais especificamente, da jurisdição penal juvenil, pelo projeto piloto do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre.
A experiência, como já se pode adiantar, não se esgota no terreno das aplicações operacionais, mas tem seu ponto de partida e seu principal impacto na crítica e na transformação da cultura, procedimentos e estrutura institucional de um sistema ambíguo, até aqui vocacionado a promover privações e castigos sob uma justificação que oscila entre abordagens inespecíficas que mesclam o assistencial, o educativo e o terapêutico.
Denominado “Justiça para o Século 21”[3], esse projeto tem sua retaguarda institucional na AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e na respectiva Escola Superior da Magistratura, e sua implementação está ancorada na 3ª Vara do Juizado da Infância e da Juventude, competente para executar as medidas sócio-educativas aplicadas a adolescentes infratores. Suas diferentes atividades e eixos de aplicação são apoiados pelo Ministério da Justiça e pelo PNUD, através do projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro, e pela UNESCO e pela Rede Globo, através do Programa Criança Esperança. Além do engajamento operacional da promotoria de justiça e da defensoria pública em atuação na 3ª Vara, também são parceiros da execução direta a FASE – Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (antiga Febem), que executa as medidas sócio-educativas privativas da liberdade; a FASC – Fundação de Assistência Social e Cidadania, órgão da assistência social municipal responsável pela execução das medidas sócio-educativas de meio aberto; a Secretaria Estadual de Educação; a Secretaria Municipal de Educação; e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, através da Guarda Municipal. Esse rol é complementado por um leque de outras dez instituições relacionadas à área da infância e da juventude, todas firmatárias de um protocolo formal comprometendo-se a engajar suas estruturas institucionais e recursos humanos na consecução dos objetivos do projeto, que se propõe, genericamente, a implantar práticas restaurativas para resolver situações de violência envolvendo crianças e jovens em Porto Alegre.
As atividades atualmente[4] em execução derivam de um planejamento macro-estratégico, concebido no âmbito do Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da Escola Superior da Magistratura em dezembro de 2004, que propôs organizar o processo de introdução das práticas restaurativas na rede de proteção à infância e juventude da capital gaúcha em quatro áreas estratégicas: 1) Processos Judiciais, 2) Atendimento Sócio-Educativo, 3) Educação, 4) Comunidade.
A partir do início de 2005 viabilizaram-se os meios para a introdução das práticas restaurativas no âmbito dos processos judiciais (área estratégica 1), em parceria com a Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça e PNUD, decorrente da escolha de Porto Alegre para sediar um dos três pilotos do projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro. Esse projeto foi o disparador de um conjunto de atividades que evoluíram significativamente ao longo do ano de 2005, e tiveram como principal produto a criação de um grupo de trabalho interinstitucional incumbido da gestão e planejamento do projeto, integrado por operadores jurídicos e técnicos das instituições antes indicadas como parceiras executoras.
Formou-se a partir daí um grupo de trabalho, denominado “G11”, que foi o principal destinatário das capacitações para a coordenação de círculos restaurativos. Esse grupo também ficou responsável pela elaboração de procedimentos e implementação das práticas restaurativas nos processos judiciais, além de atuarem como facilitadores na integração institucional, visando multiplicar conhecimentos e apoiar as diversas atividades relacionadas à execução do projeto, principalmente as jornadas de capacitação, a instalação de grupos de estudos e a implementação de práticas restaurativas. A composição interinstitucional desse grupo respeitou uma concepção holográfica, contemplada desde o plano estratégico originalmente concebido (áreas estratégicas 1 a 4), procurando agregar profissionais representativos dos diversos segmentos a serem progressivamente envolvidos. Objetivou-se com isso, mesmo que se antecipando às etapas seguintes, criar uma rede de multiplicadores para irradiação do conhecimento e informações sobre o andamento do projeto nos respectivos espaços profissionais.
Esse mesmo grupo de profissionais encarregado da aplicação das práticas restaurativas colabora também na gestão e planejamento do projeto. Com essas atribuições de Coordenação Executiva, o grupo é ampliado pela presença do Juiz, da Promotora e da Defensora Pública da 3ª Vara, e também a Coordenadora de Pesquisa da Faculdade de Serviço Social da PUC, suas assistentes de pesquisa, e de um procurador de justiça representando a Escola Superior do Ministério Público[5].
Ancorado e alavancado o processo na parceria com a SRJ / PNUD, sucedeu-se, a partir de agosto de 2005, o início da execução da etapa do projeto apoiada em recursos financeiros do Programa Criança Esperança, da UNESCO / Rede Globo, a qual se voltou à incorporação e implantação de práticas restaurativas no âmbito do atendimento técnico das medidas sócio-educativas (FASE e FASC), correspondente à área estratégica 2. Respeitando a concepção sistêmica do planejamento original, e embora a ênfase no atendimento sócio-educativo, antecipou-se a inclusão de representantes da área da educação (área estratégica 3) no novo grupo de trabalho capacitado para multiplicar as práticas restaurativas, de modo a ser incluído desde logo, a título de prospecção, também um grupo de escolas públicas.
A execução dessa etapa teve seu marco inicial com a realização de um “Curso de Práticas Restaurativas”, com 61 participantes representando escalões técnicos e gerenciais das instituições parceiras, bem como de servidores que atuam na ponta do atendimento a crianças e jovens em 28 espaços institucionais estrategicamente escolhidos para cobrir toda a área urbana da Capital: 6 Unidades de Privação da Liberdade (FASE); 8 Centros Regionais de Atendimento das Medidas Sócio-Educativas de Meio Aberto (PEMSE/FASC); 6 Escolas Estaduais (SE) e 8 Escolas Municipais (SMED).
Entre inúmeras atividades de divulgação, mobilização e articulação viabilizadas com os recursos investidos neste projeto, destacam-se: a) formação de um colegiado de coordenação interinstitucional; b) formação de um “grupo de referência”, denominado G60 e integrado pelos multiplicadores participantes do Curso de Formação em Práticas Restaurativas; c) realização do Curso de Práticas Restaurativas, fornecendo um programa de referência para futuras novas atividades de formação (já testado com sucesso com uma turma com 45 Guardas Municipais, com apoio do PNUD); d) formalização de um Protocolo de Intenções abrangendo o compromisso de 18 instituições engajadas na promoção de práticas restaurativas; e) criação do site do projeto (www.justica21.org.br), destinado à difusão de conteúdos e interação entre o pessoal envolvido; f) criação de grupos de trabalho interno em cada instituição parceira para promoção dos objetivos do projeto (FASE, FASC, SE e SMED) e g) compromisso institucional com a criação de grupos de estudos em cada um dos citados 28 espaços institucionais de implementação experimental das práticas restaurativas.
A partir do início de 2006, as principais atividades do projeto passaram a ser concentradas e impulsionadas a partir de um mecanismo operacional unificador representado pela criação de um novo espaço denominado “Central de Práticas Restaurativas”. A criação desse espaço resultou da avaliação das etapas iniciais da implantação, e representa a consolidação de três frentes de necessidades a serem atendidas: 1) otimizar as aplicações práticas, 2) viabilizar capacitações em serviço e 3) sistematizar e ampliar a supervisão técnica.
A Central de Práticas Restaurativas é um espaço de serviço interinstitucional, coordenado pela 3ª Vara do Juizado, destinado a promover práticas restaurativas em processos judiciais na porta de entrada do sistema de atendimento do ato infracional, junto ao CIACA – Centro Integrado de Atendimento da Criança e do Adolescente. Esse espaço atualmente passou a sediar o núcleo de difusão operacional das práticas restaurativas na Rede da Infância em Porto Alegre. Com sua criação, os procedimentos restaurativos no âmbito dos processos judiciais passaram a ser instaurados, preferencialmente, já no momento do ingresso dos novos casos no sistema de justiça, que ocorre junto ao CIACA, onde se encontra o Projeto Justiça Instantânea (JIN), representando a atuação integrada entre o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Delegacia Especializada da Criança e do Adolescente (DECA).
A origem dos encaminhamentos é variada. Porto Alegre tem quatro juízes da infância, cada qual com sua percepção, disponibilidade e motivações próprias quanto à validade e utilização das práticas restaurativas[6]. A maior parte dos encaminhamentos tem ocorrido nos processos de conhecimento, provindos da audiência inicial de apresentação (equivalente ao interrogatório do processo criminal). Nesse momento o juiz pode suspender a audiência e encaminhar o caso ao círculo restaurativo, cujo acordo poderá subsidiar a aplicação da medida em prosseguimento, ou desde logo ajustar genericamente a medida, encaminhando ao círculo para, já sob a competência do juízo do processo de execução, serem melhor especificados os compromissos a serem abrangidos no cumprimento da medida. Também na audiência de instrução poderá tornar-se oportuno o encaminhamento, especialmente porque este será o momento do contato do juiz com a vítima. Especialmente nos fatos de maior impacto psicológico, como por exemplo em roubos, esse momento, que em regra sucede algumas semanas após a ocorrência, pode se afigurar emocionalmente mais propício para abordagem da vítima – preferencialmente depois da sua oitiva pelo juiz, até então, nesses casos, mantendo-se os moldes do processo convencional. Também nos processos de execução de medidas sócio-educativas são originados casos para atendimento em círculos restaurativos, em regra nos casos de adolescentes privados da liberdade e em razão da identificação de peculiaridades que o tornam propício para o procedimento, o que se verifica nas audiências de revisão (semestrais) da medida. Além destes, alguns outros casos, ainda poucos é verdade, também já têm sido encaminhados para os círculos diretamente pela promotoria, mediante exclusão do processo (procedimento diversório).
A coordenação dos círculos restaurativos encaminhados à Central de Práticas Restaurativas está a cargo de quatro técnicos judiciais, duas técnicas da FASE, duas da FASC, uma da Secretaria Estadual da Educação, uma da Secretaria Municipal da Educação, e um da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, que formam o “núcleo duro” sobre o qual se encontra ancorada a implementação do Projeto (G11). A distribuição dos casos é feita em sistema de rodízio, na proporção das cargas horárias disponíveis, com uma capacidade instalada de atendimento estimada em até dez casos por semana. Na medida em que se consolida a capacitação desse grupo de base, novos técnicos em treinamento vão sendo incorporados às atividades da Central, inicialmente como co-coordenadores e depois como coordenadores. Com isso, pouco a pouco deverão transitar pela Central profissionais oriundos de todas as instituições parceiras, com objetivo de capacitação em serviço[7]. Os círculos são filmados e os casos escolhidos são exibidos em reuniões mensais de supervisão, quando os passos do procedimento são revisados e discutidos. As supervisões estão programadas em jornadas de três dias, com participações distribuídas segundo o nível de capacitação dos interessados: um dia para supervisão interna do grupo básico (G11), um para novos coordenadores em processo mais avançado de formação (especialmente os participantes do curso de 2005, ou G60), e um dia aberto para coordenadores iniciantes e demais interessados. O método utilizado na coordenação dos encontros é baseado na Comunicação Não-Violenta, proposta por Marshall Rosenberg (ROSEMBERG, 2006) e disseminada no Brasil pelas capacitações de Dominic Barter[8].
Além dos casos de aplicação na esfera judicial, encaminhados através da Central de Práticas Restaurativas (o campo de aplicação principal), no curso de 2006 o projeto está abrangendo também o acompanhamento de casos de aplicação no âmbito administrativo, como na elaboração dos planos de atendimento das medidas sócio-educativas (campo em testagem) e nos casos de conflitos nas escolas (campo de prospecção). Tais aplicações em regra são realizadas nos próprios estabelecimentos parceiros, embora algumas vezes mediante a coordenação ou supervisão dos membros da Central de Práticas Restaurativas.
Por mais que abrangendo diversos campos da atuação da justiça e das políticas de atendimento à infância e à juventude, e com isso oferecendo uma experiência plural, o piloto tem-se concentrado nos atos infracionais (esferas judicial e administrativa) e nos incidentes disciplinares em escolas (ocasionalmente, via processos judiciais, também se estendendo a situações disciplinares em abrigos e unidades de internação). O foco, portanto, é dedicado à atuação infracional, embora desdobrando-a para situações correlatas, ainda que sem relevância típica para efeitos penais, ou passíveis de solução em âmbito menos formal.
Deliberadamente, por uma questão de preservação do foco da experiência de modo a consolidar a construção de habilidades, têm sido evitadas as aplicações em situações relacionadas a conflitos familiares e crimes sexuais. Isso porque, tanto da experiência prática quanto da literatura pesquisada, já se concluiu pelo alto grau de especificidade e exigência dessas áreas de aplicação, entre cujas dificuldades enfrentam-se as de (a) evitar revitimização, (b) assegurar efetiva isonomia aos participantes durante o círculo, (c) proteger as vitimas de eventuais represálias consecutivas à alta exposição vivenciada no círculo, já que as relações familiares estabelecem contato continuado (d) manter o foco num único fato e (e) preservar a experiência de confusões entre a abordagem restaurativa e abordagens terapêuticas. Essa opção também esclarece o porquê de a testagem ainda não estar sendo estendida aos atendimentos pelos Conselhos Tutelares, cujas rotinas envolvem, sobretudo, conflitos familiares.
Todo o processo de implementação do projeto vem sendo monitorado pela Faculdade de Serviço Social da PUCRS. Reuniões de articulação, planejamento e gestão, eventos de capacitação, e aplicações de práticas restaurativas são documentados através da equipe de pesquisadores, visando à sistematização e avaliação da experiência. A coordenadora da pesquisa participa de todas as atividades, oferecendo feed backs sobre o andamento conjunto do projeto e de suas aplicações setorias, de modo a contribuir para sua gestão estratégica e participativa, a cargo do grupo Coordenação Executiva.
O Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da Escola Superior da Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS é o principal espaço acadêmico dedicado aos temas restaurativos junto à comunidade dos operadores do projeto. Seus encontros mensais reúnem em média 40 pessoas de diversas disciplinas e instituições, funcionando como um grupo de leitura e discussão de textos, com foco na realidade cotidiana dos participantes. A AJURIS e sua Escola da Magistratura têm sido, também, as principais referências institucionais na articulação das parceiras, gestão dos projetos e na realização das intensivas atividades de divulgação e capacitação, que acontecem, em sua quase totalidade, nas dependências da Escola.
A Justiça da Infância e da Juventude como laboratório de boas práticas.
Considerada a contribuição de seus resultados no que se refere à prevenção ao delito, pelo potencial de interromper as cadeias de reprodução de pequenas infrações e violências, e evitando a cooptação de jovens pelas ondas de ação criminosa, a justiça da infância e da juventude representa um campo de ação estratégica na prevenção do alastramento da violência e da criminalidade. Mas mais do que isso, porém, essa área da justiça é vista pelo projeto como um espaço estratégico para testagem e implementação de tecnologias restaurativas, que poderão ressignificar a abordagem do crime e atualizar o próprio modelo de justiça, em benefício da sua efetividade.
A exemplo do que sucedeu com a experiência da Nova Zelândia, onde sua oficialização, a partir de 1989, através desse segmento do sistema de justiça, representou um marco histórico na consolidação da Justiça Restaurativa não só naquele país mas para o mundo, também no Brasil a Justiça da Infância e da Juventude se mostra como um laboratório privilegiado para o desenvolvimento e difusão das práticas restaurativas. Os argumentos a seguir elencados permitem compreender melhor o contexto da experiência local, mas também podem fundamentar a escolha da justiça da infância e juventude, estrategicamente, como “berçário” da Justiça Restaurativa no Brasil. Uma opção nesse sentido se justificaria:
Primeiro, porque se trata do campo da atividade jurisdicional pioneiro em abrir-se para a atuação interdisciplinar, um traço histórico consagrado inclusive pela previsão de dotação orçamentária pela própria lei federal (ECA, artigos 150). Embora originalmente a colaboração técnica das denominadas “equipes interprofissionais”, tivessem um foco mais estreito, voltado à produção de laudos periciais, o conceito legal evoluiu para reconhecer uma função de assessoramento e passou a abranger uma atuação mais dinâmica e propositiva do que a tradicional atividade diagnóstica.
Segundo porque, se internamente sua vocação é por natureza e por lei interdisciplinar, externamente a justiça da infância e da juventude é vocacionada à interinstitucionalidade. Mais do que vocação, trata-se de uma dependência, ou, ainda melhor, de uma interdependência, que decorre do caráter indissociável entre jurisdição e administração na efetivação dos direitos. As decisões judiciais somente alcançam sua efetividade material mediante a operação eficaz da rede de atendimento, exigindo integração tanto nas áreas relacionadas ao acesso à justiça (polícia militar, polícia civil, ministério público, defensoria, judiciário) quanto na sua efetivação (principalmente os serviços relacionados às políticas de assistência social, saúde e educação). Essa interdependência passa a exigir uma atuação sistemática dos operadores jurídicos, por si ou por suas equipes de assessoramento, no âmbito da gestão operacional e institucional, bem como no relacionamento político e comunitário.
Terceiro porque, sendo destinadas à satisfação de necessidades de crianças e adolescentes, as soluções são sempre prementes. E também porque, sendo a rede institucional multifacetária, complexa e fragmentada, imprime-se também uma elevada exigência em termos de eficácia gerencial para fazer operar as diferentes modalidades de soluções. Com efeito, dada sua inserção centralizada e sua elevada densidade institucional, uma justiça da infância burocrática e morosa desestabiliza a operação de toda a rede de atendimento, visto que é capaz de imprimir seu ritmo a boa parte dos serviços correlacionados. Mas por mais que se mantenha numa cultura arcaica, marcada pelo formalismo e pelo autoritarismo, a inserção dos juizados da infância nessa cadeia orgânica de demandas e serviços resta por lhe submeter também, pela conjuntura operacional, a um nível diferenciado de eficácia se comparado com os demais órgãos da jurisdição.
Quarto porque a justiça da infância e da juventude enfrenta permanente exigência de flexibilidade na escolha e aplicação das normas, historicamente sendo uma justiça orientada mais por princípios do que por regras, visto que vocacionada para soluções “ad hoc”. Embora resida aí muito do seu desprestígio, dada a face viciosa dessa característica tender ao autoritarismo e à discricionariedade, também aí reside seu potencial para prosperar o ideário restaurativo, visto que suas decisões se mostrarão tão mais sustentáveis quando pautadas por valores objetivamente demonstráveis – os quais serão dados com maior segurança pelas pessoas interessadas, como proposto pela justiça restaurativa, do que pelo juiz, conforme as práticas tradicionais.
Em quinto e por último, porque, pela natureza dos interesses em causa, a justiça da infância e da juventude impõe um compromisso com os efeitos concretos das suas decisões na vida das pessoas – crianças e jovens, famílias e outros cuidadores. Enquanto uma das máximas jurídicas mais tradicionais reza que “a jurisdição termina com a entrega da sentença às partes”, na Justiça da Infância e da Juventude pode-se dizer que esse é o momento em que ela tem seu início: não na disposição da vontade da lei para o caso, mas na efetivação das condições para que essa vontade seja cumprida. Exige-se compromisso com a materialização dos resultados da jurisdição, não se satisfazendo, por definição, com o cumprimento de protocolos formais, o que dificulta o recurso a sofismas de alta abstração e preciosismos retóricos em benefício da efetividade das soluções. E manter o foco nas conseqüências é um dos principais achados da Justiça Restaurativa.
Base legal.
Segundo Brancher, citado por Scuro (2003), a Lei 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente, inspirado nas mais modernas concepções das Nações Unidas para a área de Justiça e de Direitos Humanos, contém dispositivos que tornam perfeitamente compatível o ordenamento jurídico brasileiro, na área da Justiça Penal Juvenil, com a recepção do modelo da Justiça Restaurativa.
Com o instituto da remissão – seguindo a tendência de desjudicializar o atendimento de infrações penais leves e médias, preconizada pelo Direito Penal Mínimo – a lei brasileira permite que o processo judicial seja excluído, suspenso ou extinto caso ocorra a composição do conflito de forma amigável, ainda que importando em que o jovem infrator assuma o compromisso de cumprir medida sócio-educativa (ECA, art. 112) desde que não privativa da liberdade.
Essa solução aplica-se em regra a jovens primários apresentados à justiça pela prática de contravenções e/ou crimes considerados leves como furtos, posse de drogas, lesões corporais e danos, ou médios como porte de arma e roubo sem violência contra a pessoa, para exemplificar, correspondendo na prática à média de 70 a 80% dos casos atendidos. Com a remissão a tramitação do processo pode ser judicialmente dispensada havendo acordo em que as partes (adolescente, vítima e familiares) optem por dispensar o procedimento de culpabilização formal, mesmo que a solução implique na aplicação de uma medida que pode ser uma advertência formal, ou arcar com a reparação do dano, ou prestar serviços à comunidade ou, ainda, submeter-se a um regime de liberdade assistida.
Qualquer dessas medidas sócio-educativas pode ainda, inclusive em caso do acordo da remissão, ser cumulada com medidas protetivas (art. 101) acessórias como, para exemplificar: tratamento da drogadição, freqüência e aproveitamento escolar, atendimentos terapêuticos, etc. O leque de opções legais que podem ser descortinadas num eventual acordo restaurativo se completa com a possibilidade de também os pais e/ou responsáveis pelo adolescente assumirem compromissos de se submeterem a medidas formais (art. 129) como participação em cursos de orientação, obrigação de zelar pela freqüência e aproveitamento escolar do filho, terapias individuais ou familiares, etc.
O acordo pode ocorrer antes do processo (forma de exclusão) ou durante (forma de suspensão ou extinção) e sempre será firmado tendo como partes as partes do processo, ou seja, o adolescente, seus responsáveis, assistidos por advogado, de um lado, e o Ministério Público, de outro. A seguir, o acordo será levado a homologação judicial – podendo o juiz ainda recusar a homologação ou submetê-la a retificações -, a partir do que o acordo passará a valer com força de sentença, formando o título executório para aparelhar a execução das medidas. Pelo descumprimento do acordo o jovem, no caso dos processos suspensos, pode em tese sujeitar-se ao prosseguimento do processo e, com ele, até mesmo à perda da liberdade, podendo o juiz do processo da execução rever e substituir a medida acordada por outra mais adequada (p. ex., trocar uma reparação de danos por uma prestação de serviços ou uma destas por uma liberdade assistida, ou, ainda, acrescentar uma medida protetiva como submeter-se a tratamento da drogadição). Já os pais sujeitam-se a multas previstas no próprio estatuto caso descumpram o acordo. O Estatuto da Criança e do Adolescente projeta também a criação de centros de atendimento inicial integrado ao adolescente infrator (art. 88, inc. V) – prevendo neles a integração operacional dos órgãos de segurança (polícia militar, polícia civil, guarda municipal), justiça (ministério público, defensoria pública, judiciário) e assistência social. Existentes em diversas Capitais (Porto Alegre, Fortaleza, Recife, entre outras) estes centros de atendimento inicial integrado representam um importante mecanismo institucional voltado ao acolhimento do adolescente, vítima e seus familiares – dado que em regra todos são levados a comparecer perante a polícia por ocasião do registro ou da investigação da ocorrência, e isso ocorre em regra no mesmo local físico onde também atuam, em regra em regime de plantão, os promotores, defensores e juízes que tomarão conhecimento do caso.
A introdução de práticas restaurativas não só é perfeitamente compatível com esse contexto legal, senão que sua aplicação se mostra intuitiva ao primeiro olhar, e indispensável na proporção em que esse olhar amadurece à luz dos princípios restaurativos.
Em razão do volume de casos diariamente trazidos à apreciação e a freqüente fragmentação das etapas de atendimento, enquanto mantido o funcionamento atual, em que o ajustamento das medidas é feito diretamente entre as partes e os operadores jurídicos, pode-se arriscar o ajustamento de soluções pouco efetivas, seja pela inadequação da medida ao perfil subjetivo do adolescente, ou pelo exame superficial quanto à realidade dos fatos – já que a instrução fica dispensada e o adolescente sente-se ansioso e tende a aceitar qualquer proposta que lhe retire imediatamente dali, ou seja ainda pela natural inibição diante da assimetria da relação com as autoridades atuantes nesse palco.
A aplicação das práticas restaurativas no sistema de atendimento inicial previsto pelo artigo 88 do ECA, assim, não apenas encontra respaldo no modelo jurídico, que confere força executória às deliberações do encontro restaurativo, mas também no modelo organizacional – com os centros de atendimento inicial integrado como suporte para apresentação dos casos em tempo real. Mais do que isso, qualifica o conteúdo democrático e autônomo na construção da solução, proporcionando maior adesão e responsabilização, e também contribuindo para que a medida resulte melhor adequada ao perfil do infrator, sua capacidade de cumprir e às circunstâncias reais da prática da infração – que são os requisitos de aplicabilidade das medidas sócio-educativas estabelecidos pelo artigo 112 do ECA.
Aprendizagem restaurativa.
Na experiência prática de Porto Alegre, os círculos foram inicialmente (2005) realizados entre adolescentes respondendo a processos de execução de medidas sócio-educativas e suas vítimas. Em 97 abordagens, apenas oito resultaram na realização do procedimento em todas as suas etapas. Até o junho de 2006, 49 novos casos foram encaminhados à Central de Práticas Restaurativas, cuja operação iniciou em final de março após uma pausa nos encaminhamentos, iniciada em dezembro, período que envolveu a avaliação, planejamento e viabilização de modificações no projeto como um todo. No âmbito interno da FASE, mais de 70 adolescentes foram atendidos na elaboração de planos de atendimento seguindo práticas restaurativas. Os dados proporcionados nos demais campos de aplicação ainda são pouco significativos, o que inclusive determinou um processo de repactuação dos compromissos interinstucionais, em andamento entre maio e junho de 2006.
O processo de implantação como aprendizagem.
Esses dados, evidentemente singelos do ponto de vista estatístico, são insuficientes para ilustrar a magnitude do processo que representam, que não se resume à preparação e à realização dos círculos e encontros restaurativos. Ao redor desses números gravita toda uma gama de atividades de sensibilização, mobilização e capacitação, no que se refere à criação de uma ambiência favorável, ao engajamento dos profissionais e aquisição de habilidades necessárias para atuar nas várias etapas da realização dos círculos. O caráter sistêmico impresso à experiência desde a sua concepção e início da execução vem exigindo que as práticas se insiram em ambientes profissionais minimamente capazes de absorver seu significado, o que torna o avanço mais lento, mas por certo mais consistente e auto-sustentável. No que se refere aos procedimentos, antes de abrir-se espaço para a realização dos círculos, faz-se necessário um exaustivo trabalho de prospecção de oportunidades, aliados e instâncias administrativas ou jurisdicionais em que sejam adequados, com seu posterior ajustamento ao marco legal ou regimental, seguidos da sistematização e pactuação de procedimentos administrativos, objetivando estabelecer um fluxo de rotina que ofereça segurança aos operadores e partes envolvidas – considerando-se aí que se está a introduzir procedimentos inovadores, complexos e pouco dominados no âmbito de organizações caracterizadas por uma cultura institucional e uma operacionalidade burocrática rigidamente instaladas, cujas exigências formais são inerentes à própria natureza das competências legais que executam.
A aprendizagem vem sendo cumulativa e processual, abrangendo a aquisição de habilidades e segurança para coordenar os encontros, para planejar participativamente e gerir a implementação do próprio projeto num ambiente heterogêneo, formado por profissionais de instituições diversas, cada qual representando sua cultura e condicionamentos institucionais – num ambiente presidido pela intenção de absoluta fidelidade aos princípios restaurativos, que primam pela isonomia, circularidade e horizontalidade nas relações. E o rigor na prática dos valores restaurativos deve começar pelas esferas gerencial e das relações interpessoais, sob pena de os vícios da cultura de violência persistirem na atividade-meio, maculando a qualidade da atividade-fim representada pela realização dos círculos e encontros restaurativos.
Mas antes mesmo que os círculos passem a se realizar de forma mais intensiva, as balizas do pensamento restaurativo vão-se propagando e mobilizando todos os segmentos da rede de atendimento. As idéias trazidas pela justiça restaurativa perpassam, instigam, questionam e mobilizam boa parte dos operadores da rede, atraídos pela possibilidade de um olhar capaz de ressignificar e revigorar seu afazer profissional: um olhar diferenciado que, ao perguntar pelo sofrimento das vítimas, é capaz de desencadear emoções intensas e insights transformadores.
As proposições da Justiça Restaurativa geram um verdadeiro encantamento, que corresponde à não menos encantadora possibilidade de concretizar-se uma promessa implícita no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas historicamente negligenciada, relacionada ao conteúdo de uma proposta pedagógica capaz de dar conta da ressocialização de adolescentes autores de infrações penais. A questão a ser resolvida no campo de aplicação do projeto, conseqüentemente, há de dar a chave para a solução de importantes impasses de todas as políticas públicas relacionadas, valendo lembrar, com Emílio Garcia Mendez (citado por FASE, 2002), que,
“Apesar do seu caráter quantitativo reduzido, a questão do adolescente infrator possui um induvidável efeito contaminante negativo sobre o conjunto das políticas sociais. Quem não resolve este problema compromete todas as políticas sociais para a infância em geral e os direitos humanos dos adolescentes em particular. A questão do adolescente infrator é um extraordinário termômetro da democracia”.
Com certeza, a violência maior ou menor com que os adolescentes se portem na comunidade, notadamente na escola, e a qualidade maior ou menor com que se apliquem e se cumpram as medidas sócio-educativas decorrente de suas atuações infracionais estará em relação direta com a qualidade de todos os serviços da rede de atenção à infância. Se o sistema promover repressão e violência, reverberará violências. Se promover liberdade, respeito, responsabilidade, autonomia, pacificará. Essa a essência da aprendizagem restaurativa enquanto processo de radicalização das bases éticas da democracia.
Aprendendo com os Círculos e Encontros.
Nada é capaz de mobilizar mais uma comunidade do que o enfrentamento de ameaça, a cura de uma dor, a resolução de um problema concreto. Esse potencial de mobilização espontaneamente contido num conflito é a oportunidade de conversão da experiência traumática da ruptura do laço social numa oportunidade de aprendizagem e crescimento. Oportunidade de incorporação de um modelo de justiça fundado em valores e capaz de promover valores. Considerando que só se aprendem os valores que se vivenciam, promover práticas restaurativas implica promover vivências que proporcionem aos sujeitos a constituição de registros internos fundados em valores humanos. Vivências tão mais intensas quanto mais relacionadas a dores reais, ameaças reais e traumas reais. Além da liberação das cargas emocionais plasmadas pela vivência do evento traumático, o que por si só já as validaria, as práticas restaurativas proporcionam a aprendizagem vivencial dos valores que mobilizam: solidariedade, tolerância, respeito, acolhimento, empatia, perdão. Esse modelo de relacionamento ético, se assimilado na infância e na juventude, acompanhará o sujeito ao longo de toda a sua existência, permitindo que o reproduza a cada situação da vida em que se veja novamente em conflito. A projeção dessa oportunidade de transformar conflitos e violências em aprendizagens em valores humanos representa a semeadura de um novo futuro para as novas gerações, e é a principal promessa da Justiça para o Século 21.
Pautada por essa visão, a intenção do projeto é de adquirir habilidades e sistematizar procedimentos para, progressivamente, massificar as aplicações das práticas restaurativas, representadas pelos círculos e encontros, partindo do epicentro do sistema de contenção da violência juvenil, que são as medidas sócio-educativas, e irradiar-se por intermédio da rede de proteção até capilarizar-se junto a todos os serviços relacionados às políticas básicas e, por esses canais, alcançar as respectivas comunidades.
Por isso introduzida desde logo num ambiente de diversidade, a evolução da experiência contempla a aplicação em diferentes modalidades (processo judicial, planos de atendimento, escolas) e acabou gerando uma distinção conceitual entre duas formas de implementação dos procedimentos restaurativos:
Círculos restaurativos são reuniões restaurativas com a participação da vítima principal, ou seus apoiadores, senão presencialmente, mediante representante, ou carta, ou gravação de áudio ou vídeo, ou qualquer outro meio que possa servir para tornar efetiva sua presença e transmitir sua mensagem na reunião. Os círculos restaurativos são realizados através da Central de Práticas Restaurativas, quando originados no âmbito dos processos judiciais, ou nas escolas, quando envolvendo situações escolares não judicializadas.
Encontros restaurativos são reuniões restaurativas sem participação direta da vítima, que é lembrada pelo coordenador, o qual pode representar o papel da vítima na interlocução com o infrator, figurando nesse papel as vítimas secundárias (familiares, amigos, e mesmo o próprio infrator), considerando-se-os como tal em razão do modo como também tenham sido atingidos pelas conseqüências da infração. A metodologia dos encontros restaurativos foi desenvolvida com vistas à utilização de práticas restaurativas no ajustamento do plano de atendimento dos adolescentes em cumprimento de medidas na FASE, quanto a adolescentes privados de liberdade e na FASC, quanto às medidas de meio aberto (embora ainda não suficientemente apropriadas nesse último campo). Se na aplicação de um encontro surgir proposição de contato com a vítima, o caso será encaminhado a apreciação judicial e, se acolhido, a realização do círculo será encaminhada à Central de Práticas.
Uma nova abordagem.
Em qualquer das situações, o diferencial reside na abordagem do conflito, centrada na infração, direcionada ao reconhecimento das suas conseqüências e visando ao compromisso com a reparação dos danos, e suscitando as questões fundamentais apontadas na literatura: Questões chave (MC COLD e WACHTEL, 2003): Quem foi prejudicado? Quais suas necessidades? Como atender a essas necessidades? Dimensões do dano a restaurar (ZEHR, 1990): Quais os danos à vitima? Quais os danos aos relacionamentos? Quais os danos ao infrator? Quais os danos à comunidade?
Responsabilidade sócio-educativa.
Uma particularidade das medidas sócio-educativas aplicadas aos adolescentes autores de atos infracionais é, como regra geral, serem indeterminadas no tempo. Essa a característica da internação, principal medida privativa da liberdade, e que se estende à liberdade assistida, principal medida de meio aberto. Se o tempo de duração da medida é indeterminado, dependendo sua conclusão de avaliações periódicas pelo orientador técnico, submetidas à apreciação judicial, uma questão se torna fundamental: o que se está a exigir do adolescente para ser considerado apto ao desligamento do processo?
As concepções da justiça restaurativa vêm oferecendo importantes subsídios na depuração das convicções a respeito dos objetivos e abordagens a serem priorizados durante o atendimento sócio-educativo, contribuição da maior relevância considerando que que ao longo de anos esses serviços padeceram da obscuridade a respeito de uma proposta pedagógica que tivesse escopo mais definido.
Na falta de requisitos objetivos (como os adultos encontram na contagem do tempo), as avaliações técnicas e judiciais costumam abordar conteúdos subjetivos segundo o critério da especialidade técnica conjunturalmente preponderante, ou segundo o pensamento do profissional mais influente no grupo técnico, ou a autoridade mais respeitada, ou ainda, a mais insistente, ou autoritária e inflexível. Resultado daí que essas avaliações, das quais depende a liberdade e a reintegração social do adolescente, são via de regra atravessadas por requisitos e exigências imprevisíveis, abrindo uma ampla margem de subjetividade e indeterminação tanto normativa quanto conceitual.
O foco na infração e na reparação das suas conseqüências imprime uma dinâmica renovada ao sistema, que agora tem mais claramente para onde direcionar seu olhar. Independentemente de qual seja o referencial técnico em aplicação (psicológico, pedagógico, assistencial, jurídico), a responsabilização do autor pelo próprio ato e pelas suas conseqüências, pode passar a constituir-se no indicador avaliativo central[9].
Uma vez definido esse foco, pode-se perceber que a abordagem restaurativa dos adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa não se esgotará nos círculos ou encontros restaurativos – embora passem a ter nessas oportunidades um momento de grande intensificação do processo – mas tende a ser promovido por uma ampla gama de abordagens técnicas e institucionais. Um ambiente restaurativo pressupõe, antes de mais nada, disponibilidade para o diálogo e confrontação com a realidade dos fatos, à busca do amadurecimento de uma reflexão crítica a respeito da situação infracional, suas causas, as necessidades subjacentes, seus danos, e a uma atitude empática com o sofrimento da vítima. Mas essa disponibilidade e esse foco hão de estar presente em todos os momentos do atendimento, não se restringindo ao encontro com vítimas, ou com os familiares que sofrem os danos da infração. Deve inspirar, por exemplo, negociações participativas quanto ao programa coletivo de atendimento da unidade, na resolução de incidentes disciplinares, em atividades reflexivas (grupos operativos ou outras atividades terapêuticas). Voluntários que tenham sido vítimas de crimes, talvez oriundos do próprio quadro funcional ou de instituições religiosas, podem formar grupos para promover encontros com jovens infratores, e refletir com eles sobre as respectivas vivências, etc.
A observação empírica do percurso comumente seguido por jovens privados da liberdade mostra que há uma linha evolutiva – eventualmente descontinuada, é verdade – razoavelmente nítida no que se pode denominar de “percurso da ressignificação[10]” da trajetória delitiva – o qual pode, analogicamente, ser aplicado igualmente no atendimento às medidas de meio aberto:
Negação. Em regra o adolescente, tão logo recolhido à privação da liberdade, tende a minimizar ou negar a realidade, tanto no que se refere ao fato praticado, quanto ao fato de ter sido recolhido. Esse momento, que não é necessariamente cumprido, é representado por um certo alheamento ou eventualmente euforia. Parece que o mundo de fantasia que vivia na rua lhe acompanha dentro da internação.
Rebeldia. Tão logo realiza o insight da perda da liberdade, segue-se um momento de rebeldia. Tenta fugir, ainda que isso signifique se lançar contra os muros (às vezes literalmente) da instituição. Esse momento é representado pelas arremetidas, seja por palavras ou gestos, contra os cuidadores, ou contra as instalações. Muitas vezes implicam em atos lesivos a si próprio ou a outros. Nesse momento a instituição tem que ser continente.
Reinstalação. Nesse passo, já constatando que a rebeldia não venceu a continência da instituição, poderá haver uma procura de aliados, buscando a associação a grupos de iguais, ou gangues, buscando a reinstalação da lei da rua no ambiente interno. Mais uma vez a instituição há que ser continente para não deixar espaço para essa teia de articulação marginal.
Depressão. Depois de perceber que não terá saída por sua força própria, que a lei da rua não voltará a imperar, que a única lei a se associar e seguir será a lei institucional[11] – o que se reforça quando termina a internação provisória com uma sentença condenatória – chega o momento de o jovem relaxar. Relaxado, os sentimentos afloram, e surgem momentos de depressão, que terá de ser abordada terapeuticamente para ser canalizada em direção à etapa seguinte, e não reverter para alguma etapa anterior (rebeldia, reinstalação), ou para não aprofundar maleficamente (apatia, tentativa de suicídio). Esse será o ponto crítico, risco e oportunidade, verdadeiro “turning point” do processo de atendimento.
Conexão. Momento do encontro consigo mesmo, a partir da conexão com o próprio sofrimento. Admitida a realidade do fato e das suas conseqüências com relação à sua própria pessoa sem evasivas ou negações, o sofrimento decorrente da perda da liberdade passa a ser o elemento chave para iniciar um processo de introspecção, reflexão e amadurecimento críticos. A essa empatia consigo mesmo podem seguir-se, na medida em que adequadamente trabalhados pelas intervenções técnicas, a empatia com os familiares atingidos pelas conseqüências da infração (potencializada pela aplicação dos encontros restaurativos) e das vítimas principais (potencializada pela aplicação dos círculos restaurativos).
Cada sujeito apresenta sua própria resposta, sua própria capacidade de elaboração e, por isso, seu próprio tempo. Não se pode abstrair, porém, a importância das abordagens institucionais na determinação do tempo dessa maturação. Se o adolescente encontra um ambiente institucional amigável, acolhedor, capaz de escuta de suas necessidades, poderá progressivamente, e tão mais rapidamente quanto mais esse ambiente for deliberadamente organizado com esse fim, ser auxiliado na superação dessas diferentes etapas. Isso não significa, porém, uma desconsideração permissiva com relação aos motivos determinantes da imposição da medida. Antes, ao contrário. Mas, assim como o sujeito não pode libertar-se sem responsabilizar-se pelo seu ato, não pode ser mantido prisioneiro do próprio passado. A ponderação com que se administram esses fatores aparentemente excludentes é essencial. O auge do amadurecimento sócio-educativo acontecerá quando seja capaz de demonstrar uma crítica empática genuína, o que significa ser capaz de posicionar-se de forma reparatória a partir do ponto de vista da vítima. Quanto melhor o sistema for capaz de explorar essa vertente, mais rapidamente o adolescente progredirá na medida, e, certamente, maior segurança oferecerá para seu retorno ao convívio social. Essa capacidade de oferecer uma crítica empática será o indicador maior de que alcançou o passo final de uma abordagem restaurativa bem sucedida, estando apto ao convívio social.
Conectado a si mesmo, a seus familiares e seu semelhante – representado pela vítima – adquiriu a condição de sujeito de um processo de elaboração que produz coesão interna, conquista responsabilidade, gera a confiança e substitui o controle pela autonomia como critério para restaurar a liberdade.
Conclusão.
Justiça Restaurativa é eminentemente vivencial, e só quem participa do processo pode dar a exata dimensão da experiência que viveu. Por exemplo como no caso do jovem que, após já ter cumprido dois anos e meio pelo latrocínio de um taxista, ouviu ao lado da mãe a gravação de uma mensagem remetida pela viúva da vítima, contando o estraçalhamento de suas vidas pela perda do marido e do pai de sua filha. Como disse o advogado do rapaz: “Foi como um tratamento de choque. Parece que o cara acorda e mostra o seu eu”. Escondido com o eu fica a responsabilidade que se recusa ao sistema acusatório, e que se disponibiliza quando a abordagem restaurativa se oferece de forma eficaz. É o que percebe a técnica da unidade de internação, entrevistada pelos pesquisadores do projeto: “E aí que a gente vem vendo que o índice de reincidência é altíssimo. Por quê? Porque é um momento que a gente não consegue com que as pessoas se responsabilizem pelo ato infracional e que as próprias instituições se responsabilizem“.
Com efeito, responsabilização é o resultado que vem sendo alcançado pela incorporação dos princípios restaurativos nas medidas sócio-educativas sob seus diferentes âmbitos, e sobretudo através da participação de adolescentes infratores em círculos e encontros restaurativos, segundo melhor relatam os próprios envolvidos[12].
A responsabilidade segundo os adolescentes:
“(…) eu acho que se eu pudesse pagar esse dinheiro para ele eu acho que seria bem melhor tanto para ele quanto pra mim. Eu realmente dei essa idéia e não sei se porque eu dei essa idéia eles me falaram da justiça restaurativa (…)
“(…) como ele falou, ele passou dificuldade, eu acho que vou me sentir melhor dando (…) ele me ajudou também (…) falando que seria bom para mim ajudar a pagar ele, ter essa PSC, essa LA, tanto que ele me ajudou também, senão eu poderia pegar 1 ano e meio fechado”
“ (…) eu acho que até ressarcir essa dívida com ele eu realmente vou ficar me sentindo culpado”
“(…) se eu não pagar a medida da justiça restaurativa é óbvio que eles vão dar, sei lá…mais alguma PSC, ou mais algum tempo (…)”
“Báh, é como eu falei, eu não posso sentir pena por que eu não sou ninguém para sentir pena de outra pessoa, eu sinto um receio de ter feito isso com ele(…)
A responsabilidade segundo alguns familiares de adolescentes:
“ por que teve uma cabeça fraca, e ter ido na pilha dos outros e as coisas erradas acabou nas conseqüências que estão vindo pela frente, estão acabando aos pouquinhos, o que ele tinha que cumprir, só falta ressarcir o homem”
A responsabilidade segundo alguns familiares de vítimas:
“(…) Porque na cabeça dele ele apenas tinha furtado um celular, ele não sabia os danos que ele tinha causado para ela e o transtorno para nós”
“(…) quando ele pediu desculpa sim. E disse que não iria fazer mais, que queria ela como uma amiga dali pra frente. Ele tinha aceitado ela como uma uma amiga, porque aquilo foi um erro, um impulso, né. Que ele tava arrependido do que fez.
A responsabilidade segundo uma vítima:
“(…) eu acho que ele viu, que ‘caiu a ficha’ dele, que não leva a nada, que isto aí só teve prejuízo para ele e para mim, eu acho que ele se reestruturou, acho que ele não volta mais a cometer este tipo de delito, pelo que eu senti, é uma pessoa que ficou muito arrependido.
Mas melhor exemplo desse processo de responsabilização não haveria do que o adolescente de 17 anos, partícipe de latrocínio e internado há mais de dois anos, que aguardava a oportunidade de saídas temporárias da internação para fazer doações de sangue. Porque? “Ouvi na TV que doar sangue é um modo de salvar vidas. Não posso mudar o que eu fiz, mas quero me sentir responsável por salvar vidas”, explicou ao juiz, por quem foi considerado suficientemente responsável para poder sair.
Juiz de Direito da 3ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre. Professor de Direito da Infância e Juventude e Coordenador do Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da Escola Superior da Magistratura da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul.
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