O mundo vê agigantar-se o desafio
previsto por John Adams há dois séculos. O desenvolvimento das comunicações no
globo terrestre e sua instantaneidade, expressos de
maneira mais contundente e indiscutível através da virtualidade da internet,
fizeram ressaltar a necessidade de se discutir, aperfeiçoar e ampliar meios que
possam, ao mesmo tempo em que garantam o mais
universal direito à informação, também evitar abusos no direito de se produzir
e transportar essa informação. É preciso entender que a não observância deste
segundo apontamento significa a destruição daquele, configurando-se
inconcebível violência à pessoa, seja quem recebe a informação deturpada, seja
a vítima direta desta.
Nas últimas décadas, principalmente, as
informações publicadas pela imprensa têm ocasionado muitas mudanças
ideológicas, estruturais e conjunturais nas sociedades. Governos sobem e apeiam
do poder conforme versem as notícias sobre suas intenções ou atuações. Modelos
econômicos são exultados ou execrados através da mídia, dado a freqüentes
mudanças no cenário político/econômico/social/cultural das nações. Sob outro
enfoque, observa-se muitas vezes celebridades e mesmo
pessoas comuns tendo suas vidas escancaradas a milhares, milhões de outras
pessoas. Em algumas ocasiões isso é mesmo necessário e até imprescindível, mas
não raro se cometem arbitrariedades de terríveis conseqüências.
No Brasil também a imprensa tem
exercido um papel preponderante desde o restabelecimento da democracia, ao
final dos anos 70 e início dos 80, isso após ter sido um dos principais agentes
da referida restauração. Escândalos nacionais têm sido levados constantemente
ao público, permitindo uma purificação, ainda que tímida e por vezes
incipiente, da sociedade brasileira. Não obstante, as mudanças econômicas e
políticas não se fizeram acompanhar de avanços sociais mais agressivos, e em
nome de uma “paz interna e para o exterior”, observa-se que neste ponto não há
massificação midiática dos problemas, mas sim um
generoso compadrio com os governos. Talvez um efeito da globalização
capitalista, reduzida na verdade a uma internacionalização de capitais e
informações.
Em nosso país, como em todo o globo,
verificam-se muitas injustiças ocasionadas pela divulgação maldosa, apressada
ou encomendada de notícias pelos meios de comunicação de massa. O “furo” não
tem escrúpulos, poderia-se dizer. Muitas vezes vidas
são devassadas, a honra é enlameada, a moral é destruída. Em nome da liberdade
de imprensa chega-se a exterminar a liberdade individual do ser humano, ou de
um grupo que seja objeto da reportagem, ou de toda uma sociedade que esteja
assistindo impassível às inverdades ou deturpações.
É razoável, portanto, haver algum
controle sobre a divulgação de reportagens pela imprensa, entendida esta em
sentido amplo. Há que haver ética, dignidade, humanidade. Mas como fazer, se a
hedionda censura é absolutamente incompatível com os ideais democráticos? Como
coibir jornalistas e empresas inescrupulosos sem atingir os profissionais e
veículos honrados, que tão grande contribuição dão, ou
tentam dar, para o desenvolvimento social da nação? Não se pode exagerar,
cortando os dedos pelo defeito de algum anel.
A responsabilização civil e criminal
pelos danos cometidos através dos meios de comunicação é um imperativo da sociedade
moderna. Essa responsabilização deve ter o intuito de punir o mau profissional ou empresa, coibindo intenções de novas
violências e fazendo cuidar-se mais em averiguar o que é divulgado. Ao mesmo
tempo, deve ressarcir, no que couber e puder, a vítima.
Mas, especificamente no caso do Brasil, cabem outras perguntas: é necessária
uma lei de imprensa ou os códigos já existentes são suficientes para regular a
liberdade de manifestação através da mídia? As sanções para os jornalistas que
cometerem crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) devem ser mais
brandas, mais rigorosas ou iguais às das pessoas ditas comuns?
Tramita no Congresso Nacional há
longuíssimos anos o projeto de uma nova lei de imprensa (nº
3.232/92), que deverá substituir a antiga (Lei 5.250/67), também chamada “lei
da ditadura”, por ter sido elaborada nos porões do regime militar. Juristas e
jornalistas batem-se defendendo e atacando determinados pontos do projeto. Esse
momento de discussões no Congresso e nos meios jurídico
e jornalístico é extremamente oportuno para se refletir sobre a questão da
responsabilidade civil e penal pelos delitos cometidos através da mídia. É
pertinente dizer que o filosófico desafio antevisto pelo presidente americano
converte-se, de fato, em uma das maiores questões lançadas à civilização nessa
virada de milênio.
A primeira questão que se coloca na
discussão sobre os limites e conseqüências da liberdade de imprensa pode ser
considerada o Tendão de Aquiles da maioria dos debates em torno da liberdade de
expressão protagonizados por juristas e jornalistas brasileiros. A elaboração
de uma lei específica para regular a liberdade de imprensa é mesmo condição sine qua non para a garantia da informação com respeito a outros
direitos individuais e coletivos, especialmente a honra? Há muitos órgãos,
muitos veículos de comunicação, muitos jornalistas ilustres e até professores
de direito que entendem que não deve haver uma lei especial para a imprensa.
Partem do princípio de que a maioria das infrações que se cometem através dos
veículos de comunicação de massa são as mesmas descritas na lei penal comum,
como, por exemplo a calúnia, a difamação e a injúria,
para ficar nas três figuras (tidas como principais) dos delitos que se cometem
através dos meios de comunicação. Dizem, a propósito, talvez maltratados pelos
precedentes, que toda vez que se fala na elaboração de Lei de Imprensa deve-se
esperar alguma forma nova de cerceamento da liberdade de expressão. Não pode
ser assim.
Trata-se de questão antiga. Relata-nos
o professor Anis José Leão, que em 1954 o também mestre Lydio
Machado Bandeira de Melo, filósofo e pensador, ironicamente, dizia que não se
justificava a existência de lei especial para a imprensa, “porque não é o
instrumento utilizado no cometimento do delito que pode ter o condão de criar
uma regência legal particular; porque a vingar esta idéia, o homicídio com
veneno devia ter uma lei especial; o homicídio mediante o uso de explosivo
devia ter outra lei especial; o homicídio mediante facadas – ou, como dizem os maus jornalistas, ‘a golpe de facas’ – também
deveria ser regido por uma lei especial”.
O próprio professor Anis entende o
problema de forma diferente: “Achamos que deve existir uma lei especial
cuidando da imprensa no sentido largo do termo. Primeiro, porque o sistema de
responsabilidade existente na imprensa, seja ele de responsabilidade sucessiva
ou solidária, é especial. E o direito de resposta, por sua vez, é um instituto
que, junto com o sistema de responsabilidade típico da imprensa, tem caráter sui generis; não
ficariam bem colocados dentro de um Código Penal, ainda que se pensasse na
idéia de abrir-se um vastíssimo capítulo no Código para cuidar da matéria.”
Leis de imprensa devem ter um único e
exclusivo objetivo: regular as relações da sociedade com os veiculadores
de notícias, ou seja, assegurar os direitos constitucionais dos cidadãos e das
instituições no campo da informação pública. Esses direitos estão no mesmo
campo e têm a mesma estatura democrática da liberdade de imprensa. A lei deve
assegurar irrestrita liberdade de imprensa e, para que essa liberdade seja de
fato efetiva, garantir simultaneamente a reação pronta
e eficaz contra o mau jornalismo. O jornalismo investigativo e a denúncia
fundamentada têm a garantia da seriedade e da verdade. Se o meio de comunicação
apurou e investigou antes de publicar, nada conseguirá quem quiser processá-lo.
Se mentiu, distorceu, inventou, caluniou, difamou ou
injuriou, causou danos morais e/ou materiais a alguém, aí sim, deve temer o
embate no tribunal. Não se perca de vista: numa democracia não existe “delito
de opinião”. Existe calúnia, difamação, injúria e outras práticas delituosas,
puníveis muito antes de surgir o primeiro jornal.
Diuturnamente, deparamo-nos com os paparazzi tupiniquins. Trabalham muitos deles nas
delegacias de polícia, especialistas que são na vendagem de jornais
desqualificados ou na obtenção de audiência à custa da privacidade alheia.
Embora desprovidos de alta tecnologia, são potencialmente mais perniciosos, vez
que os seus ataques não se limitam às personalidades famosas ou integrantes da
“nobreza” nacional. A Constituição da República, repudiando qualquer forma de
censura, tutela a liberdade de expressão, de comunicação e de informação
jornalística, como corolário da democracia. Mas, paralelamente, busca assegurar
a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das
pessoas (e não é necessário que sejam importantes para terem este direito),
cuja dignidade está consignada no primeiro artigo da Carta Magna como um dos
princípios fundamentais do Estado brasileiro.
Se a liberdade de imprensa colide com
os direitos individuais, urge alcançar-se o equilíbrio, de modo que nenhuma das
garantias seja obrigada a suportar, sozinha, as conseqüências da indevida
expansão da outra.
Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Mato Grosso. Pós-Graduado em Direito Público
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