Sumário: 1. Considerações gerais sobre o tema. 2. O que é nepotismo? 3. A súmula n° 13 do Supremo Tribunal Federal. 4. Atuação do Supremo Tribunal Federal e o sistema republicano como princípio regedor da atividade estatal. 5. O fim do nepotismo e a consolidação da democracia. 6. Senado federal e o princípio da anterioridade. 7. Conclusão
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O TEMA
O brasileiro deixou o ano de 2008 sem resolver um tema de grande relevância para toda a sociedade. Trata-se da questão do desrespeitando da súmula vinculante do nepotismo pelo Senado Federal que, no final do ano passado, sustentou tese de que poderia manter o nepotismo em algumas situações.
Há de ser feita uma detida análise da questão posta a fim de se evitar uma avaliação superficial e despida da necessária fundamentação. Para tanto mister se faz um estudo dos institutos jurídicos e filosóficos que estão envolvidos no debate. Julgo que tais institutos são: República, princípio da igualdade, princípio da anterioridade assim como os princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade dos atos da administração pública. Claro que o debate não se circunscreve com exclusividade a tais institutos e tal se perceberá no decorrer da exposição.
O jornal correio braziliense de 15 de outubro de 2008 (pág. 3) estampou em sua manchete: “Senado insiste no nepotismo”.
Lendo a notícia consta que a advocacia do Senado Federal emitiu um parecer onde considerou que “…um parente de parlamentar pode continuar trabalhando em algum gabinete caso tenha sido nomeado para o cargo de confiança antes da eleição do senador.”. Um determinado Senador justificou a manutenção de uma parenta, embasado no princípio da anterioridade de que fala referido parecer, eis que não teria tido qualquer “..ligação com a nomeação dela”.
O debate decorreu da aplicação (ou não) da súmula vinculante n° 13 do Excelso Supremo Tribunal Federal.
2. O QUE É NEPOTISMO?
No imaginário popular hoje nepotismo é sinônimo de irregularidade administrativa praticada por um agente do Estado ocupante de um cargo e público que “emprega” um parente incompetente.
Coloquemos, no entanto, nos devidos trilhos técnicos essa expressão.
Não há consenso sobre a origem da palavra nepotismo. Alguns vêem sua origem no meio eclesiástico onde derivaria de nepote, que significa sobrinho. Nessa perspectiva, como a Igreja Católica não permitia as autoridades eclesiásticas terem filhos, tais autoridades imprimiam em suas administrações grandes proteções aos referidos parentes dando-lhes cargos de grande importância.
Outra fonte nos aponta para nepos, uma espécie de escorpião, cujas crias, colocando-se no dorso materno devoravam a mãe.
Prefiro ver a expressão nepotismo sob o último enfoque, ou seja: no sentido de nepos (escorpião), aquele que se apodera do Estado e visa apenas o benefício próprio em detrimento da coletividade, se o Estado sobreviverá ou não aos seus ataques isso será percebido apenas pelas gerações futuras e pelos que não gozam de favorecimentos estatais. Assim, e sob essa perspectiva é que se verá o nepotismo nas linhas que seguem.
Assim, nepotismo consiste em condutas praticadas por agentes públicos, que se utilizando dos cargos estratégicos que ocupam na estrutura estatal, passam a nomear ou manter parentes em cargos de comissão em indiscutível prejuízo ao princípio republicano onde o princípio da isonomia deve sempre ser potencializado com o intuito que a coisa do povo (res publicum) reste plenamente preservada.
3. A SÚMULA N° 13 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A súmula n° 13 do Excelso Supremo Tribunal Federal especifica:
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
Muitas críticas têm sido feitas ao Supremo Tribunal Federal sob o fundamento de que essa alta corte estaria atuando em desacordo com suas finalidades constitucionais na medida em que estaria legislando, invadindo, pois, seara legiferante do pode legislativo.
É verdadeira a afirmação de que o Supremo está exercendo função típica do legislativo, ou seja, legislando. Não se diga, por outro lado, que essa corte está apenas interpretando a norma de forma simples, porquanto, estaria apenas dando interpretação a um debate em torno de aplicação de norma jurídica.
Não! A atuação do STF, no caso da súmula vinculante n° 13 extrapola a atuação jurisdicional de simples aplicador do direito ao caso concreto utilizando-se dos instrumentos hermenêuticos postos à disposição do judiciário, como tradicionalmente conferido ao judiciário. No caso em análise (súmula vinculante do nepotismo) ele está verdadeiramente legislando por súmula. Indago: a edição de qualquer súmula decorre de quê? De reiteradas decisões proferidas em situações idênticas e que, com a repetição de manifestações judiciais, se faz necessário pacificar formalmente o entendimento o que se dá, tendo em conta nossa tradição positivista, por meio da edição de uma súmula.
No caso do nepotismo a súmula n° 13 foi editada sem que tenha havido a necessária discussão sedimentada sobre o tema que somente se alcança dita sedimentação por reiteradas decisões nascendo, a partir daí, a necessidade de edição de uma súmula.
Antes de a súmula ser editada tivemos apenas um mandado de segurança decidido pelo STF sobre o tema (MS 23.780-5). Não esqueçamos que súmula decorre de reiteradas decisões proferidas em casos concretos, não se incluindo aí, decisões que venham a ser proferidas em sede de controle abstrato, até porque tais decisões têm por si eficácia ex tunc e erga omnes e seu conteúdo gera eficácia ipso jure.
Assim, a súmula em debate não partiu de reiteradas decisões o que, por si só, já gera certa estranheza à luz da tradição do instituto, que busca na reiteração a segurança de sua edição significando igualmente segurança jurídica ao jurisdicionado.
Não podemos esquecer, no entanto, que a cada dia vivemos mais um Estado jurisprudencial onde a atuação criativa do legislativo não se apresenta mais de forma isolada, ao contrário, em uma sociedade moderna todos participam do processo criativo das normas e, como não poderia ser de outro modo o judiciário participa intensamente dessa criação legislativa, pois o interpretar nada mais é do que criar direito novo para cada aplicação do direito positivo e nesse mister ganham destaque as cortes encarregadas de promover a proteção da constituição, são as denominadas cortes constitucionais que não tem mais como negar essa adjetivação ao nosso Supremo Tribunal Federal.
Sobre essa posição das cortes constitucionais nos ensina Mauro Cappelletti citado por Inocêncio Mártires Coelho:
“Com efeito – acentua Cappelletti -, pela singular posição institucional de que desfrutam, as cortes constitucionais não podem ser enquadradas nem entre os órgãos jurisdicionais, nem entre os legislativos, nem muito menos entre os órgãos executivos. É que, prossegue o mestre italiano, a elas pertence de fato uma função autônoma de controle constitucional, que não se identifica com nenhuma das funções próprias de cada um dos Poderes tradicionais, mas se projeta de várias formas sobre todos eles, para reconduzi-los, quando necessário, à rigorosa obediência das normas constitucionais”. (Curso de direito constitucional, Saraiva, pág. 129 – obra coletiva com Paulo Gustavo Gonet e Gilmar Ferreira Mendes – 2007).
A função legiferante, pois, do judiciário, sobremodo das denominadas cortes constitucionais, com algumas resistências isoladas, se mostra uma realidade irreversível da qual não podemos nos afastar.
4. ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O SISTEMA REPUBLICANO COMO PRINCÍPIO REGEDOR DA ATIVIDADE ESTATAL
Todas as considerações tecidas no item anterior ter por objetivo demonstrar que a súmula n° 13 do Supremo fugiu daquele seu tradicional campo de atuação, onde a corte que a editou não atuou, seguramente, como simples intérprete da constituição naquela tradicional hermenêutica jurídico-constitucional a que estávamos habituados, ao contrário, agiu como típico legislador positivo ao especificar, com detalhes, quais hipóteses não pode haver nomeações. A súmula, pois, não interpretou direito existente, ao contrário, manifestou-se, em si, como típico ato normativo primário onde foi buscar fundamento de validade diretamente no texto constitucional, ou seja, no art. 37, caput da CF e quem nos dá notícia disso é o próprio STF quando para editar a súmula fez referência exclusivamente ao texto constitucional. Consta em seu sítio eletrônico:
“Referência Legislativa
Constituição Federal de 1988, art. 37, “caput“.”
Como dito linhas atrás, essa não é a questão do debate do presente artigo, pois, iniciei constatando que a atuação do Supremo ao editar esta súmula foi de típico legislador e que tal, aliás, agora aqui acrescento, teria ocorrido de forma inadequada se ficássemos em uma avaliação rasteira e de conteúdo tecnicista ortodoxo, pois não raro se vê trabalhos técnicos onde se prova, sob a ótica estritamente de análise da questão sob o enfoque do direito administrativo, que não há qualquer problema em nomear parentes para os cargos em comissão dado que essa forma de nomeação decorre exatamente do elemento de confiança e ninguém mais que o parente inspira confiança.
Não podemos, no entanto, inspirados na avestruz, tapar os olhos para a realidade de que, se não todas, a esmagadora maioria das nomeações que ora se discute decorre exclusivamente do fato de que se quer garantir mais uma renda para os familiares dos nomeantes.
O direito constitucional brasileiro evoluiu e, a meu ver para melhor. Não se pode mais, e isso me parece evidente, imaginar que as atribuições estatais devem ficar presas ao tradicional princípio da separação entre os poderes. Como se sabe o poder estatal é uno e o que se repartem são as funções que são entregues a conjuntos de órgãos antes trancafiados no poder legislativo, no poder executivo e no poder judiciário.
A permanecermos nesse tirocínio indaga-se: o que fazer se o judiciário se omitir em sua função típica de julgar? Ficaremos sem função jurisdicional? O que fazer se o executivo se omitir? Ficaremos sem função administrativa do Estado? Claro que a todas essas perguntas temos uma resposta óbvia: a sociedade não pode ficar à mercê dos respectivos poderes em razão de possíveis omissões. Quando o judiciário se omite isso pode gerar responsabilidade estatal em razão da aplicação do disposto no art. 5°, inc. LXXVIII, da CF. Quando o executivo se omite isso gera igualmente responsabilidade administrativa aos responsáveis. E quando o legislativo se omite essa omissão gera a possibilidade de outro poder legislar em seu lugar.
Vivemos hoje um inquestionável processo de omissões estatais, e isso em qualquer das funções do Estado brasileiro.
No caso presente estamos diante da omissão do legislativo em elaborar normas jurídicas hábeis a trazer ao mundo jurídico regramentos claros sobre o princípio da moralidade e da eficiência.
O judiciário, pelo Supremo Tribunal Federal, pois, assume esse papel (para alguns de forma inadequada) onde, ante a absurda e flagrante omissão do legislador, editou a súmula n° 13, verdadeiramente norma primária onde se impõem obrigações ao administrador público.
Muitos questionam esse agir do STF. Em uma primeira análise, como dito antes, realmente há de se afirmar como indevida tal atuação, entretanto, tal crítica não vinga frente ao aprofundamento da questão.
Nos dizeres de Lassale “A constituição é a lei fundamental proclamada pela nação” (A essência da constituição, Lumen Juris, pág. 22, 4ª edição). Não se pode esquecer, antes de tudo, que nação para Lassale é o povo em participação na vida estatal, é o povo efetivamente participante dos negócios do Estado até porque o Estado nada mais é que a forma encontrada pelo homem para alcançar suas finalidades comuns.
O Estado nasce de um pacto firmado entre os integrantes de sua coletividade (o povo) onde este é formado a partir das necessidades individuais e busca no ente fictício, denominado Estado, sua proteção maior. Melhor explicando: o Estado constitui-se a partir das necessidades dos indivíduos que se agregam para alcançar melhor seus objetivos.
Com essa lição simples percebe-se que os agentes, administradores do Estado, não estão a dirigir coisa própria, mas sim a coisa do povo (res – coisa – publicum – povo) logo qualquer decisão que conflite com a vontade desse povo deve ser tida como ilegítima, claro, respeitando-se as regras estabelecidas no pacto social maior, que é a constituição.
Isso, aliás, não é novidade para absolutamente ninguém eis que já em 1757 Rousseau asseverou em seu clássico Contrato Social:
“Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade. Sejam homens isolados, quantos possam ser submetidos sucessivamente a um só, e não verei nisso senão um senhor e escravos, de modo algum considerando-os um povo e seu chefe. Trata-se, caso se queira, de uma agregação, mas não de uma associação; nela não existe nem bem público nem corpo político. Mesmo que tal homem domine metade do mundo, sempre será um particular; seu interesse isolado do dos outros, será sempre um interesse privado.” (Nova Cultura, Col. Os Pensadores, Rousseau, pág. 67).
E continua Rousseau em defesa do bem comum a fim de se alcançar a verdadeira liberdade individual:
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e seus bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.”
E ainda assevera:
“A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas acoes a moralidade que lhes faltava.”
O Estado é entregue a alguns para ser administrado; tais agentes, no entanto, não podem perder de vista que estão administrando a coisa pública e, portanto, devem praticar todos os atos tendentes a realizar apenas e exclusivamente o bem comum, afinal vivemos em uma república, onde a finalidade primária estatal é o bem comum de toda a coletividade. Qualquer ato estatal que não tenha esse pressuposto carece de legitimidade republicana.
Nesse contexto, qualquer ato estatal (ou omissão) que gere violação ao pressuposto republicano deve ser corrigido senão corre-se o risco de o próprio povo buscar, por outras vias, a solução o que retornaríamos ao indesejável estado de natureza onde todos, segundo Rousseau, agiriam de acordo com o seu instinto.
No caso do nepotismo resta evidente que não há qualquer fundamento para sua manutenção onde uma pequena minoria, só por ocupar posições de destaque está violando o princípio básico da igualdade, princípio este que está especificado no nosso contrato social (a constituição) e exatamente para dar efetividade ao princípio republicano que tem na isonomia sua principal fonte, é que o constituinte declarou no art. 37 que os atos da administração pública devem atender os princípios da impessoalidade e moralidade, dentre outros.
O nepotismo desrespeita a impessoalidade, na medida em que o requisito de escolha de um parente contradiz toda e qualquer vontade geral onde a impessoalidade é o vetor do estado republicano, porquanto prima pelo afastamento de todo e qualquer rumor de favores. A moralidade igualmente é conseqüência da impessoalidade e, uma vez violada esta resta evidente que é despido de moralidade o ato do agente que, administrando coisa pública o faz por critérios particulares, tais conclusões são evidências incontornáveis pois pautam-se em critérios objetivos onde uma vez nomeando ou mantendo parentes há uma natural presunção de ausência de impessoalidade, igualdade e moralidade.
5. O FIM DO NEPOTISMO E A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA
A prática do nepotismo é a demonstração que o antigo estado brasileiro, pautado em princípios quase monárquicos (em algumas regiões chamado de coronelismo) contraria toda e qualquer noção de estado democrático de direito. Compreende-se que aqueles que sugam do estado toda a sua seiva (nepos) não queiram largar a presa até por falta de prática em lidar com o princípio da igualdade e da impessoalidade (moralidade nem se fala!).
O conceito de interesse público passou a ser difundido a partir da constituição de 1988 e tal decorreu do fortalecimento das instituições como o Ministério Público, a Advocacia, imprensa, associações e o que falar do povo que alcançou o que nunca deveria ter-lhe tirado, o gerenciamento da coisa pública pelo direito de petição, ação popular,etc.
O texto constitucional vigente apresentou ao brasileiro diversos institutos com a finalidade à consolidação do estado democrático e dentre eles se destaca o concurso público, porquanto, a par de acabar com o clientelismo procurou primar pelos princípios da moralidade, igualdade e da impessoalidade. Só para se ter idéia, mesmo que o artigo 37 da constituição não impusesse a regra do concurso público, este seria obrigatório sob pena de, sem ele, não restar atendidos tais princípios. Obrigatoriedade de concurso público não é um princípio mas sim apenas um instrumento de realização dos princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade.
Com a previsão do concurso público como regra para o ingresso no serviço público tem-se aí um avanço fenomenal na relação Estado/povo, na medida em que se procura com isso evitar que aqueles que “tinham a sorte” de ocupar um cargo público não pode mais usá-lo para beneficiar amigos e parentes com a distribuição de cargos. A coisa pública, sob esse aspecto, pois, não mais será utilizada por aqueles que exploravam o Estado como coisa sua e manifestando-se como verdadeiros parasitas do Estado. Tínhamos antes de 1988 quase que um direito hereditário de acesso aos cargos públicos onde as negociatas eram pautadas na troca de favores entre os que detinham o poder, ou seja, o Estado era utilizado com finalidade específica para atingir fins privados e não fins públicos.
Com o passar do tempo (isso após 1988) os velhos hábitos dos igualmente velhos “donos do Estado” começaram a encontrar “jeitinhos” para continuar a se apoderar da coisa pública em exclusivo benefício privado. Aproveitando-se das exceções admitidas pelo art. 37 (cargo em comissão) vários agentes públicos começaram a criar número excessivo cargos em comissão para continuar nomeando pessoas sem o necessário concurso público. Um dos órgãos que ainda insiste nessa pratica é o legislativo, notadamente o legislativo federal onde os “nobres políticos brasileiros” nomeiam “apadrinhados” e muitas vezes parentes diretos.
Como o legislativo não elaborou qualquer norma proibitiva dessa prática, foi que o Supremo Tribunal Federal resolveu por um fim à denominada farra dos parentes comissionados e o fez editando a súmula vinculante n° 13 que especifica regras impeditivas das nomeações de parentes.
Não irei aqui entrar em minúcias sobre os casos específicos da súmula eis que esses são detalhes de menos importância dada a seriedade do tema. Apenas resta ressalvado que a medida é moralizadora da relação entre o Estado e seus agentes e só o debate em torno da questão já é por si gerador de bons frutos para a democracia brasileira e o legislativo, como poder encarregado não só de edição das normas jurídicas do Estado, mas também como fiscalizador das contas públicas (art. 70 da CF), deveria dar o exemplo para evitar qualquer prática que possa levar a questionamentos éticos, e não agir como vem agindo que é buscar meios para burlar essa regra moralizadora editada pelo STF.
Talvez isso seja um sonho de um estudante de direito que viu a constituição brasileira, artigo por artigo, ser elaborada sob os discursos aguerridos e legítimos de Mário Covas, Ulysses Guimarães, Bernardo Cabral, dentre outros ilustres constituintes. O legislativo atual insiste em buscar meios para burlar a “determinação” do Supremo Tribunal Federal com teses mirabolantes de, por exemplo, invocar o princípio da anterioridade donde aqueles que tiverem sido nomeados antes do ingresso do congressista não ser atingido pela súmula ou aqueles que ocupem cargos impeditivos e que sejam do quadro efetivo sejam exonerados do cargo em comissão para cessar o impedimento aos parentes, normalmente pessoas que não tiveram a capacidade de lograr aprovação em concursos públicos onde o princípio da moralidade e da impessoalidade são potencializados.
Sou contra a súmula visualizada sob uma perspectiva estritamente jurídica, pois entendo que ela foi editada sem cumprir seus requisitos constitucionais, entretanto algo precisava ser feito, o legislativo descumpridor da constituição insiste em continuar sem regular a matéria exatamente para continuar a sugar a seiva que mantém viva a democracia criando assim um vácuo no estado de direito que somente foi sanado com a atuação “legislativa supletiva” do Supremo Tribunal Federal mediante a edição da súmula vinculante n° 13. Ao legislativo incumbe em caráter primário fazer a normas jurídicas necessárias ao cumprimento dos fins constitucionais e ao se omitir está colocando em risco o próprio estado democrático de direito estampado no art. 1° da CF e o Supremo como guardião maior dessa constituição não tinha alternativa senão declarar o desrespeito às normas constitucionais regedoras da administração e o fez em boa hora e se espera que sejam editadas normas não para “revogar” a súmula mas para trazer, até de forma mais detalhada, as regras inibidoras dessa prática canibal que é o nepotismo que deve ser combatida não só pelo judiciário, mas por todos os integrantes da sociedade que não pode ficar em silêncio frente a tamanho desrespeito ao princípio republicano e ao estado de direito.
Com tudo isso se conclui que toda manobra feita com o fim de burlar a vontade constitucional de não nepotismo deve ser veementemente rechaçada pela sociedade que tem agora ao seu lado o poder judiciário para promover a caça a esses exploradores da coisa pública. Quem quiser ocupar cargo público que o faça ingressando pela porta da frente que é o concurso público, instrumento não só democrático como igualmente impessoal capaz de alçar dignidade a muitos brasileiros que se encontram à margem do poder e que certamente não lograria acesso aos cargos públicos por vínculo de parentesco ou amizade, pois por tais motivos normalmente só ascende ao poder aqueles detentores de melhores condições sociais e parentais.
6. SENADO FEDERAL E O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE
Como dito no início deste artigo, o jornal correio braziliense de 15 de outubro de 2008 (pág. 3) estampou que o nosso Senado Federal havia encontrado um jeitinho de burlar a súmula vinculante n° 13.
O jeitinho referido foi a não aplicação da referida súmula àqueles beneficiados pelo nepotismo que tenham ingressado no Senado antes do agente publico causador do impedimento constante na súmula, a isso se denominou princípio da anterioridade.
Independentemente da possibilidade ou não da aplicação desse princípio resta claro que qualquer solução que seja dada por aquela casa legislativa no sentido de manter os parentes de agentes públicos que ocupam cargos de destaque na casa já é, por si nepotismo violador de todos os princípios referidos no corpo do presente artigo, notadamente o princípio republicano.
Só há uma medida a ser tomada e nenhuma outra mais: exoneração de todos aqueles que ocupam cargo em comissão e que se enquadrem na situação prevista na súmula. Alguma injustiça pode ser gerada? Claro que sim, mas em benefício do princípio da moralidade e da impessoalidade, as exceções não podem servir como norte para decisões de políticas gerais do Estado.
Na reportagem antes referida o nobre Senador Epitácio Cafeteiro, em defesa à manutenção de uma parenta declarou: “Não tive qualquer ligação com a nomeação dela.”. Ora, ninguém é inocente ao ponto de imaginar que isso seja verdade. Qualquer cidadão sabe que esse parente do nobre Senador não saiu peregrinando pelos corredores do Senado apresentando seu currículo e pleiteando o cargo que hoje ocupa. Evidente que ela só se encontra no cargo por obra da interferência do parente Senador e, se esse cargo não fosse ocupado por um parente de Senador certamente estaria ocupado por alguém que se submeteu ao árduo processo seletivo de um dos mais difíceis concursos públicos deste país republicano que procura eliminar políticas colonialistas de tradicionais exploradores do Estado como é o caso do nobre Senador Cafeteira.
Quanto ao princípio da anterioridade, realmente a súmula não esclarece se aquele que foi nomeado antes incorreria ou não na hipótese de incidência da súmula. Mas como afirmado antes, sequer seria necessária a súmula para se chegar a todas as conclusões a que chegamos até aqui. A súmula nada mais é do que um resumo da vontade constitucional logo não contempla todas as situações e não poderia se diferente.
7. CONCLUSÃO
O nepotismo se configura como utilização de cargos públicos para beneficiar parentes para ocupar cargos em comissão onde o parentesco é a fonte do fundamento da nomeação assim como a manutenção , pois não se imagina que o dirigente irá fiscalizar com o mesmo rigor o parente, porquanto apesar do ocupante em cargo em comissão ter ingressado antes do parente gerador da vedação prevista na súmula, a sua continuação no cargo tendo como subordinado o parente, gera uma natural tolerância que não existiria numa relação sem parentesco. Veja que não se pode permitir, na avaliação do nepotismo, um critério subjetivo para concluir se o parente é ou não beneficiado de forma indevida, esse benefício deve ser presumido pois como se trata de coisa pública o critério a ser utilizado para proibir deve ser sempre objetivo, ou seja, se há o parente que possa influenciar no processo de nomeação se presume indevido o ingresso. Com isso é até possível, e isso não se questiona, que eventuais injustiças isoladas sejam cometidas, entretanto, como já dito antes, em nome da moralidade e impessoalidade (princípios expressos na constituição) devem ser desprezadas as situações isoladas em benefício de toda a coletividade.
A não aplicação da súmula gera inquestionável violação ao princípio republicano por seus consectários que são a isonomia, moralidade e impessoalidade, logo inconstitucionais quaisquer medidas que direta ou indiretamente ousem desrespeitar a súmula que, se não é o meio mais adequado para reprimir atos atentatórios aos princípios citados, é atualmente o único instrumento democrático e decorrente do estado de direito que o cidadão dispõe para repreender aqueles agentes públicos que insistem em administrar a coisa pública como típico patrimônio particular, gerando a convicção nos cidadãos em geral de que alguns se apoderam do poder apenas para realização de projetos pessoais e familiares.
A democracia no estado de direito gera a possibilidade de todos os poderes administrarem o Estado onde a clássica separação entre as funções do Estado traçada por Montesquieu não vige de forma absoluta, porquanto, ao conduzir os negócios do Estado a sociedade pluralista tem voz ativa por si ou por seus agentes que não se circunscreve apenas aos eleitos para tal, mas por todos os agentes públicos de qualquer dos poderes que devem agir sempre em nome do povo.
Procurador do Distrito Federal, Advogado e Professor de Direito Constitucional. Autor das seguintes obras: “A reforma do Poder Judiciário – Uma avaliação jurídica e política” e “Curso de Direito Constitucional em Exercícios, ambas pela Editora Saraiva
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