Na atual crise que enfrenta o Direito Penal, determinadas áreas da criminalidade não estão mais suportando, com eficácia desejada, os sistemas fechados e formalistas de solução penal, principalmente em se tratando de delitos massificados de pequena e média potencialidade lesiva.
Assim uma alternativa conciliada, com participação social, inclui-se como tema aberto e frutífero de discussão.
Elementos de justiça reparatória e restitutiva são sugeridos para substituir os atuais conceitos de justiça retribucionista, utilizando os acordos judiciais e extrajudiciais, com tutela e homologação jurídica, como fonte de minimização da relevância social do delito, bem como da satisfação dos anseios sociais de justiça, afastados conceitos de impunidade e ineficácia, em um sistema jurídico conhecido por inacessível e moroso.
A Justiça Penal Negociada ou solução alternativa de conflitos penais, através de uma mediação fiscalizadora, impõe uma modalidade diversa no tratamento do delito, com uma certa desjudicialização parcial e regulada, onde participam o delinqüente, a vítima e a comunidade, através de seus representantes, o Estado Acusador e o Estado Juiz.
Apesar de sua aplicação mais comum ocorrer no juízo da infância e juventude, oferecendo alternativas para a não inserção do menor em um sistema penal, a negociação penal é uma realidade atual que não pode ser desprezada pelo Direito Penal.
A indisponibilidade da ação isenta a vítima de uma participação ativa e eficaz, conduzindo a uma possível prestação jurisdicional que não atende nem corresponde aos anseios da vítima e do próprio autor do delito.
A vítima tem o seu direito de solucionar o conflito totalmente expropriado pelo Estado, sem que questionamento das conseqüências do delito e de um eventual interesse de opção outra, diversa que a penal.
Ocorre que a sociedade, em razão da demora na apuração de delitos, bem como da falta de celeridade imposta aos procedimentos judiciais, em inúmeros casos, absorve mais rapidamente o delito e suas conseqüências. O transcorrer do tempo conduz evidentemente ao esquecimento.
Entretanto esta realidade nem sempre é a do ofendido, que assume uma posição dúplice: primeiro como vítima do delinqüente, depois vítima do Estado que o exclui da relação conflitante.
Seus interesses são tratados como secundários e sua eventual participação assistencial pouco eficaz.
A vítima, principal sofredora do dano, excluídas posições sentimentais envolvendo a vingança, pode pretender uma posição repressora, punitiva, como forma de justiça aplicada, mas, e isto é certo, na atual sociedade de risco a que se submete o integrante humano, muitas vezes a opção pela reparação financeira, sua restituição ao estado anterior ao delito, pode em alguns casos surgir como muito mais interessante que qualquer disputa judicial que se estenderá por muito tempo e, certamente, não alcançará seus reclamos, nem os reclamos sociais que já terão se alterado.
O Estado não pode furtar-se de promover a paz social.
Todavia, quando a relevância do fato delituoso depende das conseqüências que este fato surtiram na vítima, a questão pode conduzir a uma desconsideração da relevância e do prejuízo social do delito, imprimindo como solução mais adequada uma negociação que alcance os anseios da vítima, restituindo uma condição violada, para os quais a persecução penal é inócua.
A imputação de parcela da responsabilidade da resolução de conflitos penais às partes, considerando que o respeito à dignidade humana significa respeitar a capacidade dos membros da sociedade de solucionarem estes conflitos, quando envolvidos, na adoção de um Direito Penal de características mais humanitárias.
Eventuais danos produzidos pela negociação, em face de eventuais desgastes psicológicos que podem advir da submissão da vítima a este procedimento, realmente devem ser considerados, mas a certeza de que estes prejuízos serão muito inferiores aos já sofridos com o delito e os advindos de um processo comum é evidente.
Não se pode pensar na Justiça Negociada sem a presença do controle judicial, evitando arbitrariedades e buscando equidade no procedimento, pretendendo-se uma renúncia parcial à tutela do Estado que atua apenas com função judicante e mediadora.
A negociação assume posição anterior a uma admissão de culpa e responsabilidade por parte do delinqüente, podendo a mesma, a critério da vítima, surgir como forma de submeter o delinqüente a um período ou condição de prova, onde o cumprimento do arbitrado induz a uma possível exclusão da pena.
No tocante à ação de iniciativa pública, a questão que se põe em respeito à tutela do Ministério Público, não afasta o processo negociado. Na verdade a participação deste órgão, em conjunto com os anseios da vítima, também participando de forma ativa, não desnatura o procedimento. Não ocorrerá qualquer disparidade, sob argumentação de desequilíbrio da relação acusação defesa. O Ministério Público, como representante dos interesses sociais do Estado, e a vítima os interesses individuais, agem com o mesmo fim de satisfação da pretensão restitutiva e assim atendendo a relevância social.
Ademais, o procedimento negociado é voluntário. Exige a predisposição da vítima e do ofensor. Não há obrigatoriedade de submeter-se ao mesmo.
A Justiça Negociada pretende o estabelecimento de uma relação de confiança entre vítima e mediador e, entre delinqüente e mediador. Não existe um desejo de que a vítima perdoe o infrator, nem qualquer expectativa de que aflore qualquer empatia. Busca-se o restabelecimento das condições vítima, anteriores ao fato, quando possível, ou mesmo uma reparação de perdas, bem como a admissão de responsabilidade e, eventualmente, de arrependimento, por parte do infrator.
Uma análise dos critérios utilizados por este procedimento, em face dos já adotados pelos Juizados Especiais Criminais, destaca como principais diferenças uma participação ativa da vítima, mesmo em procedimentos de iniciativa pública, bem como, sua aplicação a um maior número de delitos, de pequena e média criminalidade, submetendo-os a critérios valorativos de relevância social e individual que, em aplicação de política criminal, indiquem a opção do controle social negociado como alternativa possível, administrando um direito indenizatório que é constitucional e não simplesmente civil.
Trata-se de trocar o castigo pela reparação.
A finalidade de restabelecer relações sociais de vida, principalmente para o infrator, exige um mínimo de coerção nestas medidas, sendo a voluntariedade, a oportunidade e o reconhecimento da responsabilidade pelos danos, os pontos fortes do sistema.
O serviço disponível à comunidade, na forma da prestação de controle social adequado às situações de conflito, compõe parâmetro deste instituto de negociação e restituição, quando reconhece que nem todos os infratores serão voluntários e cooperativos a este procedimento.
Entretanto, em razão deste sistema, serão disponibilizados maiores recursos e maior atenção aos procedimentos comuns e aos estabelecimentos penais para delitos de maior relevância social, impossíveis de serem submetidos à forma alternativa de controle.
Assim, um abandono total da tutela jurídica estatal não pode ser considerado como correto, já que a insustentabilidade de determinadas lesões sociais não permite que o Estado furte-se à persecução penal.
A Justiça Negociada exige mudança do sistema tradicional, buscando-se uma postura utilitária como meio de coação moral para a opção restitutiva.
Em fim, estas respostas alternativas devem primar por uma opção com base nas habilidades produtivas do delinqüente; uma política de desenvolvimento social, amparada por ganhos que possam vir a servir de reparação para a vítima, para a sociedade e para o próprio delinquente.
Sempre bom relembrar que o delinquente é integrante da sociedade e, mesmo que segregado em sua liberdade, cedo ou tarde retornará ao convívio social. A questão está em saber se ele será reintegrado como uma força positiva de desenvolvimento ou como um problema mais grave para todos os demais cidadãos.
Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito Processual Penal, Doutor em Direito Penal. Autor do Livro “Princípio da Oportunidade e Justiça Penal Negociada”
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