O art. 156, I, do CPP permite ao juiz determinar a produção de provas de ofício, inclusive durante o inquérito policial. Essa regra fere o sistema acusatório?

A Lei nº 11.690 de nove de junho de 2008 alterou dispositivos do Código de Processo Penal relativos à prova. A inovação se deu, também, no art. 156, I, do Código de Processo Penal, que diz que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida. Permite-se, aqui, que o juiz, mesmo na fase de investigação, ordene de ofício a produção de provas.

Essa nova regra, instaurada no dispositivo em comento, é criticada, pois dá ao juiz a possibilidade de determinar, por meio de sua iniciativa, a produção de provas durante a investigação, ferindo o sistema acusatório, bem como outros princípios norteadores do Direito Processual Penal, como a imparcialidade do juiz e o princípio da presunção de inocência.

O sistema acusatório tem como premissa uma separação subjetiva de funções. A regra determinada pelo art. 156, I, do Código de Processo Penal permite ao juiz assumir a posição de um inquisidor, que investiga para depois julgar.

O Código de Processo Penal adotou o sistema acusatório e não o sistema inquisitivo. Permitir-se ao juiz determinar a produção de provas de ofício, inclusive durante o inquérito policial, estar-se-ia admitindo a figura de um juiz investigador, ou seja, um processo inquisitivo.

O sistema acusatório se funda a partir da separação inicial das atividades de acusar e julgar. De nada basta uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação, se depois, ao longo do procedimento, permite-se que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora. Fica evidente a insuficiência de uma separação inicial de atividades se, depois, o juiz assume um papel claramente inquisitorial. O juiz deve manter uma posição de alheamento, afastamento da arena das partes, ao longo de todo o processo. Deve-se descarregar o juiz de atividades inerentes às partes, para assegurar sua imparcialidade. Consagra-se o juiz-instrutor-inquisidor, com poderes para, na fase de investigação preliminar, colher de ofício a prova que bem entender, para depois, no processo, decidir a partir de seus próprios atos (LOPES, Jr., 2008).

Em sentido contrário, argumenta-se que a atuação de ofício do juiz, na colheita das provas, seria uma decorrência natural dos princípios da verdade real e do impulso oficial, devendo o magistrado determinar a produção de provas que entender pertinentes e razoáveis para apurar o fato criminoso, não tendo a preocupação de beneficiar, com isso, a acusação ou a defesa, mas somente atingir a verdade, bem como fazendo, com o impulso oficial, que o juiz provoque o andamento do feito, até final decisão, queiram as partes ou não (NUCCI, 2011).

Não se pode coadunar desse entendimento, pois a imparcialidade do juiz deve ser considerada como superior, indispensável, isto é, imprescindível para o normal desenvolvimento do processo, com a finalidade de se obter a solução mais compatível possível. Não há compatibilidade entre as funções de juiz investigador e juiz julgador. Não se pode confundir e misturar as coisas. Caso isso ocorra, haverá uma contaminação decorrente de um pré-julgamento feito àquele que será responsável pelo desfecho da lide processual penal. 

Ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto. Diferentemente seria no rito inquisitório, que exige, sem embargo, um juiz-ator, representante do interesse punitivo e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação (FERRAJOLI, 1995). E não é isso que se quer, ou melhor, não é esse o fim buscado em todo processo criminal.

Dessa forma, entende-se que tal dispositivo processual feriria o sistema acusatório, juntamente princípios importantes e consagradores do Direito Processual, compelindo-se, ademais, a utilização de regra eivada de inconstitucionalidade.

 

Notas:
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta, 1995.
LOPES Jr., Aury. Bom pra quê (m)? Boletim IBCCRIM, ano 188, Julho/2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 7ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

Informações Sobre o Autor

Iara Boldrini Sandes

Advogada e Professora de Direito Penal. Especialista em Ciências Penais.


Equipe Âmbito Jurídico

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