Militarização à brasileira: uma reflexão sobre o modelo de policiamento militar

Resumo: A pauta da desmilitarização das policias estaduais ganha espaço na discussão trazendo questionamentos sobre o papel da polícia o aumento dos índices de crimes violentos praticados nos grandes centros urbanos denúncias constantes a práticas de abuso de poder por parte de policiais e o envolvimento de muitos destes com atividades criminosas levaram vários especialistas a refletirem sobre a necessidade de mudanças sensíveis nas estruturas organizacionais da policias estaduais sobretudo as militares. É mister compreendermos o funcionamento do atual modelo de polícia ostensiva brasileiro sob uma análise sociológica e histórica que não se detenha apenas no período recente da história do Brasil de 1964 – Marcado pela Ditadura Militar e a instauração da Doutrina de Segurança Nacional. O militar está associado à ética disciplina e integridade moral enquanto o Militarismo está associado à ausência dessas características. Comparando os significados dos conceitos Militar Militarismo e Polícia podemos perceber distinções profundas entre si. Enquanto as duas primeiras categorias embora aparentemente excludentes reportam a uma concepção de serviço para a guerra externa a terceira concepção alude à segurança e preservação das atividades internas de uma sociedade.

Palavras-chave: militar, militarismo, polícia

O debate político sobre a reestruturação do modelo policial brasileiro vem ganhando destaque nas duas últimas décadas. Problemas como o aumento dos índices de crimes violentos praticados nos grandes centros urbanos, denúncias constantes a práticas de abuso de poder por parte de policiais e o envolvimento de muitos destes com atividades criminosas, levaram vários especialistas a refletirem sobre a necessidade de mudanças sensíveis nas estruturas organizacionais da policias estaduais, sobretudo as militares. (BATITUCCI, 2010; ZAVERUCHA, 2010).

Segundo CARDOSO (2013), representantes de vários setores da esfera pública, inclusive de associações de praças das polícias militares estaduais, tem veiculado nas redes sociais campanhas para reivindicar o fim das PMs devido ao seu histórico violento. Para o autor, a ideologia militar não protege a dignidade da pessoa humana, mas prepara para o combate e eliminação do inimigo.

A pauta da desmilitarização das policias estaduais ganha espaço na discussão trazendo questionamentos sobre o papel da Polícia militar, inclusive no âmbito internacional. Diplomatas de países como a Dinamarca recomendaram, durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a desmilitarização da policia brasileira.

Conforme publicado pela Rede Tv Uol em setembro de 2015, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Questões das Minorias, Rita Izsáck, em visita ao Brasil, pediu o fim do Polícia Militar e dos casos de mortes por autos de resistências (mortes praticadas por agentes do Estado) como forma de promover a igualdade social e a defesa de suas minorias no país.              

Para ROCHA, a prioridade na maioria das discussões é a desmilitarização da PM (ROCHA, p. 28) e sua consequente unificação à Polícia Civil, sendo convertidas em uma organização policial de ciclo completo, na qual teriam agentes atuando no policiamento ostensivo (Fardado) e outro grupo de agentes atuando como polícia judiciária (Investigativa).

Para que compreendamos o funcionamento do atual modelo de polícia ostensiva brasileiro, também é salutar um exercício de análise sociológica e histórica que não se detenha apenas no período recente da história do Brasil, de 1964 – Marcado pela Ditadura Militar e a instauração da Doutrina de Segurança Nacional, que transformou as diretrizes nacionais de segurança pública – até a Nova República, mas que abranja a segunda metade do século XIX até a ditadura do Estado Novo. Neste grande espaço de tempo, segundo BATITUCCI (2010), COTTA (2006) e JÚNIOR (2011), o conceito moderno de policiamento foi desenvolvido na Europa e, especificamente no Brasil, o modelo de policiamento sofreu grandes transformações.

Conforme o exposto, as ações violentas cometidas por agentes públicos, em particular por policiais militares, denotam, para alguns, que a desmilitarização resolveria os problemas dessa natureza. Estudiosos como ZAVERUCHA (2010) e COTTA (2006) discutem sobre a gênese das polícias no Brasil e a adesão destas instituições por uma estrutura militarizada, contudo, uma reflexão sobre a Militarização é quase sempre feita de forma superficial. Consequentemente a maioria, a exemplo de Cardoso e SAFATLE (2010), opta por uma visão negativa do Militarismo, considerando-o como herança dos períodos ditatoriais e defende sua eliminação das estruturas policiais, sem antes discutir essa categoria analítica.

Sobre o conceito de Militarismo, DA SILVA (2014) faz uma análise etimológica sobre o termo. De acordo com o autor, a palavra tem origem latina. O radical Militar vem do substantivo “Miles”, e significa soldado. Seu adjetivo “Militaris” significa de soldado, militar, da guerra, guerreiro, e o verbo “milito” significa combater, prestar serviço militar, ser soldado. Miles também origina o substantivo “militia”. Seus significados são serviço militar, campanha, expedição, tropa, ou simplesmente milícia. Porém, o autor diferencia Militar de Militarismo. O militar está associado à ética, disciplina e integridade moral, enquanto o Militarismo está associado à ausência dessas características. O autor ainda diferencia ideologia militar de ideologia militarista. Para ele, a ideologia militar é caracterizada pelo autoritarismo, alarmismo, pessimismo contra a natureza humana, nacionalismo e conservadorismo político, enquanto a ideologia militarista é a exacerbação dessas características, que faz o militar enxergar ameaça e desordem em tudo. (DA SILVA, 2014, pp. 349-362). Segundo Da Silva, quanto mais um corpo militar for profissionalizado e consciente do seu papel na sociedade, melhor será seu relacionamento com os civis. Podemos deduzir que o oposto disso será a ameaça constante da Democracia por um regime militarista.

Após analisar brevemente as categorias militar e militarismo, podemos também discutir a categoria de polícia. Segundo SOUSA (2009), o termo polícia é originário do latim “polítia” e do grego “politeia”, significando governo, organização política. Seu radical “Polis” significa cidade. A cidade-estado helênica. Porém, JÚNIOR (1968) considera a definição do termo polícia como algo genérico devido às mudanças de significado ao longo do tempo. Por conta dessa dificuldade de conceituação, o autor preferiu vincular essa categoria à segurança, “a proteção da sociedade realizada por uma força organizada” (JÚNIOR, 1968, p. 11). Esta força está estreitamente vinculada à sociedade. É um elemento importante para a vida política do corpo social. Para BAYLEY (2001), a Polícia é um mecanismo de regulação e controle social, composto por pessoas pagas com recursos públicos, ou privados, e controlado pelo Poder Público.

 Comparando os significados dos conceitos Militar, Militarismo e Polícia, podemos perceber distinções profundas entre si. Enquanto as duas primeiras categorias, embora aparentemente excludentes, reportam a uma concepção de serviço para a guerra externa, a terceira concepção alude à segurança e preservação das atividades internas de uma sociedade. O Militar atua numa contingencia enquanto o Policial atua no cotidiano. Ambos seriam partes distintas atuando numa relação de complementaridade. Porém, o Militarista pode ser compreendido como o elemento de ruptura dessa relação complementar.

No que tange a as origens das organizações policiais, pesquisadores como Bayley, Bretas, MONET (2001) e MONJADET (2003), consideram que o binômio Organização Policial/Organização Militar está presente na formação das diversas organizações policiais ocidentais, em graus diferenciados. Enquanto modelos policiais como o britânico e o norte-americano são mais caracterizados pela preservação das relações comunitárias, modelos de policiamento como o prussiano e o francês, são bem mais centralizadores e autoritários. Contudo, todos esses modelos absorveram estética, códigos disciplinares e estrutura hierárquica de características militarizadas e tiveram, de acordo com FOUCAULT (1998) e DELEUSE (1990), papéis preponderantes na manutenção de estruturas sociais conservadoras e hierarquizadas.

No caso da formação das polícias brasileiras, o binômio Organização Policial/Organização Militar também está presente. A Ideologia Militar e o Militarismo influenciaram as estruturas das organizações policiais estaduais. No entanto, pesquisadores se dividem quanto à delimitação histórica desse acontecimento. Cardoso,) e ZAVERUCHA (2010), consideram que os períodos do Estado Novo e da Ditadura Militar deram o tom do que hoje conhecemos como Polícia Militar. Zaverucha ainda afirma que, mesmo durante o processo de redemocratização, as  polícias militares estaduais não sofreram transformações profundas. Apesar das discussões sobre o novo papel das polícias e suas possíveis mudanças estruturais, negociações políticas ocorridas nos bastidores da Assembleia Nacional Constituinte contribuíram para a permanência de um modelo militarizado, sob o controle indireto do Exército, mantendo seu status de força auxiliar. (ZAVERUCHA, 2010, pp.40-47) As corporações conservaram muitos resquícios do período autoritário recente.

No entanto, autores como COTTA (2006) e JÚNIOR (2011) consideram que a estrutura militarizada dessas instituições não é um legado da Ditadura Militar ou do Estado Novo apenas. Mas que remonta aos períodos colonial e imperial. Durante esses momentos históricos, as instituições policiais foram sendo formadas e sofreram influências do estado patrimonialista ibérico e dos modelos de policia estatal francês e prussiano. Todos marcantemente militaristas, não apenas militarizados.

Alexandre Pereira da Rocha, em regimes políticos autoritários e democráticos, discute sobre os efeitos da influência militarista não apenas nas polícias brasileiras, mas nas organizações policiais de toda a América Latina, mais especificamente no Chile. Salienta que, a despeito de ter vivido um processo ditatorial ainda mais sanguinário que o brasileiro, as instituições policiais chilenas, mais especificamente os Carabineros, passaram por reformulação doutrinária e hoje gozam de credibilidade junto à sociedade, sem sofrerem o processo de desmilitarização. Semelhantemente, ROCHA (2014) acredita que a mudança que deve ser realizada não é necessariamente a desmilitarização das polícias, mas a reformulação das leis do país, para que tanto a sociedade mais ampla quanto os profissionais de segurança pública, se sintam seguros.  

 

Referencias
BAYLEY, David. Padrões de Policiamento. EDUSP, São Paulo, 2001.
BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. A evolução institucional da Polícia no século XIX: Inglaterra, Estados Unidos e Brasil em perspectiva comparada. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 4, Ed. 7, Ago /Set, pp.30-47, 2010.
BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMGERG, André. A história da Polícia no Brasil: Balanço e perspectivas. Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 162-173. Disponível em:  www.revistatopoi.org
CARDOSO, Rodrigo Eduardo Rocha. O princípio democrático e a desmilitarização das polícias militares no Brasil. Caderno Âmbito Jurídico, 2013. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13823
COTTA, Francis Albert. Breve história da Polícia Militar de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. Crisálida, 2006.
 DA SILVA, Jorge. "Militarismo". In: SANSONE, Lívio et FURTADO, Cláudio (Org.). Dicionário crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia – EDUFBA, 2014, pp. 349 – 362)
DELEUZE, G. Pourparlers. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
JÚNIOR, J. Cretella. Polícia administrativa. In: Tratado de direito administrativo. Forense, 1968.
JÚNIOR, Nilson de Carvalho Cruzoé. O ensino militar na Era Vargas e a formação dos policiais militares da Bahia. História: Debates e Tendências – v. 10, n. 2, jul./dez. 2010, Publicada no 2º sem. 2011, p. 277-292. Disponível em: http://www.upf.br/seer/index.php/rhdt/article/viewFile/2463/1623
MONET, Jean-Claude. Polícias e Sociedades na Europa. Vol.3, EDUSP, São Paulo, 2001.
MONJARDET, Dominique. O Que faz a Polícia? Nev – Núcleo de Estudos da Violência, Ed USP, São Paulo, 2003.
ROCHA, Alexandre Pereira da. A GRAMÁTICA DAS POLÍCIAS MILITARIZADAS: estudo comparado entre a Polícia Militar do Estado de São Paulo – Brasil Carabineros – Chile, em regimes políticos autoritários e democráticos. Tese apresentada ao Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre as Américas, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, com especialização em Estudos Comparados sobre as Américas.
ROCHA, Fernando Carlos Wanderley. DESMILITARIZAÇÃO DAS POLÍCIAS MILITARES E UNIFICAÇÃO DE POLÍCIAS – DESCONSTRUINDO MITOS. Consultoria Legislativa, Estudo publicado em Novembro de 2014. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/fiquePorDentro/temas/unificacao-de-policias/Texto%20Consultoria.pdf
SOUSA, António Francisco de. A Polícia no Estado de Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.
ZAVERUCHA, Jorge. Relações Civil-Militares: O legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In O Que Resta da Ditadura: a exceção brasileira. SAFATTLE, Vladimir e TELES, Edson (Orgs.), Coleção Estado de Sítio, Boitempo, São Paulo, 2010, pp.41-76.
REPORTAGEM:
Em Visita ao Brasil, relatora da ONU pede o fim da Polícia Militar. Disponível em: http://www.redetv.uol.com.br/jornalismo/mundo/em-visita-ao-brasil-relatora-da-onu-pede-o-fim-da-policia-militar

Informações Sobre o Autor

Franklin Ranssen Costa e Silva

bacharel em direito, pós graduando em direito militar


Equipe Âmbito Jurídico

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