O filme policial O Advogado dos Cinco Crimes (A Murder of Crows, 1999), do diretor Rowdy Herrington, conta a história de um famoso advogado que, depois de abandonar a defesa de um rico e inescrupuloso cliente, acaba perdendo a licença para advogar. Sua inesperada atitude contradiz o seu histórico de muitas defesas vitoriosas, e a todo custo, a clientes culpados. Ele então se muda para a Flórida com a intenção de escrever um livro. Lá, faz amizade com um senhor que lhe empresta um manuscrito para que ele o analise, mas quando vai devolver encontra o homem morto. Sabendo se tratar de uma obra de valor, o ex-advogado publica o livro como sendo seu e faz um enorme sucesso em todo o país. Porém, a vida do protagonista da trama se complicou porque um detetive descobre que os assassinatos narrados com detalhes na obra são verdadeiros. De uma hora para outra o ex-advogado, que tinha acabado de se tornar milionário, vira um fugitivo da polícia. O fato é que esses crimes foram todos cometidos contra advogados mercenários, capazes de absolver um grande criminoso desde que fossem bem pagos. No final, descobriu-se que o autor dos tão bem planejados crimes tinha sido um genial professor de teatro que odiava os advogados, pelo fato de que o assassino de sua esposa e filhos foi declarado inocente. O teatrólogo é que tinha escrito o tal livro, e planejara tudo para incriminar o ex-advogado, caso ele se deslumbrasse pela possibilidade de um sucesso fácil ao publicar um livro escrito por outrem.
Como se vê, não se trata de um filme surpreendente, embora a sua trama seja um tanto elaborada. Todavia, ele aborda algumas realidades, a exemplo da má fama de que goza historicamente a classe advocatícia. A imagem popularesca dos causídicos é equivalente a de um ator, capaz de mentir, omitir e de falsificar provas, e de manipular tanto o júri quanto o juiz, somente para se sair o vencedor na lide. Os advogados seriam os artistas da retórica, ciência que pelo conceito de Platão é a arte de usar as palavras, orais ou escritas, para se utilizar das pessoas e com isso se promoverem. Pode-se comprovar essa verdade pelo número de brincadeiras e de piadas jocosas que envolvem tais profissionais. Até Jonathan Swift, no famoso livro As Viagens de Gulliver, se referia a eles como profissionais hábeis “a transformar o branco em preto, e o preto no branco”, desde que pagos para isso.
O problema de tal concepção é que, além de simplória, ela é injusta. A primeira razão disso é que ela diz respeito especificamente ao advogado que atua criminalmente. Afinal, tanto no cinema como na literatura, é invariavelmente o criminalista que se destaca. Ele aparece fazendo defesas inflamadas, instruindo testemunhas, bolando táticas mirabolantes, tentando cooptar os jurados ou comprar o juiz. O civilista, aquele que faz uma simples separação ou que requer direitos sobre algum bem, nunca se destaca em tais histórias, já que a emoção é um ingrediente forte somente para aquele outro tipo de advogado. No Brasil, vale dizer, apenas uma quarta parte das causas é que são criminais. Importa também perguntar o porquê de nunca haver referência ao advogado herói, aquele que solta os que foram presos injustamente, que luta pela igualdade dos direitos e pela democracia. Os exemplos desses profissionais são numerosos, seja no crime ou na área cível, como Evandro Lins e Silva, Sobral Pinto, Argemiro de Figueirêdo ou Antônio de Brito Alves.
O outro pilar desse equívoco sobre os advogados diz respeito aos seus constituintes. Há crimes que, por serem bárbaros ou por envolverem pessoas famosas, criam um verdadeiro clamor na população. É comum se ouvir a indignação das pessoas, que acham repugnante que algum advogado aceite a defesa de tais indivíduos. De acordo com elas, sujeitos como Guilherme de Pádua, PC Farias, os jovens que incendiaram o índio pataxó ou o juiz Nicolau seriam condenados de imediato, sem direito a sequer defesa. Isso talvez até fosse correto se houvesse a certeza de culpa dessas pessoas, mas a história está repleta de casos de erros jurídicos muitas vezes ocorridos devido à pressão popular. Não há melhor exemplo disso que o de Saco e Vanzeti e o do Capitão Dreyfus. Independente de tudo, mesmo alguém que seja culpado tem direito a se defender. Essa lição já dava Rui Barbosa em carta ao colega José Evaristo de Moraes, quando dizia que até o mais vil criminoso necessita de um advogado para defendê-lo, e que não existe desonra em fazer isso. Há, pelo contrário, honra e coragem em defender um indivíduo assim, já que à própria sociedade interessa que seu julgamento seja isento e parcial. Outro dia o Ministro Marco Aurélio de Mello, presidente do STF, referindo-se a um caso polêmico, falou que foi graças à multidão que Cristo foi condenado.
Assim, a classe advocatícia tem sido injustiçada ao longo do tempo, já que a luta pela cidadania tem encontrado no advogado um fiel escudeiro. A razão disso se origina de mal entendidos e da atuação de um ou outro bacharel, que não trabalha com o devido zelo. Apesar disso, a profissão a cada dia tem sido melhor valorizada, tanto é que se trata da única profissão tida pela Constituição Federal como “indispensável à administração da justiça”. Na verdade, dizia Daniel Cavalcanti Silva em premiado trabalho *, “a responsabilidade ética no exercício da advocacia é, em essência, um compromisso de consciência pessoal, adquirido pelo advogado com o seu cliente e com a sociedade”. Vale lembrar, voltando ao filme, que o protagonista, que era inocente, só foi absolvido devido a defesa do seu advogado. Quanto ao povão, eles costumam chacotear esses profissionais, mas em momento de agonia são os primeiros a rogar a Virgem Maria chamando-a de “advogada nossa”. Portanto, ao tomar para si a defesa de outro homem, o advogado toca no que há de mais sagrado para alguém, que são os seus direitos e deveres.
* A Ética, o Ensino Jurídico e a Alegoria da Cebola foi o segundo colocado no I Concurso Nacional de Monografias Sobre Ética na Advocacia.
Advogado com atuação na Paraíba e em Pernambuco, Especialista Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e em Gestão e Controle Ambiental pela Universidade Estadual de Pernambuco (UPE), Mestre em Direito Econômico pela Universidade Federal da Paraíba. Professor da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas da Paraíba e da Universidade Estadual da Paraíba. Assessor jurídico da Coordenadoria de Meio Ambiente da Secretaria de Planejamento da Prefeitura de Campina Grande (PB).
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