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Magistratura e política

A política, observava Aristóteles, “é a ciência do bem comum”. Pode-se dizer que é a forma de organizar os seres humanos em sociedade. Ninguém vive sem fazer política, ainda que não o saiba. Aquele que se proclama neutro, aliena-se da política, não concorre para o bem-estar da comunidade, para a paz, para a melhoria das instituições. Faz a pior das políticas, qual seja, a favorável à manutenção do status quo, representado pela injustiça, pobreza, desigualdade, violência. Péricles considerava “o cidadão estranho ou indiferente à política um inútil à sociedade e à República.” A política, queiramos ou não, constitui uma opção diária por valores e é ínsita ao próprio processo de sentir, pensar e viver. Já a política-partidária é a atividade política ideologizada, engajada, organizada sob um ideário comum, com vistas, geralmente, à participação ou à ascensão ao Poder. A atividade política ordinária, quotidiana, é inerente mesmo à existência do cidadão, ao passo que a política-partidària é a opção refletida, consciente, deliberada, participativa.

Não obstante, confunde-se, freqüentemente, o exercício da política com a atividade político-partidária. Aqueles que, ainda fazem confusão entre atividade política e prática político-partidária, agem, via de regra, por desinformação, preconceito, ou, intencionalmente, por reacionarismo. Na área jurídica, os que assim pensam priorizam a forma sobre o conteúdo, sobreponhem a lei ao direito, separam o direito da justiça. Querem uma magistratura asséptica, presa à letra dos códigos, socialmente insensível, distante da efervecência do mundo, e que faça do gabinete e dos autos, exclusivamente, o seu mundo.

Direito e política se interligam, se confundem. Toda sentença traz subjacente, embasando o fundo de sua motivação, embora seu prolator raramente perceba, a concepção política, filosófica, formação moral e cultural, sentimento de classe, preconceitos e outros fatores que lhe moldam a personalidade. No espírito da sentença não pode deixar de estar presente a condição humana, com todas as virtudes e defeitos que lhe são inerentes. Daí a explicação para a diversidade, e não raro o antagonismo, da interpretação de um mesmo texto de lei, por mais clara que se afigure sua redação.

A preocupação nuclear do juiz é, e deve ser, não a mera aplicação formal da norma, mas sim fazer justiça. Para tanto, no Brasil, segundo a nossa ótica, basta o julgador interpretar as leis e decidir em consonância com os princípios fundamentais alicerçadores de nossa Carta Magna, negando aplicação às normas que com eles não se compatibilizem. O magistrado não pode abstrair-se da política, que é própria de sua função. O que se lhe veda é a atividade política partidária. Vejamos como o tema tem sido tratado na nossa legislação e a opinião de nosso maior constitucionalista sobre a matéria:

A primeira Constituição brasileira a cuidar da matéria foi a de 1934 que, em seu art. 66, com redação reproduzida nas Cartas subseqüentes, vedou ao juiz a “atividade político-partidária”. Apenas o Diploma constitucional de “1967, mais rígido, prescreveu (art. 109) a “Perda do Cargo Judiciário “ para a infração do preceito proibitivo por parte do magistrado. Já a Lei Orgânica da Magistratura Nacional 99 (Lei Complementar de 13/3/790) é omissa a respeito.

Pontes de Miranda, distinguindo a atividade defesa ao juízes da que lhes é permitida, comenta a proibição nas Cartas de 67 e 46: “ O que aí se veda ao Juiz não é ter opinião político-partidária, porque essa é livre. A Constituição assegura que, por motivo de convicções filosóficas, políticas ou religiosas, ninguém pode ser privado de qualquer dos seus direitos; e é inviolável a liberdade de consciência e de crença …”

“O juiz, desde que não esteja filiado a partidos, ou tenha atividade políticopartidária, não infringe o princípio. Não constitui atividade político-partidária dirigir diários que discutam assuntos políticos e intervenham na vida política, desde que tais diários não sejam órgãos de determinado partido ou determinados partidos. Foi o que decidiu o Superior Tribunal Eleitoral, em 17/7/34: “O que se veda aos juízes no art. 66 da Constituição (1934) é o exercício da atividade político partidária, Essa proibição, porém, só se refere à ação direta em favor de um partido e só assim alcança o juiz, por ser de se supor que não terá isenção de ânimo necessário para impedir questões submetidas a seu julgamento, em que estejam envolvidas agremiações partidárias”. (Comentários à Constituição de 1967, Tomo III, pág. 556, Revista dos Tribunais)

A CF/88, por sua vez, prescreve ser defeso ao juiz “ dedicar-se” (grifamos) à atividade político-partidária, sem, contudo, cominar sanção para o descumprimento do preceito (art. 95, § único),

Dedicar-se significa consagrar-se, devotar-se com afeto, exercer com empenho, o que pode levar à interpretação de que ao magistrado permite-se ter convicção e contactos com a política partidária, desde que a ela não se consagre, não se dedique, nela não se engaje, dela não se ocupe ativamente. A substituição pelo constituinte da expressão exercer, usada nos textos constitucionais anteriores, por dedicar-se, deve ter sido intencional, propositada, mesmo porque são expressões que não têm precisamente o mesmo significado. Para manter o mesmo sentido, seria desnecessário trocar o verbo “exercer”, tradicionalmente empregado, por outro cuja sinonímia não é perfeita. Por essa interpretação, pois, não está o magistrado impedido de ter opinião e efetuar simples contactos com partidos políticos.

A própria Constituição, que é uma Carta política, tem na magistratura sua gardiã. As funções do juiz são, portanto, funções políticas, e daí não poder o Judiciário deixar de ser um poder politizado, mas não partidarizado.

Erram, pois, ao nosso ver, os que querem separar o direito e a magistratura do político, do econômico e do social. Esquecem-se que, ao contrário do passado, quando, elitizados, se encastelavam, distanciavam-se da população, os juízes de hoje organizam-se em associações de classe, preparam projetos legislativos, editam periódicos, manifestam-se publicamente sobre temas políticos, criticam leis e o poder público, promovem lobby e passeatas, reivindicam melhorias salariais, fazem até greve. Os magistrados passam por um processo de oxigenação, renovação, modernização, juvenilizam e feminilizam seus quadros, fatores que abrem espaço para sua democratização. O Judiciário não mais pode ser visto como aquele Poder do passado, olimpico, hermético, inerte, anacrônico, esclerozado, incomunicável. Cresce entre os juízes a consciência da necessidade de democratizar o Judiciário, embora este continui a padecer de defeitos como lerdeza, burocratização, patrimonialismo, conservadorismo residual.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Benedito Calheiros Bomfim

 

Ex-Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros
Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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