Resumo: O presente texto versa sobre a suspensão do processo decorrente do não comparecimento do réu citado por edital, tratando, particularmente, das medidas cautelares autorizadas pelo artigo 366 do Código de Processo Penal. Procura-se enfocar a excepcionalidade de tais medidas, à luz do princípio da ampla defesa, bem como a necessária observância de seus requisitos legais.
Palavras-chave: revelia. citação editalícia. ampla defesa.
Abstract: The present text deals about the suspension of the process following the non-attendance of the defendant cited by edited, treating particulary, of the preventing measures authorized by the article 366 of the criminal process code. We try to focus the exceptionality of such measures in the light of the wide defence principles, as well as the necessary observation of its legal requirements.
Keywords: default. edit citation. wide defence.
Sumário: 1.Introdução 2.A necessária observância do princípio do contraditório 3.Antecipação de provas 4.Prisão preventiva do revel 5.Conclusão
1. Introdução
Até o advento da Lei n° 9.271/96, que deu nova redação ao art. 366 do Código de Processo Penal – CPP, os processos em que o réu citado, mesmo que por edital, deixasse de comparecer sem motivo justificado prosseguiriam seu curso normal à revelia do acusado.
Reconhecendo que um julgamento nessas condições era incompatível com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, a mencionada legislação, em boa hora, vedou tal possibilidade. Para tanto, determinou que, nos casos de citação editalícia, a qual não passa de mera ficção jurídica em que o réu não toma conhecimento real da acusação que lhe é feita, se o réu não comparecer nem constituir advogado (o que ocorre na imensa maioria dos casos) o processo e o prazo prescricional serão suspensos, facultando-se ao juiz a possibilidade de decretar sua prisão preventiva ou a produção antecipada das provas, se for o caso.
Em que pese o avanço da inovação legislativa, o (lamentavelmente costumeiro) uso desmedido e automático das providências cautelares nela previstas representa grave violação às garantias que se pretendeu tutelar.
2. A necessária observância do princípio do contraditório.
Como sabido, em face da supremacia das normas constitucionais, uma norma deve ser aplicada tão somente na medida em que compatível com a Constituição, bem como deve ser interpretada de acordo com seus preceitos.
Nesse sentido, uma adequada leitura do art. 366 do Código de Processo Penal deve ser feita de acordo com o art. 5°, LV da Constituição, que dispõe, in verbis:
“Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
A inovação legislativa veio ao encontro do dispositivo constitucional, posto que o regime anterior, ao permitir o julgamento sem que o acusado tomasse real conhecimento da acusação, violava à garantia de um efetivo contraditório.[1]
Nesse sentido, válida é a lição de Ada Pellegrini Grinover[2], que afirma:
“O tratamento dado pela Lei n° 9.271/96 à revelia, determinando a suspensão do processo — com a correlata suspensão do curso do prazo prescricional — para o acusado que, citado por edital, não compareça e não constitua advogado, tem, antes de tudo, fundamento constitucional.
Com efeito, as garantias do contraditório e da ampla defesa, sob o aspecto dinâmico (correspondendo à igualdade de armas), indicam a necessidade de sua observância efetiva e concreta, não se satisfazendo com um enfoque meramente formal. O contraditório, em seu primeiro momento, deve corresponder à informação, pela qual se fará possível o exercício da defesa, e essa necessidade de informação fica praticamente infirmada pela ficção de uma citação editalícia.
A leitura sensível e atenta do texto constitucional já indicava a incompatibilidade entre uma condenação à revelia, sem a efetiva observância do devido processo legal, e as garantias constitucionais.”
Contudo, se de um lado a norma determinou a suspensão do processo, de outro possibilitou a realização de medidas cautelares mesmo sem a ciência do acusado.
Ora, se a continuidade do processo em face de alguém fictamente citado violaria a ampla defesa e o contraditório, a possibilidade de decretação de sua prisão preventiva e a antecipação de provas sem o seu conhecimento, permitidas pela norma, também não violariam o preceito constitucional?
Em tese não. Tais providências possuem natureza cautelar e destinam-se a garantir a efetividade de possível provimento futuro, o qual restaria inviabilizado em caso de desaparecimento de provas ou fuga de acusado.
Entretanto, tal previsão não pode ser confundida com a autorização de tais medidas excepcionais sem o preenchimento de seus requisitos legais, muito menos sem respeitar o direito a ampla defesa e ao princípio da proporcionalidade.
A esse respeito, leciona Antônio Magalhães Gomes Filho[3]:
“Mas, como já se disse, somente em circunstâncias muito especiais é possível adiantar providências processuais: em primeiro lugar, é exigível pelo menos a razoável probabilidade do futuro reconhecimento do direito posto como fundamento da cautela (fumus boni iuris); além disso, também deve estar demonstrado o perigo da insatisfação daquele direito, em face da demora na prestação judicial definitiva (periculum in mora).”
Infelizmente, não é o que se tem visto na prática cotidiana, em que os juízes tem tornado o que deveria ser excepcional como medida automática.
3. Antecipação de provas.
Quanto a produção antecipada de provas, o art. 366 facultou ao magistrado a produção das provas consideradas urgentes, o que é bem diferente de determinação automática de produção de provas como é comum se vislumbrar na prática forense.
A evidenciar a excepcionalidade da medida aduz o mesmo Antônio Magalhães Gomes Filho[4]:
“Essa antecipação na colheita da prova não deverá ser, certamente, uma rotina nos casos em que houve a suspensão do processo diante da ausência do réu citado por edital, mas providência resultante da avaliação do risco concreto de impossibilidade na obtenção futura das informações necessárias ao êxito da persecução. Caso contrário, de nada valeriam as diposições da nova lei, seja no tocante à economia processual, seja relativamente à garantia de uma defesa efetiva”.
Outrossim, além do disposto no art. 366, a Lei n° 11.690/08, deu nova redação ao art. 156 do Código de Processo Penal e erigiu, em seu inciso I, como requisitos da antecipação de provas a urgência e relevância, bem como a observância da necessidade, adequação e proporcionalidade, explicitando o princípio do devido processo legal substantivo.
Estabelecida a excepcionalidade da medida, há que se refutar a tese segundo a qual o mero lapso temporal e a falibilidade in abstracto da memória humana seriam motivos suficientes para a antecipação da prova testemunhal.
A esse respeito o art. 225 da legislação processual penal já dá adequado tratamento ao tema ao possibilitar sua antecipação se a testemunha “houver de ausentar-se ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista”, o que é diferente do simples decurso do tempo.
A despeito de inúmeras decisões em sentido contrário nas instâncias inferiores, o Supremo Tribunal Federal possui entendimento pacífico a respeito, consoante se verifica dos seguintes julgados de suas duas turmas:
“EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. A decisão que determina a produção antecipada da prova testemunhal deve atender aos pressupostos legais exigidos pela norma processual vigente (“Art. 255. Se qualquer testemunha houver de ausentar-se, ou, por enfermidade ou por velhice, inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, tomar-lhe antecipadamente o depoimento”). 2. Firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que “[s]e o acusado, citado por edital, não comparece nem constitui advogado, pode o juiz, suspenso o processo, determinar produção antecipada de prova testemunhal, apenas quando esta seja urgente nos termos do art. 225 do Código de Processo Penal”. Precedentes. 3. Ordem concedida.”[5]
“AÇÃO PENAL. Processo suspenso. Prova. Colheita antecipada ad perpetuam memoriam. Inquirição de testemunhas. Inadmissibilidade. Revelia. Réu revel citado por edital. Não comparecimento por si nem por advogado constituído. Prova não urgente por natureza. Deferimento em grau de recurso. Ofensa ao princípio do contraditório (art. 5º, LV, da CF). Ordem concedida. Inteligência dos arts. 92, 93 e 366 cc. 225, todos do CPP. Se o acusado, citado por edital, não comparece nem constitui advogado, pode o juiz, suspenso o processo, determinar colheita antecipada de elemento de prova testemunhal, apenas quando esta seja urgente nos termos do art. 225 do Código de Processo Penal”.[6]
Também no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a matéria já se encontra pacificada, inclusive com a publicação do enunciado n° 455 de sua súmula segundo o qual:
“A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no artigo 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo.”
3. Prisão preventiva do revel.
Com relação à autorização para se decretar a prisão preventiva, mais grave ainda é a sua aplicação automática, como se fosse decorrência lógica e necessária da citação editalícia, presumindo, provavelmente, uma hipotética fuga.
Vige em nosso ordenamento jurídico o princípio da presunção de inocência, o qual, se não veda a prisão preventiva, impõe que seja encarada como medida excepcional, restrita aos casos previstos em lei e em decisão suficientemente fundamentada.
O ordenamento jurídico brasileiro não admite a prisão ex lege e o art. 366 do CPP, ao estabelecer a possibilidade de decretação de preventiva dos acusados citados por edital, não criou uma nova hipótese de prisão preventiva, ao revés, vinculou sua decretação às possibilidades elencadas no art. 312 do CPP.
Nesse sentido, leciona Aury Lopes Jr.[7]:
“(…) mas isso não significa uma ampliação das hipóteses autorizadoras da prisão preventiva. Mais, não existe prisão cautelar obrigatória e tampouco qualquer tipo de presunção de fuga que conduza, automaticamente, à legitimidade de uma medida cautelar pessoal.
Quando o artigo diz ‘se for o caso’, está remetendo para os casos do art. 312, não ampliando ou facilitando a adoção da (excepcionalíssima) prisão preventiva.
Em suma: a inatividade processual ficta não autoriza, por si só, a decretação da prisão preventiva.
Há que se demonstrar e fundamentar, com argumentos cognoscitivos robustos e suporte probatório real, a necessidade da prisão preventiva, em igualdade de condições com os demais casos do art. 312 do CPP.”
Outra não é a posição dos tribunais superiores, consoante se verifica da leitura dos seguintes julgados:
“Habeas corpus. 2. Homicídio qualificado. Réu citado por edital. Revelia. 3. Prisão preventiva. Insubsistência dos requisitos autorizadores da segregação cautelar. A prisão preventiva, pela excepcionalidade que a caracteriza, pressupõe decisão judicial devidamente fundamentada, amparada em elementos concretos que justifiquem a sua necessidade, não bastando apenas aludir-se a qualquer das previsões do art. 312 do Código de Processo Penal. 4. Constrangimento ilegal caracterizado. 5. Ordem concedida”.[8]
“PRISÃO PREVENTIVA – REVELIA – AUSÊNCIA DE CREDENCIAMENTO DE ADVOGADO. Conforme disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal, verificada a revelia e a ausência de credenciamento de advogado, impõe-se a suspensão do processo e da prescrição, somente cabendo implementar a prisão preventiva se a situação enquadrar-se no artigo 312 do Código de Processo Penal, não a respaldando o simples fato de o acusado não haver sido encontrado”[9]
“PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. PRISÃO PREVENTIVA. (1) GARANTIA DA APLICAÇÃO DA LEI PENAL. REVELIA. FUNDAMENTO INAPROPRIADO. (2) GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REFERÊNCIA GENÉRICA. PERICULUM LIBERTATIS. AUSÊNCIA. ILEGALIDADE. RECONHECIMENTO. (3) PEDIDO DE EXTENSÃO. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE. INDEFERIMENTO. 1. O perigo para aplicação para lei penal e a conveniência da instrução criminal não defluem do simples fato de se encontrar o réu em lugar incerto e não sabido. Não há confundir evasão com não-localização. 2. A prisão processual é medida odiosa e excepcional, marcada pelo signo de sua imprescindibilidade. O indispensável periculum libertatis deve ser apurado quando da decretação da medida constritiva, sendo ilegal a referência genérica à garantia da ordem pública. 3. Não tendo sido demonstrada a similitude de situações, cuja ocorrência de distancia ainda mais diante da ausência de anterior impetração perante a Corte a quo, é de se indeferir pedido de extensão, nos moldes do art. 580 do Código de Processo Penal. 4. Ordem concedida, acolhido o parecer ministerial, para revogar a prisão preventiva do paciente, decretada nos autos da Ação Penal n. 40/2003, em trâmite perante a 4ª Vara Criminal da Comarca de Campinas/SP, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo.[10]
5. Conclusão.
A luta por um processo penal democrático e adequado constitucionalmente é uma batalha cotidiana a ser travada no plano teórico e no âmbito dos tribunais. A suspensão do processo no caso de citação editalícia é uma vitória da ordem constitucional sobre uma arraigada cultura autoritária que pretende impor a sanção penal em detrimento dos direitos individuais.
Entretanto, como que a tentar burlar o avanço legislativo, esse mesmo ranço autoritário ainda se manifesta na praxis forense ao antecipar provas e decretar prisões preventivas sem o devido respeito aos requisitos legais e constitucionais.
Reafirmar a excepcionalidade de tais medidas, tanto no plano doutrinário quanto no dia-a-dia do foro, é medida que se impõe aos operadores jurídicos comprometidos com os princípios constitucionais que norteiam o processo penal.
Defensor Público Federal. Especialista em Ciências Criminais. Mestrando em Ciências Criminais
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