Resumo: O Direito Penal vem recebendo diuturnamente influências positivas e negativas das novas tecnologias na contemporaneidade. Reputa-se, aqui, como positiva, a incorporação, nas leis penais, do sistema de monitoramento eletrônico que tem como propósito precípuo o afastamento do acusado ou condenado do cárcere. Argumenta-se que o monitoramento eletrônico, se for regulado criteriosamente na legislação e aplicado pelo magistrado com ponderação, contribui de forma legítima para a humanização da pena privativa de liberdade, constituindo-se em uma das alternativas de solução eficaz à superpopulação carcerária. A Lei n. 12.258/2010, ao inaugurar no ordenamento jurídico brasileiro o monitoramento eletrônico, respeitou os princípios constitucionais da individualização da pena, da proporcionalidade e da humanidade, além da fundamentação das decisões judiciais, encontrando eco na Lei 12.403/2011 que o instaura como medida de cautela, contribuindo, a nova tecnologia, de forma efetiva, para reduzir a superpopulação carcerária.
Palavras-chave: execução penal – monitoramento eletrônico – alternativa legítima – encarceramento
Abstract: Everyday, the Criminal Law has received positive and negative influences of new technologies in contemporary society. Deemed to be here as positive, the merger, at the Criminal Laws, of the electronic monitoring system, that aims mainly the removal of the defendant of prison. It is argued that electronic monitoring, if it is carefully regulated and enforced by the magistrate with equilibrium, contributes to the humanization of lawful deprivation of liberty, thus becoming an effective alternative solution to prison overcrowding. The Law n. 12.258/2010, while inaugurating the Brazilian legal system electronic monitoring, complied with the constitutional principles of individualization of punishment, proportionality and humanity, beyond the reasoning of court decisions, finding an echo in Law 12.403/2011 that establishes as a measure of caution contributing to new technology effectively to reduce prison overcrowding.
Keywords: criminal enforcement – electronic monitoring – legitimate alternative – incarceration
Sumário: Introdução – 1. Conceito e sistemas de monitoramento eletrônico – 2. Monitoramento eletrônico versus direito fundamental à intimidade – 3. A Lei brasileira sobre monitoramento eletrônico – 4. Conclusão.
“Não pode o princípio la vie privée doit être ser interpretado como se, em torno da esfera privada a ser protegida, devesse ser erguida verdadeira muralha. Pelo contrário, os limites da proteção legal deverão dispor de suficiente elasticidade. O homem, enquanto indivíduo que integra a coletividade, precisa aceitar as delitimitações que lhe são impostas pelas exigências da vida em comum. E as delimitações de sua esfera privada deverão ser toleradas tanto pelas necessidades impostas pelo Estado, quanto pelas esferas pessoais dos demais concidadãos, que poderão perfeitamente conflitar ou penetrar por ela”. Paulo José da Costa Júnior. O Direito de estar só: a tutela penal do direito à intimidade
INTRODUÇÃO
O processo de globalização experimentado nas últimas décadas deu lugar ao surgimento de novas tecnologias por conta do desenvolvimento dos meios de comunicação, atingindo de frente as ciências da contemporaneidade. O Direito, por sua vez, além de ter necessitado regular a sofisticada techne da pós-modernidade, passou a ter também a incumbência de punir o seu mau uso.
Todavia, as consequências do desenvolvimento tecnológico não podem ser consideradas completamente negativas para as ciências jurídicas e sociais. Para tanto, há de se admitir que o Direito Criminal utilize a evolução tecnológica operada na atualidade com o propósito de promover a execução penal de forma mais justa e humana.
Nessa intelecção, as leis de diversos países passam a abrigar sistemas de monitoramento eletrônico de presos, os quais aliam ao cumprimento da pena e à prisão cautelar o uso da tecnologia, e poderão amenizar o encarceramento operado de forma tradicional, que vem se mostrando ineficaz, em todo o mundo, no combate à criminalidade e na reinserção social do condenado.
Assim, o monitoramento eletrônico constitui mais uma alternativa, ao lado das penas restritivas de direitos e da multa, a ser usada com os fins de contribuir para o desencarceramento de muitos presos na execução penal, inaugurando a chamada “prisão virtual” ou “extra-muros”. Ademais, a lei processual penal já admite a sua utilização como medida de cautela, para assegurar o resultado útil do processo penal em substituição à prisão preventiva.
É importante registrar, ainda, que o uso dessa tecnologia trará mais tranquilidade e proteção à sociedade, em face da eficaz fiscalização por ela promovida sobre o vigiado, pois cria dificuldades à prática de novos delitos pelo monitorado.
Contudo, alguns segmentos doutrinários manifestam-se contrários à utilização do monitoramento eletrônico, aduzindo que a Justiça Criminal está instaurando um inadmissível big brother sobre os presos, que afeta o direito fundamental à intimidade e expõe publicamente a pessoa processada ou condenada criminalmente, o que viria a impedir o objetivo maior da integração social estabelecida em tratados internacionais de direitos humanos, e que foi acolhida no artigo primeiro da Lei de Execuções Penais.
Defende-se, de outro pólo, nesse breve estudo, que o monitoramento eletrônico, se regulado e aplicado de forma criteriosa, pode ser uma alternativa legítima ao enfrentamento dos problemas carcerários, tais como a superpopulação nos presídios e a desumanização provocada pela pena privativa de liberdade, fazendo-se uma ligeira incursão sobre a constitucionalidade da Lei que o acolheu, no ordenamento jurídico nacional.
1. CONCEITO E SISTEMAS DE MONITORAMENTO ELETRÔNICO
O monitoramento eletrônico consiste na utilização de aparelhos próprios para fiscalizar, à distância, a atividade do sentenciado ou acusado. Nele se empregam descobertas tecnológicas que são voltadas a programas de novos estilos de punição e/ou vigilância do infrator.
Constitui-se em “ferramenta de supervisão contínua destinada a confirmar a localização de pessoas”.[1]
O primeiro aparelho de monitoramento eletrônico foi desenvolvido por um psicólogo de Harvard, Robert Schiwtizgebel, no ano de 1960. A chamada “máquina do Dr. Schwitzgebel” era formada por uma bateria e um transmissor capaz de emitir e receber sinal numa extensão de um quarto de milha.[2]
A invenção foi patenteada por volta de 1969, pelo Dr. Schwitzgebel. Entretanto, o monitoramento eletrônico nos Estados Unidos não foi iniciado antes da década de oitenta (1980). Relata-se que o juiz americano Jack Love, de Albuquerque, Novo México, teria se inspirado na história em quadrinhos do “Homem Aranha”, quando consultara um especialista em eletrônica, Michel Goss, que elaborara o design e a fabricação do aparelho de monitoramento. Mas foi somente em 1983, que o referido juiz determinou, pela primeira vez, a colocação de um infrator sob esse sistema de vigilância. Depois dessa experiência, a Flórida o adotou com o escopo de reduzir a superpopulação carcerária, tendo a prática se espalhado rapidamente por outros estados.[3]
Em regra, o monitoramento eletrônico vem sendo feito, nos países que o adotam, através de um sinalizador GPS. Trata-se de um “acrônimo, significando em inglês Global Positioning System e em português Sistema de Posicionamento Global”, afirma Rogério Greco.[4] O GPS permite saber a localização das pessoas que são monitoradas por esse sistema em todo o planeta.[5]
O projeto que originou o GPS teve origem há cerca de 30 (trinta) anos, através do governo dos Estados Unidos da América, mais precisamente pelo Departamento de Defesa, quando foram lançados para a órbita vários satélites que tinham como propósito ultrapassar as limitações dos sistemas de localização que eram utilizados até aquele momento.[6]
As principais opções técnicas de monitoramento eletrônico que podem ser adaptadas à pessoa são em forma de pulseira, tornozeleira, cinto e microchip, sendo que este último é implantado no corpo humano. Como bem se refere Rogério Greco, “a utilização pode ocorrer de maneira discreta, permitindo que o condenado cumpra a sua pena sem sofrer as consequências nefastas do cárcere”. [7]
Ademais, em face do efetivo desenvolvimento tecnológico dos dias atuais, a tendência é que o monitoramento eletrônico fique cada vez mais imperceptível. Registre-se que o microchip cutâneo já é uma realidade, e pode conter todas as informações necessárias à localização do vigiado. Porém, causa discussões importantes por violar a integridade física do monitorado.
Christiany Pegorari Conte[8] descreve, de forma esclarecedora, o funcionamento desses dispositivos. Afirma que deles partem sinais a um transmissor colocado no Centro de Controle de Monitoramento, e o transmissor conectado a um satélite permite saber a localização exata do infrator (pelo sistema GPS). O GPS calcula a longitude, latitude e velocidade do portador do dispositivo. Ele alerta o Centro de Controle de Monitoramento, caso o infrator penetre em uma área de exclusão determinada pelo juiz.
Quanto ao bracelete-emissor, que pode ser fixado no punho ou no tornozelo, assevera que tem a função de emitir, automaticamente, sinais de rádio que permitem atestar a presença da pessoa monitorada no lugar designado, ao receptor, e “integra fibras óticas que permitem assinalar os defeitos de funcionamento e as tentativas de danificá-lo”. É ainda dotado de bateria que avisa, através de alarmes específicos, quando ocorre pane.
O receptor-transmissor, por sua vez, é ligado à linha telefônica e colocado em determinado lugar do domicílio, que pode ser o local de trabalho ou estudo. Registra os sinais do emissor e os transmite a um computador central. Capta as operações de retorno, deslocamento, pane e tentativa de violação do aparelho, além de possuir uma bateria destinada a garantir a autonomia em caso de falta de energia elétrica, ficando tudo registrado em memória.
A referida autora ressalta, ainda, que o Centro de Controle do Monitoramento localiza-se, em regra, nos estabelecimentos prisionais, onde um funcionário designado analisa as fichas dos monitorados e indica as horas do controle. O computador compara os sinais enviados pelo receptor instalado na casa do monitorado ao programa-horário estabelecido. Se ocorrer alguma falha, um alarme é acionado no terminal de controle.
O terminal de controle de monitoramento é o posto de gestão operacional situado dentro do serviço encarregado do monitoramento (estabelecimento prisional) e registra os alarmes recebidos, com as indicações que permitem identificar o condenado e cuidar dos alertas emitidos pelo Centro de Controle de Monitoramento. O alarme é acionado quando ocorre alguma falha técnica ou em face da ausência do monitorado, e serve para alertar a autoridade competente acerca do desrespeito aos horários, degradação do material ou cometimento de nova infração.
É importante salientar que muitos países já utilizam o sistema de monitoramento de presos. Podemos citar, além dos Estados Unidos, a Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, China, Dinamarca, Escócia, França[9], Holanda, Inglaterra, Israel, Itália, África do Sul, Canadá, Noruega, Japão, Hungria, Israel, Nova Zelândia, Portugal, Espanha, Tailândia, Suécia, Suíça, dentre outros, o que vem demonstrar uma forte aceitação do sistema de monitoramento eletrônico, estabelecendo-se, em nível mundial, um novo paradigma de execução da pena de privativa de liberdade ou de restrição cautelar, bem menos prejudicial do que o cárcere.
2. MONITORAMENTO ELETRÔNICO VERSUS DIREITO FUNDAMENTAL À INTIMIDADE
Parte da doutrina vem levantando vozes ao defender a impossibilidade de utilização do monitoramento eletrônico, sob a justificativa de que o condenado seria indevidamente exposto, levando-se ao conhecimento de todos que estaria cumprindo pena sob essa modalidade de vigilância, o que constituiria um atentado contra a sua dignidade e, especialmente sobre o direito fundamental à intimidade.
Nesse sentido, manifesta-se Raimundo Cezar Britto Aragão:
“[…] o monitoramento fere os princípios da intimidade e privacidade e contraria o direito constitucional de ir e vir das pessoas, ainda que condenadas: hoje é uma pulseira eletrônica; amanhã, um chip. Depois se estende para as crianças, para os adolescentes e, por fim, passaremos a viver num lugar Big Brother, com todo mundo sendo vigiado pelo Grande Irmão onipotente e presente.”[10]
Rogério Greco, em sentido diametralmente oposto, pontua:
“Embora todo raciocínio que tente preservar a dignidade do ser humano seja louvável, não podemos nos esquecer que não existe direito absoluto, a não ser, como se afirma majoritariamente, o direito de não ser torturado ou de ser escravizado. Não podemos, ainda, agir com ingenuidade na defesa de certos princípios fundamentais, sob pena de inviabilizarmos qualquer projeto, mesmo os benéficos à pessoa humana. No caso do monitoramento, entendemos que, entre colocar o condenado num sistema falido que, ao invés de ressoacializá-lo, fará com que retorne completamente traumatizado ao convívio em sociedade, com toda a certeza, será preferível o seu controle pelo Estado em algum local extra muros, previamente determinado.”[11]
Verifica-se, diante dessas argumentações, estar-se diante de um conflito de direitos constitucionais. A adoção do monitoramento eletrônico partiria em direção ao direito público ou do Estado de promover segurança à sociedade, enquanto a proteção à intimidade seguiria a linha de garantia do direito individual do monitorado. Levanta-se, então, a possibilidade de se proceder a uma ponderação desses interesses, à luz da razoabilidade, com os fins de se observar qual direito deverá prevalecer em detrimento do outro, aplicando-se, como corolário, o princípio da proporcionalidade.
Ora, o cotejo entre os direitos em epígrafe direciona desde já para a sobreposição do direito/dever público do Estado de promover proteção e segurança em toda a sociedade sobre o direito individual de cada um de seus membros à intimidade. Como bem se posiciona Edson Ferreira da Silva:
“Sob o aspecto do direito público, os chamados direitos humanos não reclamam simples abstenção do Estado quanto a respeitar e não praticar arbitrariedades contra os direitos fundamentais do homem. Mais do que isso, deve o Estado assegurar a todos, pelos mecanismos do Direito Constitucional e do Direito Penal, o livre gozo das liberdades fundamentais. Os órgãos do Estado destinados à contenção da delinqüência e da criminalidade, à apuração de responsabilidades no âmbito penal, desempenham o papel de proteger toda a coletividade em seus interesses fundamentais de segurança e tranqüilidade, dando a todos condições para o cumprimento da natural vocação ao progresso e ao desenvolvimento.”[12]
Ademais, não se pode deixar de considerar que o processo de globalização e as evoluções tecnológicas, que inseriram os cidadãos da atualidade na chamada “sociedade de informação, abriram novas fendas no direito à privacidade, propiciando um novo pensar sobre questões como a vida privada e o conflito entre o interesse público e o interesse privado”.[13]
Nessa porfia, considerando que o cumprimento da pena, pelo condenado, é inevitável em face do dever estatal de promoção da segurança pública, questiona-se: em que medida dever-se-á rechaçar o monitoramento eletrônico em prol da aplicação do encarceramento? A dignidade do acusado ou condenado será mais bem preservada mantendo-o no sistema carcerário, mesmo que possua condições suficientes de ser submetido a um sistema de monitoramento eletrônico?
Em primeiro lugar, não se pode perder de vista a constatação, ao longo dos últimos séculos, de que a pena privativa de liberdade tradicional é completamente ineficaz no combate à criminalidade, além de ser de todo inapta à reinserção social do condenado.
As primeiras críticas ao encarceramento remontam a Franz Von Liszt, que passou a reprovar, no Programa de Marburgo, ainda no ano de 1882, as penas detentivas de curta duração. Assim afirmou: “elas não corrigem, não intimidam, nem põem o delinqüente fora do estado de prejudicar e, ao contrário, muitas vezes encaminham para o crime o delinqüente novel”.[14]
Hoje se tem plena consciência de que o encarceramento é por demais prejudicial, e que vem sendo mantido nas legislações de todo o mundo por não existir uma alternativa capaz de substituí-lo no caso de crimes graves, praticados por delinquentes perigosos.
Nesse diapasão, Cezar Bitencourt enfoca as críticas sofridas pela pena privativa de liberdade em nível internacional:
“Sua incapacidade para exercer influxo educativo sobre o condenado, sua carência de eficácia intimidativa diante do delinqüente entorpecido, o fato de retirar o réu de seu meio de vida, obrigando-o a abandonar seus familiares, e os estigmas que a passagem pela prisão deixam no recluso são alguns argumentos que apóiam os ataques que se iniciam no seio da União Internacional de Direito Penal (Congresso de Bruxelas de 1889)”.[15]
Eugênio Raúl Zaffaroni, por sua vez, refere-se às cadeias como “máquinas de deteriorar” e pontua que o condenado submetido ao sistema prisional é ferido em sua auto-estima pela “perda da privacidade” e de seu “próprio espaço”, além de ser submetido a revistas degradantes e às condições deficientes de todas as prisões: “superpopulação, alimentação paupérrima, falta de higiene e assistência sanitária etc., sem contar as discriminações em relação à capacidade de pagar por alojamentos e privacidades”. Aduz que o efeito da prisão é “deteriorante” por submergir o encarcerado, na chamada “cultura da cadeia”, completamente distinta daquela em que vive um adulto em liberdade, gerando uma patologia cuja principal característica é a “regressão”.[16]
Sendo assim, pergunta-se: se o monitoramento eletrônico invade a intimidade do acusado ou condenado, o que dizer da pena privativa de liberdade tradicional, na qual o recluso é jogado numa cela fétida com vários outros presos com os quais nunca teve sequer qualquer contato, sofrendo toda a sorte de constrangimentos e privações?
Em face dessas considerações de cunho negativo sobre a prisão, a conclusão não poderá ser outra: é chegada a hora de o Direito Penal buscar alternativas a esse degradante sistema, e a tecnologia da atualidade permite que se dê um passo à frente e se acolha uma forma de execução da pena de prisão menos invasiva e bem mais humana do que o cárcere.
Ao contrário do que apregoam alguns, o sistema eletrônico de vigilância surge em socorro da dignidade da pessoa humana, pois além de evitar o ingresso de acusados da prática de determinados ilícitos penais em um sistema débil e perverso, acelera a saída dos que no cárcere se encontram.[17]
Acrescente-se que o monitoramento eletrônico, ao afastar o sujeito do cárcere, facilita a manutenção dos laços familiares e o exercício da atividade laborativa, propiciando a sua reinserção na sociedade, com a consequente diminuição da reincidência e da taxa de ocupação dos presídios. Isto sem falar da redução dos custos originários do encarceramento.
Todavia, o monitoramento eletrônico, para possuir legitimidade, há de ser imposto, tanto na legislação quanto ao indivíduo, pelo juiz, de forma criteriosa.
A utilização da tornozeleira, da caneleira ou do cinto não deve causar constrangimentos, evitando-se a sua desnecessária exposição e, com isto, a estigmatização do monitorado.
Edmundo Oliveira adverte, com propriedade, que as medidas restritivas de liberdade devem ser interpretadas estritamente como um meio simples de verificar a presença da pessoa no lugar indicado. Refere-se que a escuta e o registro visual, a verificação de parâmetros psicológicos, tais como a ingestão de álcool e drogas, por meio de um controle à distância, não devem ser utilizados. E conclui: “Assim como se proíbe um controle da química do organismo, ou mesmo, no quadro de sistemas ditos ‘reativos’, está também afastada a neutralização do indivíduo via telemática”.[18]
O consentimento do condenado e/ou de sua família, que poderá ser previsto em lei, constitui-se também em uma das formas de minimizar qualquer argumento de violação à privacidade.
No que tange à implantação de chip subcutâneo há de se reconhecer que esse dispositivo afeta, sem sombra de dúvida, a integridade física do monitorado e, com isso, fere de frente o art. 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, bem como a Lei de Execução Penal. Por isso, entende-se que não deverá ser acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Contudo, a utilização de forma criteriosa do monitoramento eletrônico, resultado da evolução tecnológica da pós-modernidade, é perfeitamente viável como alternativa à execução da pena de prisão tradicional e a sua substituição à prisão preventiva.
3. A LEI BRASILEIRA SOBRE O MONITORAMENTO ELETRÔNICO
A Lei n. 12.258, de 15 de junho de 2010, introduziu, no ordenamento jurídico nacional, a possibilidade de utilização de equipamento de vigilância indireta pelo condenado. Para tanto, acrescentou ao art. 122, da Lei de Execução Penal, o parágrafo único, o qual prevê o seu monitoramento, a ser determinado pelo juiz da execução. Ademais, incluiu o art. “146 B” que, nos incisos II e IV, autoriza o magistrado a definir a fiscalização, por meio da “monitoração eletrônica”, nas hipóteses de saída temporária (regime semiaberto) e prisão domiciliar.
Saliente-se que no art. 3º da Lei n. 12.258/2010 ficou estabelecido que o Poder Executivo “regulamentará a implementação da monitoração eletrônica”, ou seja, as condições materiais que farão valer essa nova tecnologia, que poderá ser operada por “GPS, ondas de rádio ou outro sistema mais moderno”.[19]
A mencionada Lei entrou em vigor em 16 de junho de 2010 e, desde esta data, já existe base legal, conforme leciona Luiz Flávio Gomes, para que o magistrado da execução determine o monitoramento eletrônico nas situações nela elencadas.[20]
É importante ressaltar que o Projeto n. 175/2007, que deu origem à Lei n. 12.258/2010, possibilitava o monitoramento eletrônico do preso como reforço dos muros prisionais, ou seja, o condenado poderia ser submetido a esse tipo de vigilância ainda que estivesse no interior do presídio. Além disto, poderia ser utilizado no regime aberto, no livramento condicional, na suspensão condicional da pena, na fiscalização das decisões judiciais ou em pena restritiva de direitos que estabelecesse limitação de horários ou de frequência a determinados lugares.
Todavia, o Presidente da República vetou o monitoramento eletrônico nessas hipóteses com a seguinte justificativa:
“A adoção do monitoramento eletrônico no regime aberto, nas penas restritivas de direito, no livramento condicional e na suspensão condicional da pena contraria a sistemática de cumprimento de pena prevista no ordenamento jurídico brasileiro e, com isso, a necessária individualização, proporcionalidade e suficiência da execução penal. Ademais, o projeto aumenta os custos com a execução penal sem auxiliar no reajuste da população dos presídios, uma vez que não retira do cárcere quem lá não deveria estar e não impede o ingresso de quem não deva ser preso.”[21]
Da leitura da mensagem, verifica-se que o veto presidencial procurou restringir os custos dessa nova tecnologia, admitindo-o apenas nas saídas temporárias e na prisão domiciliar. Contudo, ao adotar essa postura, respeitou os princípios da autorresponsabilidade do condenado, da individualização da pena e da proporcionalidade, estabelecidos no ordenamento jurídico vigente, nos casos das sanções restritivas de direitos e do regime aberto. Observe-se.
O regime aberto, como bem textualiza a Lei de Execução Penal, baseia-se na autodisciplina e no senso de responsabilidade do condenado, não havendo razões para que o preso seja monitorado durante o dia quando exerce atividade externa autorizada. Ademais, a fiscalização de seu cumprimento é diária, quando se recolhe à Casa do Albergado ou a outro estabelecimento similar.
Quanto às penas restritivas de direitos, a sua aplicação importa no reconhecimento, pelo juiz da condenação (art. 44, do CP) ou da execução (art. 180, da LEP), de condições objetivas e subjetivas do réu, bastantes para impingir-lhe uma sanção menos gravosa que a prisão e proporcional à sua culpabilidade, tornando-se, nos termos de nossa legislação, incompatível com o monitoramento eletrônico em face de seus próprios fins de prevenção especial positiva.
Por outro vértice, parece que o legislador buscou, com esse dispositivo, dar eficácia à chamada pena de interdição temporária de direitos denominada “proibição de frequentar determinados lugares”, insculpida no art. 47, inciso IV, do CP, que, efetivamente abriga dificuldades de fiscalização. Da mesma forma, com relação ao sursis e ao livramento condicional, que a impõem na forma de condição de cumprimento (art. 78, § 2º, letra “a”, do CP; e art. 132, § 2º, da LEP).
Todavia, é preciso constatar que o monitoramento eletrônico não deixa de ser uma “privação de liberdade”, sendo denominado, por alguns, de “prisão virtual”. Daí o desacerto de sua imposição nas penas restritivas de direitos e nos benefícios do sursis e livramento condicional, os quais não se constituem em “prisão”, e sim em alternativas à prisão. Desta feita, pensa-se que andou bem o veto presidencial que respeitou, em suma, a essência desses institutos.
De outro pólo, inexiste sustentação para o uso do equipamento eletrônico no interior do presídio. Tal disposição somente viria trazer descrédito à vigilância direta. É fato que o sistema carcerário precisa melhorar, mas o monitoramento eletrônico dos sentenciados no interior do estabelecimento prisional não é a melhor opção a atender esse propósito. Se há vigilância direta, o monitoramento eletrônico é dispensável. Assim, reputa-se mais uma vez acertado, o veto, em face desse dispositivo.
O Projeto n. 175/2007 previa, ainda, no art. 146-A e parágrafo único, que o juiz poderia determinar “a vigilância indireta para a fiscalização das decisões judiciais”, cujo equipamento de monitoração indicaria “o horário e a localização do usuário”, além de “outras informações úteis à fiscalização judicial”. Porém, tal disposição tratava-se, no dizer de Luiz Flávio Gomes, de um “cheque em branco ao juiz”.[22] Saliente-se que, por ser uma norma genérica e indeterminada, padecia também de inconstitucionalidade para figurar na lei executória penal, agindo com acerto o Presidente da República ao vetá-la.
Lado outro, observe-se que a possibilidade de utilização do monitoramento eletrônico na saída temporária e na prisão domiciliar é benéfica ao apenado na medida em que contribui para o seu desencarceramento e reinserção social, satisfazendo ao princípio de humanização das penas.[23]
Com a utilização desse equipamento de vigilância, os juízes terão mais segurança para conceder o benefício da saída temporária, tornando possível o contato de mais condenados com a sociedade, afastando-os gradativamente do cárcere. A prisão domiciliar, por sua vez, terá uma vigilância real sobre o sentenciado. Com isto, haverá também maior estímulo do Poder Judiciário em concedê-la.
Tudo indica que, na linha evolutiva de humanização da pena, os presídios tendem efetivamente a desaparecer para dar lugar à prisão com monitoramento eletrônico. E a prisão domiciliar, já bastante utilizada em muitos países[24], será certamente reconhecida, nessa trajetória, como a “prisão do futuro”.
Ademais, há de se ressaltar que a Lei brasileira também se mostrou, pela inserção do inciso IX no art. 319, apta a colaborar para reduzir a superpopulação carcerária, pois admitiu o monitoramento eletrônico como medida alternativa à prisão preventiva coma edição da Lei n.12.403, de 4 de maio de 2011. Saliente-se que o grande plus desse tipo de vigilância é, sem dúvida, diminuir o encarceramento desnecessário.
Também o fato de a Lei n. 12.258/2010 não exigir a anuência do condenado para ser submetido ao monitoramento eletrônico fragiliza a legitimidade da medida. Por outro prisma, verifica-se que o texto legal respeitou a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, inserta no art. 93, inciso IX, da CF, ao estabelecer, no novo parágrafo único do art. 122, da LEP, que o juiz deverá fundamentar a imposição desse tipo de vigilância. Daí concluir-se que o monitoramento eletrônico não é a regra, e sim, exceção, a ser justificada nos casos em que houver necessidade de sua adoção.
Embora tenha ficado consignado que a Lei em análise não é perfeita, é preciso reconhecer que ela atende aos requisitos de constitucionalidade exigíveis, não se podendo esquecer que a vida em comunidade impõe o respeito à garantia de direitos fundamentais do indivíduo, inclusive a proteção à intimidade, mas também obriga o sujeito a uma condução de vida responsável e limitada pelo bem comum dos seus integrantes. Desta maneira, exige-se da ordem jurídica a imposição de sanções justas e proporcionais ao abalo praticado e, do Poder Público, a adoção de ações que assegurem de forma legítima a segurança coletiva.
Trata-se do primeiro passo da legislação brasileira que inaugura, com a Lei n. 12.258/2010, uma nova forma de vigilância (indireta) sobre os presos e que encontrou ressonância na Lei n. 12.403/2011 como medida de cautela. Inicia-se a experiência de utilização da tecnologia da contemporaneidade com os fins de promover mais segurança à população e mais estímulo ao cumprimento da prisão “extra muros”, o que repercutirá, em um futuro próximo, também através da edição de novas leis, no cumprimento mais humano da pena de prisão.
4. CONCLUSÃO
1. O desenvolvimento tecnológico da era da globalização vem repercutindo paulatinamente nas ciências jurídicas e sociais, trazendo-lhes novos desafios que se subsomem na constante regulação dos produtos tecnológicos dessa época. Ao Direito Penal, contudo, foi legada a oportunidade de conceber, em seus textos legais, a utilização de equipamentos de monitoração eletrônica, fruto da tecnologia contemporânea, que muito vem contribuindo para delinear uma nova forma de cumprimento da pena de prisão.
2. Doutrinadores de escol posicionam-se de forma favorável ao uso dessa nova tecnologia, pelos presos, sustentando que o monitoramento eletrônico, além de trazer mais tranquilidade à sociedade em vista da efetiva fiscalização promovida sobre o vigiado, afasta-o dos malefícios do cárcere, colocando-o em contato com sua família, amigos e labor. Outros, porém, manifestam-se contrários ao monitoramento eletrônico, aduzindo que ele consiste em uma intromissão desarrazoada no direito à intimidade do preso, ocasionando-lhe uma pública exposição, o que viria impedir sua reinserção social.
3. Saliente-se que, na baliza entre o direito individual à intimidade e o direito público à segurança da sociedade, é necessário proceder a uma ponderação de interesses, sobrepondo-se o público ao privado. O cumprimento da pena pelo condenado é inevitável, em face das responsabilidades do Estado na seara penal, devendo ser aplicado, para tanto, o princípio da proporcionalidade, buscando-se, entretanto, uma forma de punir menos lesiva à dignidade da pessoa humana do que o cárcere.
4. Nessa linha de intelecção, defende-se a legitimidade do monitoramento eletrônico, como alternativa de afastamento do preso dos efeitos nefastos da prisão tradicional, a ser imposto de forma criteriosa, tanto pela legislação, como pelo juiz. O dispositivo eletrônico não deve causar constrangimentos, nem exposição desnecessária, evitando-se, com isso, a estigmatização do vigiado.
5. A Lei n. 12.258, de 15 de junho de 2010, introduziu, no ordenamento jurídico brasileiro, a possibilidade de utilização do monitoramento eletrônico, nas hipóteses de saída temporária (regime semiaberto) e prisão domiciliar, encontrando eco na Lei n. 12.403, de 4 de maio de 2011, que o inseriu no âmbito cautelar, fato que há de contribuir, sobremaneira, para reduzir a superpopulação carcerária. Trata-se de lei que respeita os princípios constitucionais da individualização da pena, da proporcionalidade e da humanidade, além da fundamentação das decisões judiciais.
6. Foi dado assim o primeiro passo na utilização da tecnologia da atualidade no cumprimento da pena de prisão. Estima-se que, num futuro próximo, novas experiências legais sejam lançadas para possibilitar uma execução penal menos degradante que o cárcere.
Procuradora de Justiça do Ministério Público da Bahia. Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Processo Civil e Penal pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Professora convidada do Curso de Especialização em Ciências Criminais da Universidade Federal da Bahia e do Programa de Capacitação e Educação em Direitos Humanos da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Bahia. Ex-Professora de Direito Penal da Faculdade 2 de Julho
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