O abolicionismo como utopia produtiva

Pensar em abolir o sistema penal e especialmente seu maior sustentáculo simbólico, o encarceramento, a pena privativa de liberdade em tempos nos quais a banalização e generalização das mais diversas formas de violência e criminalidade são alardeadas na sociedade que acaba clamando na realidade por um exacerbamento das reações punitivas e jamais por qualquer espécie de abrandamento, pode parecer ou até mesmo ser algo inapropriado.


Quando na situação atual autores como Hulsman [1] colocam o sistema penal em questão e pugnam pela sua eliminação, propondo alternativas ao controle social, para a grande maioria das pessoas isso tem o significado de insanidade ou radicalismo sonhador.


Efetivamente, imaginar no atual contexto uma eliminação brusca do sistema penal e da pena de prisão remete a uma situação de insegurança social que até pode não corresponder exatamente à realidade em geral, mas cujo efeito pode ensejar um caos bastante real e palpável.


Dessa maneira surge a seguinte questão: seria o abolicionismo penal uma doutrina ilusória, estéril e legada ao nicho das teorias extravagantes ou excêntricas?


O conteúdo e o potencial críticos do abolicionismo penal não permitem reconhecer de forma alguma sua esterilidade e muito menos sua conformação como uma doutrina congregadora de excêntricos ou insanos incapazes de distinguir a realidade dos devaneios. No entanto, é inegável que o abolicionismo penal é hoje uma verdadeira “utopia”, mas não aquela “utopia regressiva” de que fala Ferrajoli[2] e sim uma “utopia progressiva” face ao seu potencial crítico e inovador.


Deve-se a Thomas More a forja do termo “utopia” em sua obra clássica de mesmo título[3], significando “lugar nenhum” (do grego “ou” – negação; “topos” – lugar). A palavra passou a designar “todo projeto de uma sociedade ideal perfeita”.[4]


É bem verdade que o termo “utopia” adquiriu ao longo do tempo um sentido pejorativo a designar sempre alguma coisa irrealizável ou fantasiosa. De outra banda apresenta também uma aplicação positiva, pois que o ideal apontado pela “utopia” almejada “contém o germe do progresso social e da transformação da sociedade”.[5]


A verdade é que não há dinamismo social sem uma visão utópica. Não há mudança, não há caminho sem que o horizonte seja utópico.


Em um texto chamado “Janela sobre a utopia” Galeano escreve:


“Ela está no horizonte (…) – Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar”. [6]


Portanto, não há mal algum nem insanidade em desejar e planejar uma sociedade livre dos cárceres, das penas aflitivas. Não há mal algum em apontar as irracionalidades, incongruências, disfuncionalidades e desigualdades do sistema penal, pugnando por novas alternativas. O abolicionismo penal enquanto instância crítica do sistema criminal tem contribuído e pode seguir contribuindo para o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social com um enfoque humanizador e redutor da violência interna ao próprio sistema.


A doutrina do abolicionismo penal mostra escancaradamente o quanto é deletéria e irracional a acomodação viciosa e simplista que correlaciona a conduta desviante com a pena criminal, especialmente a pena de prisão. Em última instância, demonstra a incoerência do combate da violência pela própria violência do sistema que a reintroduz num verdadeiro circulo vicioso na sociedade. Isso sem falar na demonstração que, juntamente com a chamada “criminologia crítica”, faz do caráter ideológico e opressivo das massas excluídas ínsito ao sistema penal em sua clássica conformação.


Entretanto, também seria simplista a defesa da abolição pura e simples do sistema penal e das prisões, sem que instituições sejam criadas de forma a poderem tornar obsoletas tais alternativas que hoje aparentam ser as únicas e efetivamente monopolizam a reação social ante o desvio. O pensamento abolicionista pode ser o motor para iniciativas inovadoras de combate à criminalidade e à violência em geral, de promoção de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual a prisão e o sistema penal como um todo venham a ser algo senão totalmente obsoleto, francamente excepcional.


Esse é o pensamento de Davis sobre o tema:


“Ao pensarmos especificamente na abolição das prisões usando a abordagem da democracia da abolição, iríamos sugerir a criação de uma série de instituições sociais que começariam a resolver problemas sociais que colocam as pessoas na trilha da prisão, ajudando, assim, a tornar os presídios obsoletos. Existe uma conexão direta com a escravidão: quando a escravidão foi abolida, os negros foram libertos, mas lhes faltava acesso a recursos materiais que lhes possibilitariam moldar vidas novas, livres. As prisões prosperaram no último século precisamente por conta da falta dessas estruturas e pela permanência de algumas estruturas da escravidão. Elas não podem, portanto, ser eliminadas, a não ser que novas instituições e recursos estejam disponíveis para essas comunidades, que fornecem, em grande parte, os seres humanos que compõem a população carcerária”. [7]  


Realmente o paralelo com a abolição da escravidão tal qual se processou nos Estados Unidos e no Brasil vem a calhar. A eliminação brusca daquela instituição sem a criação de um ambiente adequado para a colocação social de um aglomerado de pessoas que foram simplesmente jogadas na liberdade sem qualquer amparo fez com que as desigualdades se perpetuassem e as senzalas fossem substituídas pela pena de morte e pelo encarceramento em massa. Semelhantemente, a eliminação das prisões e do sistema penal em sua conformação atual de forma repentina, sem a criação de condições para sua gradativa alteração, até que se torne realmente obsoleto e possa sofrer uma contração drástica, constitui uma temeridade. No entanto, o abolicionismo funciona como instância crítica e produtiva de mudanças sociais e jurídicas na busca de um objetivo mais elevado. Se os resultados imediatos não podem ainda ser os melhores, aqueles que se vislumbram no horizonte da utopia, isso não importa e não retira das doutrinas abolicionistas seu caráter crítico e fomentador de dinamismo benfazejo. Como ensina Frankl, é necessário mirar nossos objetivos em pontos acima daquele que se pretende atingir, incluindo nossas “mais altas aspirações”, porque quando já se parte com um objetivo mediano ou baixo é certo que os resultados sejam insatisfatórios. [8]


Nesse aspecto o abolicionismo configura-se muito mais como um caminho do que como um ponto de chegada. O sistema penal não é a solução para a violência e a criminalidade contemporâneas, nem é solução sua continuidade repetitiva, como também não é solução sua eliminação pura e simples. É preciso realmente trilhar um caminho que se liberte do sistema penal, da visão do Direito Penal como panacéia para todos os males, de forma a encontrar verdadeiras respostas para os conflitos sociais sem necessidade de lançar mão da violência, seja ela legal ou marginal. Mister se faz pensar em uma alternativa não de um Direito Penal melhor, mas de algo melhor do que o Direito Penal. [9] Com o tempo os efeitos dessa postura inovadora, inspirada (por que não?) em uma visão utópica (afinal o novo pode ainda não ter lugar no mundo), certamente produzirá bons frutos e poderá tornar a prisão e o sistema penal hoje aparentemente imprescindíveis, em instrumentos obsoletos e excepcionais, conformando na prática o Direito Penal como “ultima ratio”. O pensamento utópico é prospectivo, direcionado para o futuro, nada tendo de imediatista. Conforme lembra Bauman, “a força motriz por trás da busca da utopia não é uma razão teórica nem uma razão prática. Também não é cognitiva, nem é o interesse moral, e sim o princípio da esperança”. [10]


Não há forma melhor de encerrar essas considerações do abolicionismo penal como utopia produtiva senão com o pequeno e belo poema de Mário Quintana intitulado “Das Utopias”:


Se as coisas são inatingíveis…ora!

Não é motivo para não querê-las…

Que tristes os caminhos, se não fora

A presença distante das estrelas”![11]

 


Referências bibliográficas

BAUMAN, Zigmunt. Vida a Crédito. Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

DAVIS, Ângela Yvonne. A democracia da abolição. Trad. Artur Neves Teixeira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr,  Juarez Tavarez e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2006.

FRANKL, Vitor Emil. Um sentido para a vida. Trad. Victor Hugo Silveira Lapenta. 15ª. ed. Aparecida: Ideias & Letras, 2005.

GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Trad. Eric Nepomuceno. 4ª. ed. Porto Alegre: L&PM, 1994.

HULSMAN, Louk, CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas. Trad. Maria Lúcia Karam. 2ª. ed. Niterói: Luam, 1997.

JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

MORE, Thomas. A Utopia. Trad. Luís de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

QUINTANA, Mário. Antologia Poética. Porto Alegre: L&PM, 2001.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. Marlene Houzhousen. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


Notas:

[1] HULSMAN, Louk, CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas. Trad. Maria Lúcia Karam. 2ª. ed. Niterói: Luam, 1997, “passim”.

[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr,  Juarez Tavarez e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2006, p. 234.

[3] A Utopia. Trad. Luís de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 2004, “passim”.

[4] JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 267.

[5] Op. Cit., p. 267.

[6] GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Trad. Eric Nepomuceno. 4ª. ed. Porto Alegre: L&PM, 1994, p. 310.

[7] DAVIS, Ângela Yvonne. A democracia da abolição. Trad. Artur Neves Teixeira. Rio de Janeiro: Difel, 2009, p. 114.

[8] FRANKL, Vitor Emil. Um sentido para a vida. Trad. Victor Hugo Silveira Lapenta. 15ª. ed. Aparecida: Ideias & Letras, 2005, p. 23 – 24.

[9] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Trad. Marlene Houzhousen. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 246.

[10] BAUMAN, Zigmunt. Vida a Crédito. Trad. Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 17.

[11] Antologia Poética. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 36.

Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


Equipe Âmbito Jurídico

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