Em tempos de pós-positivismo, com a reaproximação entre Direito e moral, o constitucionalismo ganha amplo destaque, irradiando para todo o sistema jurídico a força normativa dos princípios constitucionais, ora nutridos de conteúdo axiológico. A nova hermenêutica constitucional reclama uma (re) interpretação dos institutos jurídicos para o tempo futuro, de modo a compor o sentido das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados através da atividade do intérprete, que analisa as particularidades do caso concreto à luz dos preceitos da Carta Magna.
Em tal contexto, aporta com notável valor o (super) princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecendo o homem como ponto central da proteção normativa. Esculpido no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, a dignidade liga-se tanto à idéia de liberdade individual, já que a pessoa deve viver em situação de autonomia, assim como às condições materiais mínimas de subsistência. Conforme assenta Luis Roberto Barroso, “seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade” [1].
Nessa direção, o mínimo existencial – ponto central e intangível da dignidade – desdobra-se em duas direções: garantista e prestacional. A primeira exige a sucumbência de outros direitos quando em conflito com o mínimo vital, vinculando tanto a atuação do Estado quanto de particulares. A vertente prestacional, por seu turno, impõe ao Poder Público condutas positivas, de maneira a garantir ao indivíduo condições materiais tidas como imprescindíveis ao pleno gozo dos direitos fundamentais.
Há os que afirmam que a promoção do acesso à alimentação, educação básica, saúde e moradia estão entre as obrigações essenciais do Estado voltadas a realização e proteção do mínimo existencial. Outros incluem a problemática do salário mínimo, a assistência social e a previdência social. Para além dos pontos já mencionados (e certamente muitos outros poderiam ser citados), entende-se que os recursos materiais mínimos para a existência de qualquer indivíduo devem ser igualmente conectados àquela parcela intocável da dignidade. Assenta-se, dessarte, a necessidade de se garantir o mínimo de acesso à propriedade, sobretudo à moradia e aos instrumentos de trabalho, para o fim de se preservar o centro elementar da vida digna do homem.
Luiz Edson Fachin enfrenta de forma bastante articulada o problema do patrimônio mínimo como meio de proteção da dignidade do homem. Em sua obra intitulada “Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo” [2], afirma que o ordenamento jurídico deve sempre procurar garantir um conjunto mínimo de bens ao indivíduo, de modo a preservar sua decência moral. Defende, assim, existir uma parcela essencial do patrimônio que deve ser protegido contra a interferência de terceiros, socorrendo, portanto, as necessidades básicas do ser humano.
Com efeito, entende-se que o Poder Público, aqui referido nas três esferas de poder, deve atuar no sentido de efetivamente assegurar a todos o acesso ao domínio, e não deixá-lo apenas ao alcance de poucos privilegiados. Compreende-se, outrossim, que além de assegurar o exercício de liberdades individuais, deve o Estado adotar políticas positivas, garantindo ao indivíduo o acesso a bens e direitos indispensáveis à mantença digna de sua existência, incluindo o alcance ao mínimo de propriedade.
Alguns avanços já foram conquistados nesse sentido. No plano legislativo, por exemplo, o Código Civil de 2002 reduziu de forma acentuada os prazos para a configuração do usucapião, tanto do ordinário (art. 1242) quanto do extraordinário (art.1238), uma inequívoca demonstração de preocupação do legislador com a realização da função social da propriedade e com a democratização do acesso ao domínio.
Importa ressalvar, porém, que as políticas sociais ainda se mostram por demais tímidas e, nesta quadra, não se tem uma real universalização do acesso à propriedade. Se é certo que se tem a pretensão de secularizar o amparo ao homem, é preciso promover uma abertura plural do princípio da dignidade, razão pela qual mostra-se essencial um permanente estudo dos direitos fundamentais, de forma a se desenvolver novos caminhos para se atingir tal mister. E é nesse sentido que se pretende asseverar o domínio como forma de proteção da pessoa humana, já que o direito de propriedade se compõe em medida inerente à dignidade, e a sua falta acaba, em muitos casos, comprometendo gravemente – e não raro de maneira definitiva – os planos elementares para uma existência digna.
Advogado na cidade do Rio de Janeiro, pós-graduando em Direito Privado pela Universidade Federal Fluminense
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