Necessidade de justa causa para a instauração de processo administrativo disciplinar – impossibilidade do procedimento genérico para que no seu curso se apure se houve ou não falta funcional

Introdução


Sentimos a necessidade de discorrer sobre o tema, que é de grande relevância, em razão da doutrina e da jurisprudência caminharem apenas no sentido da necessidade de justa causa para a instauração do procedimento criminal, sob pena de seu trancamento, via habeas corpus.


Sucede, que firmes posicionamentos são utilizados para defender, com toda razão, a necessidade de justa causa, para instauração do inquérito policial e até mesmo o próprio processo penal não direcionou até agora, também os seus valiosos focos para o procedimento disciplinar.


Ora, apesar de serem autônomos e independentes, existe forte semelhança entre o processo penal e o inquérito administrativo disciplinar. Basta notar, que em alguns casos, as normas punitivas do processo disciplinar se aproximam dos princípios do direito repressivo. Isso porque, quando um fato tem a natureza de infração disciplinar, pode ao mesmo tempo desencadear um processo crime, por ofender os interesses sociais gerais prevenidos nas leis penais. A responsabilidade penal abrange os crimes de contravenção imputados aos servidor, nessa qualidade.[1]


O Estatuto do Servidor Público Federal é claro em estipular a tríplice responsabilidade do servidor:


“Art. 121 – O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições”.


Portanto, como já dito, pode um fato disciplinar punível desencadear também responsabilidade criminal do servidor. Sendo certo, que a justa causa para a instauração do processo penal também deverá estar presente no âmbito disciplinar, pois a Constituição Federal garante o direito à inviolabilidade da honra, da vida privada e do cidadão, sem distinguir, se ele é ou não servidor público.


A existência da justa causa é condição sine qua non para a instauração do inquérito administrativo, pois sem elementos materiais, não pode o administrador público devassar a vida do servidor público sob o pálido argumento de tentar encontrar indícios de uma pseudo infração disciplinar.


Por ser o tema de grande relevância, resolvemos adentrá-lo no intuito de fixar os limites do poder público, que como todos sabem, possui competência discricionária para a instauração dos procedimentos administrativos que achar necessário para o atingimento de um determinado fim, do interesse da sociedade.


Sucede, que a atuação conforme a lei e o direito, retira do Estado a ampla, geral e irrestrita discricionariedade, devendo a Administração Pública obedecer ao princípio da segurança jurídica,[2] só instaurando o processo disciplinar quando estiver presente com toda certeza e materialidade, uma justa causa para a sua instauração, sob pena de indevida invasão da privacidade do agente público.


II – Do processo administrativo disciplinar


O processo administrativo disciplinar deverá ser instaurado sempre que a autoridade pública tiver ciência de qualquer irregularidade funcional perpetrada por agente público. Mas essa ciência deverá vir composta por elementos que comprovam falta aos deveres da função, e não uma acusação genérica.[3]


Nessas condições, somente o exercício irregular das atividades funcionais do servidor público, que desencadeie em descumprimento a deveres ou inobservância a proibições, devidamente comprovados ou que existam forte indícios dessas infrações é que deverão ser apurados:


“O uso do poder disciplinar não é arbitrário: não o faz a autoridade quando lhe aprouver, nem como preferir.”[4]


Ou como averba José Armando da Costa,[5] sem o fumus boni iuris não há como se instaurar procedimentos disciplinares:


“A garantia do devido processo legal não só assegura ao funcionário a feitura do procedimento disciplinar previsto na lei (sindicância e processo ordinário sumário), como exige, por via de conseqüência, a existência de elementos prévios que legitimem tal iniciativa.


Não fosse a exigência desse pré-requisito, os procedimentos disciplinares – estribando-se em meros caprichos do administrador e podendo ser instaurados sem mais nem menos, isto é, sem a existência de indícios ou outros adminículos legais idôneos – a vida funcional do servidor público seria um constante transtorno recheado por uma insegurança jurídica. Daí porque o aspecto mais democrático e importante do devido processo legal é a exigência desse imprescindível requisito de iniciação processual (fumus boni iuris), sem o qual ficaria o servidor público à mercê das trepidações emocionais dos seus superiores hierárquicos, os quais poderiam, assim, infelicitar , importunar e desassossegar os seus subalternos como bem lhe aprouvesse, já que não estariam vinculados a esse pressuposto legal.”


No curso dos anos tivemos ciência de alguns inquéritos administrativos genéricos, instaurados sem elementos de apoio, para a posteriori ser feita uma devassa na vida do servidor público, com o objetivo de apená-lo, mesmo que inexistentes indícios de irregularidades.


Além de discriminatório, esse tipo de conduta merece o devido repúdio por parte do direito administrativo, que não admite desvios ou excesso de poder por parte da Administração Pública.


Com tintas fortes, Adilson Abreu Dallari,[6] indignado, faz forte coro contra essa conduta:


“Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico para que, no seu curso se apure se, eventualmente, alguém cometeu falta funcional.


Não é dado à Administração Pública nem ao Ministério Público, simplesmente molestar gratuitamente e imotivadamente qualquer cidadão por alguma suposta eventual infração da qual ele, talvez, tenha participado.


Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente necessário, e na medida do necessário.”


A seguir, o já nominado mestre arremata:


“Repugna a consciência jurídica aceitar que alguém possa ser constrangido a figurar como réu numa ação civil pública perfeitamente evitável. Configura abuso de poder a propositura de ação civil temerária, desproporcional, não precedida de cuidados mínimos quanto à sua viabilidade.”


Assim, deverá haver um mínimo de prova do cometimento de transgressão disciplinar por parte do servidor público.


Não basta apenas existir um fato ou uma suspeita, pois se torna necessário o fumus boni iuris para o início do procedimento disciplinar contra quem quer que seja.


Esse juízo de valor, mesmo que em sumaria cognito o Administrador Público é obrigado em fazer, sob pena de cometer excesso de poder.


Por isso é que, na dúvida, a prudência manda se apurar o fato tido como suspeito através da sindicância, onde não existe a figura do acusado, e o poder público pode, através de um procedimento sumário, onde é conferido o direito de defesa para o sindicado, promover a devida verificação da existência de indícios para a propositura do processo disciplinar.


Como exemplo, podemos citar o que vem acontecendo nos órgãos em que existe a fiscalização externa do contribuinte, onde os Auditores Fiscais ficam incumbidos de levantar (conferir) documentos que desencadeiam valores pagos indevidamente pelas empresas. Ora, a função do Auditor diligente é a de conferir livros contábeis, sem se imiscuir ou invadir o terreno dos cálculos, tarefa da alçada do pessoal lotado na arrecadação. Assim, diante de equívoco ou erro nos cálculos, a Administração não poderá identificar o Auditor Fiscal diligente, responsável apenas pela conferência dos livros contábeis, como um dos culpados por qualquer equívoco nos cálculos de restituição. Ora, o Auditor, chamado de diligente, é responsável pela conferência apenas dos recolhimentos, verificando os DARFs e a escrituração contábil da empresa sindicada. Só e mais nada.


Assim, o procedimento disciplinar que apura falhas nos cálculos da empresa fiscalizada, não poderá incluir o auditor em seu pólo, pois ele só era responsável regimentalmente pela conferência dos livros fiscais e DARFs e demais elementos, oferecendo um posicionamento opinativo, sem decidir ou fazer um juízo de valor sobre a legalidade ou não da restituição administrativa pleiteada pelo contribuinte.


Assim sendo, a abertura de procedimento disciplinar contra o respectivo Auditor Fiscal fere a legalidade, pois nem em tese, o respectivo Auditor Fiscal seria tido como responsável pelas irregularidades da restituição. Ele só poderia figurar como indiciado se houvesse adulteração nos livros contábeis capaz de induzir os setores competentes ao erro. Esse é um típico caso de abuso de poder por parte da Administração Pública.


Esses casos de excesso de apuração por parte do Poder Público é uma constante, pois vem temperado pelo arbítrio, onde o tempo e futuras despesas gastas com diárias para a Comissão de Inquérito rompem a barreira da eficiência e da moralidade que devem estar presentes em todos os atos públicos.


III – Necessidade de justa causa para a instauração do processo disciplinar


Em boa hora, a atual Constituição Federal estabelece limites à atuação do Estado, conferindo ao cidadão direitos e garantias fundamentais. Sendo legitimado para apurar e punir condutas consideradas ilícitas, o Poder Judiciário (art. 92 e segs./CF), o Ministério Público (art. 127 e segs./CF), as Polícias (art. 144 e ss) e a própria previsão de um contencioso administrativo (art. 5º, LV).


Nessa linha, o constituinte moderno, na luta entre a repressão de ilícitos e a proteção da honra, imagem, bom nome e privacidade, traçou a devida fronteira de atuação do Poder Público, que deverá atuar dentro dos limites estabelecidos pela Magna Carta.


E coube ao artigo 5º da CF e seus incisos distribuir diversos dispositivos que disciplinam o processo; a pena; a aplicação da pena e as condições para seu cumprimento (incisos XXXVII e seguintes); a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem (inciso X); o direito de indenização do dano moral e à imagem (inciso V); defesa da intimidade restringida à publicidade de atos processuais (inciso LX); o direito de defesa (inciso LV) e o direito de propriedade (inciso LIV), dentre outras.


Mantendo inafastáveis e intactos tais direitos, o art. 60, § 4º, IV, da CF, proíbe que sejam esses direitos, inseridos nas garantias fundamentais da sociedade (art. 5º), objeto de deliberação de proposta de emenda constitucional tendente a abolir quaisquer dessas garantias.


Pois bem, a garantia mínima do cidadão de que não será molestado sem o devido processo legal, e que o procedimento instaurado conterá indício da prática de um ato vedado pelo ordenamento jurídico vigente é uma realidade, pois se também existem dois conjuntos de normas constitucionais – os que propugnam a investigação e punição de ilícitos e os que protegem a honra e a imagem das pessoas – o certo é que o direito reconhece e cria instrumentos aptos que evitam danos inúteis à imagem das pessoas quando não haja elementos de suspeitas suficientes para constranger as pessoas a determinados procedimentos.


Os procedimentos disciplinares entram também nessa escalada, pois é vedada a instituição de procedimento disciplinar genérico, onde acusações vagas servem para iniciar uma devassa na vida do agente público, no afã de encontrar-se prova de pseudo conduta ilícita.


A sociedade clama por uma justiça administrativa séria e que, antes de mais nada, respeite os direitos e prerrogativas dos acusados.


Não é lícito e nem factível que ainda ocorram acusações genéricas contra a honra de quem quer que seja. O direito não permite procedimentos de caráter aberto, sem que haja justa causa, contra agentes públicos que renderão ou não espaço na mídia contra seus nomes.[7]


Essa garantia de inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas retira do administrador a discricionariedade de instaurar procedimento disciplinar contra servidor público sem um mínimo de indício ou plausibilidade de acusação. Não se admite a acusação genérica, sem justa causa:


“Com efeito, a necessidade de justa causa para a procedibilidade da denúncia tem o propósito de não submeter o indivíduo a uma situação que expõe sua reputação e imagem se não houver elementos suficientes consistentes que indiquem sua necessidade.”[8]


A denunciação caluniosa é crime capitulado no artigo 339 do Código Penal e conjugado com o artigo 648, também do Código Repressivo, dá azo ao trancamento de inquéritos natimortos, sem justo motivo:


“Art. 339 – Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente:


Pena – reclusão, de 2(dois) a 8 (oito) anos, e multa.”


“Art. 648 – A coação considerar-se-á ilegal:


I – quando não houver justa causa.”


A falta de justa causa afasta a figura do possível delito, tendo em vista a ausência do ato ilícito. O STF vem retirando do Ministério Público o poder de instaurar inquérito policial sem um mínimo de plausibilidade ou de justo motivo, trancando-o:


Habeas Corpus. Inquérito policial instaurado pelo fato de vereadores terem recebido importâncias em virtude de lei municipal que veio a ser considerada inconstitucional pelo Tribunal de Contas do Estado, conhecimento parcial, com base na letra d do inciso i do artigo 102 da Constituição, já que, no caso, não há sequer conexão determinadora do deslocamento da competência. Sendo o fato que deu margem à instauração do inquérito policial manifestadamente atípico, é de trancar-se esse inquérito por falta de justa causa. Habeas Corpus conhecido quanto ao paciente que atualmente é deputado federal, e deferido com relação a ele.”[9]


“(…) Ausência de tipicidade penal – Falta de justa causa – Trancamento de IPM – Pedido deferido. O trancamento do inquérito policial pode ser excepcionalmente determinado em sede de habeas corpus, quando flagrante – em razão da atipicidade da conduta atribuída ao paciente – a ausência de justa causa para a instauração da persecutio criminis. Nos delitos de calúnias, difamação e injúria, não se pode prescindir, para efeito de seu formal reconhecimento, da vontade deliberada e positiva do agente de vulnerar a honra alheia. Doutrina e jurisprudência. Não há crime contra a honra, se o discurso contumelioso do agente, motivado por um estado de justa indignação, traduz-se em expressões, ainda que veementes, pronunciadas em momento de exaltação emocional ou proferidas no calor de uma discussão. Precedentes.”[10]


Diante de todos esses elementos legais e jurisprudenciais, a Administração Pública deverá instaurar procedimento disciplinar contra agentes públicos para verificar a possível prática de infringência disciplinar, desde que exista um mínimo de provas ou materialidade do cometimento de ato ilícito.


Corroborando o que foi dito, a Lei nº. 9.874/99, que regula o processo administrativo federal, veda as medidas restritivas além daquelas que sejam estritamente necessárias, bem como a segurança jurídica:


“Art. 2º – A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.


Parágrafo Único – Nos processos Administrativos serão observados, entre outros os critérios de:


I – Atuação conforme a Lei e o Direito;


……………………………………………………………………


IV – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior  àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.”


Assim sendo, em respeito ao mandamento da inviolabilidade da honra e da imagem do agente público, só deverá ser instaurado o procedimento administrativo disciplinar quando haja um fundamento razoável, pois sem justa causa o inquérito é natimorto.


A “concepção de Estado se assenta basicamente na idéia de segurança. Tanto na proteção prática e na fiscalização da liberdade, o Estado usa de sua autoridade. Isso explica porque, entre justiça e segurança, o Estado optará pela última, base de sua existência.”[11]


Necessariamente deverá estar presente o justo motivo não só para a propositura de ação penal, como também para instauração do processo disciplinar correspondente, pois nessa última situação também não se admite a turbação da honra, da intimidade e da imagem do servidor público, que possui na CF o antídoto necessário para curar chagas de injustiça perpetradas pelo Poder Público.


Alexandre de Moraes,[12] em feliz síntese, grafa que a proteção constitucional da intimidade e da honra se estende a todos os relacionamentos da pessoa, inclusive as relações de trabalho:


“Os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada apresentam grande interligação, podendo, porém, ser diferenciada por meio da menor amplitude do primeiro, que se encontra no âmbito de incidência do segundo. Assim, o conceito de intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa humana, suas relações familiares e de amizade, enquanto o conceito de vida privada  envolve todos os relacionamentos da pessoa, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo, etc.


Encontra-se em clara e ostensiva contradição com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), com o direito à honra, à intimidade e vida privada (CF, art. 5º, X), converter em instrumento de diversão ou entretenimento assuntos de natureza tão íntima quanto falecimentos, padecimentos ou quaisquer desgraças alheias que não demonstrem nenhuma finalidade pública e caráter jornalístico em sua divulgação.”


Portanto, a intimidade se relaciona diretamente com toda a vida privada do indivíduo, inclusive a suas relações de serviço, que são preservadas em homenagem à honra e a boa imagem de que devem desfrutar todos os homens de bem perante a sociedade.


Para que haja a instauração do procedimento disciplinar haverá necessariamente, uma infração praticada no exercício das atribuições do agente público, ou que tenham relação com as atribuições do cargo ou função em que se encontre investido. Essa é, aliás, a orientação do art. 148 da Lei nº. 8.112/90, seguida, em quase toda sua totalidade, por todos os estatutos disciplinares dos servidores públicos, pois não se admite a instauração de um procedimento disciplinar sem que ocorra um justo motivo.


Aliás, essa é a orientação do parágrafo único do art. 144 da Lei nº. 8.112/90, que preocupado com o denuncismo genérico sobre irregularidades no serviço público, obriga que o fato narrado na peça acusatória seja configurado como evidente infração disciplinar ou ilícito penal, sob pena de arquivamento, por falta de objeto.


“Art. 144 – As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade.


Parágrafo Único – Quando o fato narrado não configurar evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a denúncia será arquivada, por falta de objeto.”


Falta de objeto é sinônimo de ausência de justa causa. Sendo certo que somente a irregularidade, recheada de elementos sólidos e concretos é que poderão ser investidos, sem que haja constrangimento ilegal da honra e da intimidade do agente público.


Isso porque, mesmo o Estado tendo uma supremacia especial sobre os seus agentes públicos, ele não pode iniciar um processo punitivo sem que ocorra uma justa causa, consubstanciadas em provas e fatos legítimos que indiquem o cometimento de uma infração disciplinar ou penal.


Estribado no citado art. 144, e parágrafo único da Lei nº. 8.112/90, José Armando da Costa[13] também se perfilha ao que foi dito:


“Vê-se, assim, que, sem esses conectivos pré-processuais, resta ilegítima a iniciativa da administração pública consiste na abertura desses expedientes apuratórios de faltas disciplinares, pois que tais elementos prévios indiciários (fumus boni iuris) não apenas contribuem uma exigência jurídico-processual sinalizadora da plausibilidade de condenação do servidor imputado, como também configura uma garantia em favor deste, que não poderá, sem o mínimo de motivação, ser submetido a inquietadores procedimentos como tais.”


Caio Tácito, em 1959,[14] com o pioneirismo que marca a sua obra identificava no Direito Público Brasileiro, o respeito ao exercício dos direitos políticos e a inviolabilidade dos direitos individuais.


IV – Princípio da boa-fé e da segurança jurídica retiram do administrador público a faculdade de instaurar procedimento disciplinar sem justa-causa


O processo disciplinar, segundo o art. 148, da Lei nº. 8.112/90, é o instrumento destinado a apurar a responsabilidade do servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre vinculado.


Assim, deverá haver falta administrativa, catalogada como tal no Estatuto, para que seja iniciado o procedimento disciplinar.


A boa-fé e a segurança jurídica retiram do administrador público a faculdade da instauração do procedimento administrativo genérico, sem que haja aparente transgressão aos princípios disciplinares que regem a vida funcional.


Não funciona o processo disciplinar como “uma caixa de surpresas” onde a ausência de materialidade de uma possível falta funcional poderia proporcionar a instauração de inquérito administrativo para devassar a vida do servidor, no afã de se encontrar algo que possa ser usado contra ele.


Não é assim que funciona.


O princípio da boa-fé no direito administrativo exige do agente público, no exercício de seu munus a lealdade, tanto com a sua repartição, como, sobretudo, com o administrado.


Tivemos a oportunidade de sublinhar em outra oportunidade:


“Assim, a idéia de uma conduta leal e confiável (treu und glauben) – substrato  da boa-fé – incorpora-se na essência do direito, para viabilizar a Justiça e a segurança das relações intersubjetivas, figurando como verdadeiro dever do agente público manter aceso esse salutar princípio no cotidiano.


A conexão entre a idéia de direito e o conteúdo ético – necessário, que rege o Princípio da Boa-fé, faz parte de uma perspectiva moderna que busca a lealdade como forma de eficiência e confiança da Administração Pública no relacionamento com a sociedade.


A boa-fé objetiva é reconhecida e consagrada tanto na doutrina nacional como pela jurisprudência, cujo posicionamento se finca na idéia de que os atos privados e os públicos devem ser efetuados dentro de um padrão de lealdade e de ética.


Nessa moldura, mesmo não existindo dispositivo legislativo direto, o princípio sub oculis é informativo dos atos públicos, não se admitindo, em hipótese alguma, que o servidor público paute seus atos funcionais descompassados com a boa-fé e a lealdade.”[15]


Pois bem, nos processos administrativos, o art. 2º da Lei nº. 9.784/99 exigiu em seu inciso IV que o Poder Público atue segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, o que significa dizer, que o sentimento puro, descomprometido com pensamentos pessoais, deverá imperar quando da decisão de instauração de procedimento disciplinar. Ou seja, comprovada a má-fé ou a falta de justa causa para a instauração do procedimento disciplinar, é retirada a faculdade do Poder Público em promover a apuração através do aludido inquérito administrativo genérico, sem elementos ou substâncias:


“Antes de encerrar este tópico, não é despiciendo mencionar duas advertências. A primeira delas é a de que a obrigação de atuar  de conformidade com a boa-fé não se dirige somente do servidor para com a Administração, atuando também na direção inversa. Repugna a ordem jurídica que a Administração leve a cabo deslealdade em detrimento de quem foi investido para agir.”[16]


Deverá, portanto, a boa-fé estar presente nas decisões administrativas, inclusive a que concerne a da instauração de procedimento disciplinar.


Vê-se, assim, que faltará objeto para apurar-se denúncias ou fatos que não configurem evidentemente  infração disciplinar ou ilícito penal.


Abra-se parênteses para registrar, mais uma vez, a posição de José Armando da Costa:[17]


“… sem esses conectivos pré-processuais, resta ilegítima a iniciativa da administração pública consistente na abertura desses expedientes apuratórios de faltas disciplinares, pois que tais elementos prévios indiciários (fumus boni iuris) não apenas constituem uma exigência jurídico-processual sinalizadora da plausibilidade de condenação do servidor imputado, como também configura uma garantia em favor deste, que não poderá, sem o mínimo de motivação, ser submetido a inquietadores procedimentos como tais. Não fosse a exigência do concurso inicial dos referidos adminículos indiciatórios (princípio de prova), a segurança jurídica dos servidores públicos desceria a patamares desprezíveis e instáveis, o que arrostaria de modo brutal e frontal o princípio constitucional do devido processo legal, uma vez que a instauração de tais procedimentos disciplinares se torna legítima e devida ante a existência desses indicadores pré-processuais.”


Portanto, sem indícios ou provas, tanto o princípio da boa-fé como o da segurança jurídica, retiram do administrador público a possibilidade de instaurar procedimento disciplinar contra o servidor público.


A segurança jurídica funciona in casu como o dever/poder do Estado em proteger a sociedade, sem exceção, da inviabilidade da honra e da devida privacidade dos indivíduos, não podendo ser rompida por atos administrativos desarrazoados  ou que guardam em seu núcleo o sentimento pessoal de vingança.


Conclusão


Sem justa causa para a instauração de processo administrativo disciplinar, não estará legitimado o poder público em promover procedimento genérico ou com falsa motivação, para apurar inexistente falta funcional.


A evolução do direito administrativo traz a segurança jurídica como um dos traços marcantes dos dias atuais. Não se admitindo mais que a força do arbítrio prevaleça a qualquer modo.


A presunção de inocência[18] milita em favor de todos, não podendo ser descartada no procedimento disciplinar, pois compete à Administração provar a irregularidade ou a culpa do servidor.[19]


Sendo assim, necessário se faz que haja justa causa na instauração do processo disciplinar, pois senão o mesmo será natimorto, pronto para ser fulminado pelo Poder Judiciário.


Notas:

[1] Cf. art. 123, da Lei nº. 8.112/90.

[2] “Encontra-se a segurança jurídica toda vez que se observa a legalidade, a impessoalidade, a finalidade, a moralidade administrativa. Dessa maneira, podemos dizer que a grande segurança da Administração e Administrado no processo administrativo consiste na observância do devido processo legal, vale dizer, no respeito às linhas traçadas pela lei reguladora, bem como no cumprimento dos postulados básicos que já examinamos.” (José dos Santos Carvalho Filho, Processo Administrativo Federal, Lumen Juris, 2001, p. 57)

[3] “Necessária é, para a aplicação do poder disciplinar, a ocorrência de ‘irregularidade no serviço’, quer dizer, explicitamente ‘falta aos deveres da função’ e não, portanto, mera insuficiência profissional genérica.” (J. Guimarães Menegale, O Estatuto dos Funcionários, vol. II, Forense, 1962, p. 637.

[4] J. Guimarães Mengale, O Estatuto dos Funcionários, volume II, Forense, 1962, p. 638.

[5] José Armando da Costa, Controle Judicial do Ato Disciplinar, Brasília Jurídica, ps. 202/203.

[6] Adilson Abreu Dallari, Limitações à Atuação do Ministério Público, Malheiros, 2001, p. 38.

[7] “O jornalista transforma, de bom grado, o inquérito judiciário  num duelo simbólico entre o juiz de instrução e o acusado, no qual o arbitro não é mais o juiz, mas sim o jornalista.” (Antoine Garapon, O Juiz e a Democracia, Editora Revan, 1996, p. 80).

[8] Luis Roberto Barroso, Temas de Direito Constitucional, tomo II, Renovar, 2002, p. 553.

[9] STF, HC nº. 67.039/RS, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 24/11/89.

[10] STF, HC nº. 71.466/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 19/12/94.

[11] Luiz Fabião Guasque e Denise Freitas Fabião Guasque, O Ministério Público e a Sociedade, Freitas Bastos, p. 19.

[12] Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, 2002, Atlas, p. 224.

[13] José Armando da Costa, Controle Judicial e Ato Disciplinar, Ed. Brasília Jurídica, 2002, p. 203.

[14] Caio Tácito, O Abuso de Poder Administrativo no Brasil, 1959, Departamento Administrativo do Serviço Público e Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, p. 17.

[15] Mauro Roberto Gomes de Mattos, O Contrato Administrativo, 2ª ed., Ed. América Jurídica, 2002, p. 160.

[16] Edílson Pereira Nobre Junior, O Princípio da Boa-Fé e sua Aplicação no Direito Administrativo Brasileiro, Sérgio Antônio Fabris, Editor, 2000, p. 261.

[17] José Armando da Costa, ob. cit. ant., p. 203/204.

[18] “Uma das garantias mais expressivas do processo penal vigente nos países democráticos é a de que não pode haver processo sem um princípio de prova, sem um fumus boni iuris.” (Weber Martins Batista, Liberdade Provisória, Forense, 2ª ed., 1985, p. 27).

[19] “(…) II – No Processo Administrativo Disciplinar o ônus da prova incumbe à Administração.” (AGU – Parecer nº. AGU/MF – 04/98 (Processo 10168.001291/95-93, de 23 de abril de 1998.)

Informações Sobre o Autor

Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro-RJ. Autor de inúmeras Obras Jurídicas. Vice Presidente do Instituto Ibero-Americano de Direito Público (Capítulo Brasileiro) – IADP; Membro da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Membro do IFA – International Fiscal Association; Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social; Co-Coordenador da Revista Ibero-Americana de Direito Público – RIADP (Órgão de Divulgação Oficial do IADP).


Equipe Âmbito Jurídico

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