A Constituição Federal de 1988, em seu Título VIII, Capítulo VII, quando passou a tratar de nossa Ordem Social, concedendo tutela jurídica à família, à criança, ao adolescente e também ao idoso (artigos 226 a 230), agiu de maneira bastante tímida, especialmente com relação aos direitos e garantias da pessoa idosa (artigo 230 da Constituição Federal), sobretudo no que tange às medidas e disposições protetivas. Há muito tempo essa camada social composta por nada menos do que cerca de 16 milhões de pessoas, as quais contribuíram para o crescimento dessa Nação, necessitava de um micro-sistema jurídico que lhe conferisse maior atenção, como ocorreu, por exemplo, com as crianças e adolescentes em razão do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em tempos passados, além do que, reconhecer tão valiosa contribuição, seria questão de mera consciência, de mera sensibilidade. Por outro lado, é fato que o merecido tratamento deveria estar fundamentado nas questões éticas, morais e familiares da sociedade brasileira, porém, numa sociedade em que a discriminação por diversas vezes se faz presente, como é o caso da nossa sociedade, foi necessário a criação de uma obrigação de fazer, foi necessário a obrigatoriedade de uma lei para que tão merecido reconhecimento fosse efetivamente conferido.
Surge então em nosso horizonte legislativo, ainda que tardiamente, a Lei n.º 10.741, de 1.º de outubro de 2003 – conhecida como Estatuto do Idoso, destinada a regular os direitos das pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, trazendo consigo regras de direito privado, previdenciário, processual e penal, numa função extraordinariamente protetiva. Realmente, a “pedra fundamental” na estruturação e construção de uma consciência política e social frente a necessidade de se fazer valer os direitos fundamentais dos idosos.
Em vigor desde o início do corrente ano, após uma vacatio legis de 90 (noventa) dias, o Estatuto do Idoso, ao que me parece, vem passando desapercebido na academia do Direito, principalmente com relação aos discentes, o que poderá levar ao cometimento de erros, uma vez que muita coisa foi modificada, sobretudo no âmbito do Direito Penal. Foram criados novos tipos penais e alterados diversos dispostivos do Decreto-Lei n.º 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que instituiu o Código Penal Brasileiro e também do Decreto-Lei n.º 3.688, de 3 de outubro de 1941, que instituiu a Lei de Contravenções Penais. Além disso, passaram a existir inúmeros agravantes e outros tantos casos de aumento de pena na hipótese de um crime envolver pessoa idosa – com 60 (sessenta) anos de idade ou mais.
Contudo, ainda que os legisladores estivessem dotados de boas intenções, a parte penal dessa nova lei (Estatuto do Idoso) acabou por perseguir a má-sorte de quase todas as normas penais brasileiras, já que em determinados pontos se mostra bastante confusa, contribuindo assim para uma desproporção ou mesmo desigualdade na aplicação das penas no sistema jurídico brasileiro, contrariando o princípio constitucional da isonomia, além de gerar aquilo que chamam de “desinteligência” dos julgados.
Verifica-se, por exemplo, a criação de 14 (quatorze) novos tipos penais, além de várias outras modificações no Decreto-Lei n.º 2.848/1940 (Código Penal) e também no Decreto-Lei n.º 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), aos quais deveríamos dispensar maiores cuidados quanto a sua nova interpretação. Não obstante, chamo a atenção para um único e exclusivo ponto, aquele que talvez tenha gerado maior polêmica, maior controvérsia: o artigo 94 desse Estatuto do Idoso. Assim, observemos a seguir o artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 para que possamos, posteriormente, prosseguir com um breve estudo acerca de tal dispositivo:
“Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995 e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo Penal”.
Evidencia-se, então, uma inevitável confusão. Passo a explicar: o que se discute diante da leitura examinadora de tal artigo é quanto ao sentido que essa nova norma visa alcançar. Melhoro: será que o legislador desejou tornar de menor potencial ofensivo apenas as infrações penais tipificadas exclusivamente pelo Estatuto do Idoso, permitindo, assim, a possibilidade de propositura de transação penal em observância às regras processuais trazidas pela Lei n.º 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), em atenção especial aos seus artigos 72 e 76? E se a resposta for positiva, partindo de um novo conceito de infração penal de menor potencial ofensivo (que agora compreenderia as infrações que a lei comina pena máxima não superior a quatro anos), não estaria se abrindo precedentes para que tal entendimento fosse estendido a toda a legislação brasileira? Ou pretendeu o legislador, tão somente, fazer menção ao procedimento sumaríssimo da referida Lei n.º 9.099/95, garantindo dessa forma a celeridade processual nos casos em que a pessoa idosa figurar como parte?
A ocorrência de tal confusão seria facilmente percebida se, por exemplo, fosse verificada a prática de um crime de injúria (artigo 140 do Código Penal) contra um idoso, sobretudo no que tange à forma qualificadora de seu § 3.º. Isso porque foi inserido ao tipo penal autônomo da injúria qualificada a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Então, em razão dessa nova formatação jurídica conferida ao artigo 140, § 3.º, do Código Penal, este passou a vigorar com a seguinte redação:
“Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.”
Diante dessa nova instrução legal, se o agente pratica um crime de injúria contra um idoso (com sessenta anos ou mais), poderá ter sua pena fixada entre 1 (um) e 3 (três) anos, de modo que, em atendimento ao disposto no artigo 94 do Estatuto do Idoso, estaria o processo autorizado a tramitar pelo rito sumaríssimo, além de estar vislumbrada a possibilidade de promoção da transação penal, pois subentenderíamos que o crime de injúria contra a pessoa do idosa, com o advento da Lei n.º 10.741/03, passaria a estar caracterizado como sendo de menor potencial ofensivo. E o que é pior, em razão desse novo dispositivo legal – artigo 94 do Estatuto do Idoso – caso a vítima nem sequer se ajustasse à condição de pessoa idosa, porém, fosse utilizado pelo autor do crime de injúria os elementos de que tratam o § 3.º do respectivo artigo (raça, cor, etnia, religião ou origem), estaria o aplicador do direito autorizado a fazer uso da Lei n.º 9.099/95, atentando para o procedimento em rito sumaríssimo, além da possibilidade de ser ofertada a transação penal. Vemos então que o disposto pelo Artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 – Estatuto do Idoso – caminha na contra-mão de outros preceitos legais, gerando um conflito de normas no âmbito federal frente a outras duas normas: a Lei n.º 9.099/95 – que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, além da Lei n.º 10.259/01 – que dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal.
Antes de mais nada, é preciso sabermos que a Constituição Federal de 1988, através de seu artigo 98, buscou compor o “berço” dos Juizados Especiais, autorizando a sua criação e instalação:
“A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e o s Estados criarão: (I) juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.[…]P. único: Lei federal disporá sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal.”
Entretanto, ocorre que os legisladores, por simples desatenção ou mesmo despreparo, não demonstram qualquer afinidade com as questões processuais que envolvem tais Juizados Especiais, desconsiderando seu precioso valor quanto a agilização da prestação jurisdicional frente às causas cíveis de menor complexidade e às infrações penais de menor potencial ofensivo. Por fim, acabam legislando de forma confusa, num total desproveito em relação à possibilidade de conferir ao trâmite processual maior celeridade, sem promover o correto uso, para tanto, das Leis n.º 9.099/95 e n.º 10.259/01. Senão vejamos, como exemplo, o que prevê a Lei n.º 9.099/95, em seu artigo 61, e o que passou a ser previsto pela Lei n.º 10.259/01, em seu artigo 2.º, parágrafo único:
Lei n.º 9.099/95, art. 61: “Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.”
Lei n.º 10.259/01, art. 2.º, parágrafo único: “Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.”
Como vemos, com o advento da Lei n.º 10.259/01, surgiu nova discussão em torno da ampliação ou não do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, sendo que num primeiro momento, doutrinadores e jurisprudências davam conta de que tal conceito não era estendido além do âmbito da Justiça Federal, ou seja, para os crimes de competência da Justiça Estadual, prevalecia o disposto pela Lei n.º 9.099/95, enquanto que, para os crimes de competência Federal, prevalecia o disposto pela Lei n.º 10.259/01.
Felizmente, de outro lado, passou a existir sustentação majoritária no sentido de que, por se tratar de uma novatio legis in melius, ao menos em relação ao conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, deveria prevalecer a disposição da Lei n.º 10.259/01, observando-se, assim, uma sujeição ao princípio constitucional da isonomia (artigo 5.º, caput, da Constituição Federal/1988), ocasionando, ainda, um aumento no rol dessas infrações penais de menor potencial ofensivo, o que resolveu de forma definitiva a discussão. Tal entendimento passou a ser adotado pelos Tribunais, fazendo com que, nos dias atuais, seja jurisprudência dominante, como verificamos através do seguinte enunciado, originado através de acórdão da 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:
“A Lei n.º 10.259/2001, em seu art. 2.º, parágrafo único, alterando a concepção de infração de menor potencial ofensivo, alcança o disposto no artigo 61 da Lei n.º 9.099/95.” (RHC – 12.033 – MS – rel. Ministro Félix Fischer – votação unânime em 13/08/2002):
Com relação a tal entendimento, é bom lembrarmos que, à partir do surgimento da Lei n.º 10.259/01, o Ministério Público do Estado de São Paulo havia recomendado, através de seu Procurador-Geral de Justiça, a sua não aplicação no âmbito da Justiça Estadual, porém, tal posicionamento acabou sendo modificado recentemente, reconhecendo-se, então, a ampliação do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo para o âmbito da Justiça Estadual.
Realizadas tais considerações, voltemos à questão do artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 e à dúvida quanto a genuína vontade de seu legislador. Então, indago: será que o legislador desejou ampliar o conceito das infrações penais de menor potencial ofensivo (incluindo-se nesse rol os crimes cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse quatro anos), possibilitando, assim, a ocorrência de transação penal em relação a tais crimes, estendendo tal conceito por toda a legislação brasileira? Ou teria pretendido o legislador tornar de menor potencial ofensivo apenas os delitos definidos de forma exclusiva pela Lei n.º 10.741/03 – Estatuto do Idoso? Ou ainda, teria pretendido o legislador, tão somente, fazer menção ao procedimento sumaríssimo da referida Lei n.º 9.099/95, garantindo dessa forma uma celeridade processual nas questões que envolvessem a pessoa idosa?
É bom que se diga que cada uma das hipóteses descritas acima tem seu fiel defensor, tanto na área prática de aplicação da Justiça, bem como na seara doutrinária do Direito. Entretanto, operadores do direito e doutrinadores, juntando-se aos últimos o figura do renomeado Professor Damásio Evangelista de Jesus, dão conta de que a interpretação mais correta deve acompanhar o seguinte entendimento: diante de todos os tipos penais que foram criados ou mesmo alterados pela Lei n.º 10.741/03 – Estatuto do Idoso, como por exemplo alguns dispostivos do Código Penal e da Lei de Contravenções Penais, desde que a pena máxima cominada não ultrapasse os 4 (quatro) anos, ficou autorizado a aplicação do procedimento sumaríssimo previsto na Lei dos Juizados Especiais Criminais (no âmbito Estadual ou Federal). Além disso, a Lei n.º 10.741/03 – Estatuto do Idoso – não considerou de menor potencial ofensivo todas as infrações penais (crimes ou contravenções) por ela prescritos, de modo que tal matéria, no que tange ao conceito dessas infrações penais de menor potencial ofensivo, continua sendo regida pelo artigo 61 da Lei n.º 9.099/95 que, posteriormente, segundo entendimento jurisprudencial, foi derrogado pelo parágrafo único do artigo 2.º da Lei n.º 10.259/01. Além disso, o artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 não faz referência alguma aos crimes de menor potencial ofensivo, mas tão somente menciona a pena máxima cominada aos crimes e o procedimento sumaríssimo a ser adotado, de acordo com a previsão da Lei n.º 9.099/95. Entende-se, finalmente, que o artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 – Estatuto do Idoso – não derrogou o artigo 61 da Lei n.º 9.099/95 nem o artigo 2.º, parágrafo único, da Lei n.º 10.259/01.
Assim, com relação ao artigo 140, § 3.º, do código Penal, suscitado anteriormente como exemplo, por se tratar de um crime de injúria praticado com base na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, ou ainda, possuindo a vítima a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, não será tal delito, de maneira alguma, considerado de menor potencial ofensivo, pois a pena máxima cominada é de 3 (três) anos, o que desautoriza tanto a aplicação do artigo 61 da Lei n.º 9.099/95, bem como a aplicação do parágrafo único do artigo 2.º da Lei n.º 10.259/01.
Concluindo, entendo que diante de todos os elementos trazidos ao presente estudo, quanto à aplicação do artigo 94 da Lei n.º 10.741/03 – Estatuto do Idoso, não deve ser enxergado no meio jurídico, ao menos na excelência de seus doutrinadores e operadores do Direito, outro rumo mais plausível que não seja interpretar tal dispositivo em sentido estrito, apenas como uma forma inovadora que consente a adoção do procedimento sumaríssimo previsto na Lei n.º 9.099/95, ampliando assim a competência, em razão da matéria, dos Juizados Especiais Criminais, trazendo como conseqüência a possibilidade destes Juizados poderem processar e julgar os crimes contra idosos, mesmo que não considerados de menor potencial ofensivo, pois embora possam ter a sua pena máxima cominada em 4 (quatro) anos, receberão o benefício da celeridade nos trâmites processuais. Tal benefício conferido pelo procedimento sumaríssimo ocorre sem que haja a possibilidade de se efetuar a transação penal, pois o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo não foi ampliado pelo artigo 94 da Lei 10.741/03, afastando, assim, qualquer probabilidade da aplicação de forma absoluta, incontestável e incondicional do aludido artigo.
Universitário, membro discente do ano do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos (Ourinhos – SP) e articulista colaborador do Jornal DEBATE (S.C.R.Pardo/SP).
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