Há muito que o tipo penal supradito está a merecer profunda reformulação para que se possa adequar a conjuntura atual. Neste sentido, vale lembrar que o Código Penal Militar (CPM) emanou do Decreto-Lei n° 1001, de 21 de outubro de 1969, em plena fase da ditadura. Recorde-se que ainda durante o citado período, o tráfico de drogas no Brasil era incipiente, sem a dimensão e o alcance dos dias de hoje, os quais, por vezes, quando não tangenciam, ingressam na órbita da vida da caserna (lugar sujeito à Administração Militar).
Ressalto, em letras garrafais, que não sou saudosista da época da ditadura, muito pelo contrário. No entanto, é fato que naquele período os traficantes não encontraram e não encontrariam terreno fértil para semear suas atividades ilícitas.Decorrente disso, temos, presentemente, uma norma penal incriminadora capenga, a qual, tanto seu preceito primário quanto o secundário, resultam em descompasso com os fatos, diga-se de passagem, repugnantes, reinantes nas sociedades civil e militar. Refiro-me ao tráfico de drogas, notadamente, em lugar sujeito à Administração Militar (inclusive com a utilização de aviões militares).
Com efeito, basta uma passada de olhos nas elementares do tipo do art 290 do CPM para percebermos, sem maiores dificuldades, que o legislador da época tratou de igual forma, colocando no mesmo denominador comum, aquele que porta pequena porção de entorpecente para uso próprio (usuário) como o que conserva em seu poder grandes quantidades do mesmo produto (características do tráfico). Vejamos o art 290, CPM, verbis:
“Receber, preparar, produzir, vender, fornecer, ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, ainda que para uso próprio, guardar, ministrar ou entregar de qualquer forma a consumo substância entorpecente, ou que determine dependência física ou psíquica, em lugar sujeito à administração militar, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, até cinco anos.”
Nesse passo, foi seguida, erroneamente, as pegadas do Decreto n° 385, de 26 dezembro de 1968, o qual modificando a redação do artigo 281 do Código Penal Comum, equiparou as condutas de traficar e trazer consigo substâncias entorpecentes. Assim, por incrível que possa parecer, torna-se factível que um agente, condenado pela prática de tráfico de drogas no interior de uma OM, pelo art 290 do CPM, venha a ser contemplado com a suspensão condicional da pena (Sursis). Para tanto, basta que seja primário e de bons antecedentes e venha a ser apenado com até dois anos de reclusão. O incrível é que a mesma punição poderá sofrer um simples usuário, reincidente, preso em flagrante portando drogas (a pena em abstrato do crime do art 290 do CPM é de 01 a 05 anos de reclusão). Neste contexto, releva aqui considerar que a lei foi condescendente com o tráfico e extremamente rigorosa com o usuário.
Em azimute contrário, contudo, a Lei 11.343, de 23 agosto de 2006, em seu artigo 33, abaixo transcrito, estabelece pena de reclusão de cinco a quinze anos para o tráfico de drogas.
“Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.”
Outro dado a ser observado com olhar crítico, relativamente ao tipo penal em comento (art 290 CPM), refere-se a sua rubrica marginal, a qual vem vazada nos seguintes termos:
“TRÁFICO, POSSE OU USO DE ENTORPENCENTE…”
Como é cediço, a lei não pune o simples uso de entorpecente sem a precedente conduta de trazer consigo (ou portar) a referida substância. Dessa forma, não se apena o agente por ter feito uso de droga, caso não traga consigo porção da substância tóxica proibida. Aliás, nestes casos, não vale nem a prova oral proveniente dos depoimentos das testemunhas presenciais do fato (de visu), ou seja, aquelas que assistiram a droga ser consumida pelo agente.
Assim sendo, urge como providência legislativa necessária a retirada do vocábulo “uso” do nomen criminis do art 290 do CPM. De fato, conquanto a rubrica marginal não pertença ao comando legal proibitivo, constitui-se, por vezes, em elemento de valia para interpretação de uma norma.
Impressionantes ainda são as manifestas lacunas contidas no § 1°, I e III do art. 290 do CPM, onde estão inseridos os casos assimilados aos da cabeça do mencionado artigo.
Observemos o citado parágrafo 1° e incisos, in verbis:
“Na mesma pena incorre, ainda que o fato incriminado ocorra em lugar não sujeito à administração militar.
I – O militar que fornece, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a outro militar;
III- quem fornece, ministra ou entrega, de qualquer forma, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica a militar em serviço, ou em manobras ou exercício;”
Fornecer tem o sentido de prover, proporcionar, abastecer.
Resulta evidente que o significado de fornecer, citado no inciso I, não é o mesmo dos vocábulos receber, vender e ministrar constantes do caput. Do contrário, o legislador penal militar não os teriam elencados, de forma autônoma, como núcleos dos verbos do tipo (art 290 CPM). De fato, receber é aceitar em pagamento ou não; vender é alinear mediante contraprestação, em geral, em dinheiro e ministrar é aplicar, inocular, gratuitamente ou mediante paga.
Em vista disso, exsurge como de possível ocorrência em concreto algumas das esdrúxulas e hipotéticas situações abaixo:
a) Um militar, fora de lugar sujeito à Administração Militar, ao fornecer substância entorpecente para outro militar, praticará, em tese, crime de natureza militar. Todavia, caso nosso protagonista venha a ministrar ou vender a aludida droga para um colega de caserna cometerá crime de natureza comum. Decerto, estas modalidades referidas (vender e ministrar) não foram previstas na norma penal em destaque (inciso I do § 1° do art 290 CPM).
b) Um militar ou um civil, em lugar não sujeito à Administração Militar, vende substância entorpecente para militar de serviço, ou em manobra ou em exercício militar.
Aplica-se aqui o mesmo raciocínio supra, ou seja, o crime é comum ante a inexistência de expressa tipicidade. Vale dizer, não figura o verbo “vender” dentre os mencionados núcleos do subtipo descrito no inciso III do § 1° do artigo 290 do CPM.
Outro tópico que demanda reflexão é quanto a inserção topográfica do art 290 do CPM no capítulo dos crimes contra a saúde (Bem jurídico tutelado). Nos parece, salvo melhor entendimento, que o supracitado tipo penal estaria melhor encartado no capítulo destinado aos crimes contra à Administração Militar. De fato, sobressai-se dentre as elementares do delito em discussão a locução “em lugar sujeito à Administração Militar”. Ou seja, os diversos comportamentos descritos nos tipos (onze verbos) somente serão reprimidos se executados em lugar sujeito à Administração Militar. De observar-se que esta é a nota marcante do artigo 290 do CPM. Assim, fica nítido que o legislador realçou com cores fortes o aspecto do locus delicti commissi, enquanto que a saúde pública ficou, ao que nos parece, relegada a plano secundário.
Com efeito, fica difícil acolher a tese de perigo à saúde alheia, vale dizer, possibilidade de propagação da droga, nos casos, por exemplo, em que um militar ou civil (em lugar sujeito à administração militar) é surpreendido portando um cigarro de maconha com menos de um grama. Nesses casos, temos que o usuário estará apenas atentando contra sua própria saúde (autolesão), pois bastará acender a aludida “bagana” para que o conteúdo da substância tóxica em questão se pulverize em frações de segundo. Nestes casos, pergunta-se: houve perigo da difusão do aludido entorpecente?
Nesse diapasão, caso, por suposição, estivesse o artigo 290 CPM inserto nos crimes contra à Administração Militar, resultariam eliminadas todas as discussões acerca da aplicabilidade do princípio da insignificância nas apreensões envolvendo pequenas (ínfimas) quantidades de substâncias entorpecentes. Decerto, tornar-se-ia despiciendo o debate acerca do assunto em referência, notadamente, levando-se em linha de conta que tanto as grandes como as pequenas apreensões efetuadas em lugar sujeito à Administração Castrense atentariam, de igual modo, contra a ordem administrativa militar. Hoje, como sabemos, considerando o atual bem jurídico tutelado (saúde pública), existem jurisprudências nos dois sentidos: umas acolhendo o princípio da bagatela nos crimes envolvendo tóxico, outras repudiando este instituto de política criminal.
Adite-se, entretanto, que essa vexata quaestio no direito comum, ao que tudo indica, ficou relegada a um segundo plano com a edição da nova lei antidrogas, de agosto de 2006. Note a redação do artigo 28, verbis:
“Art 28 . Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I- advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III- medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.”
Vale notar que, ao contrário do que estabelecia o revogado preceito secundário do art 16 da Lei 6368, de 21/10/1976, pena de detenção de 6 meses a 2 anos, a lei 11.343/2006 aboliu a privação de liberdade para o agente que adquire, guarde ou traga consigo, para uso próprio, substância entorpecente (usuário). Neste aspecto, inovou o legislador, inclusive, adotando, como modalidade de pena, medida sócio-educativa prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, qual seja: Advertência.
Esclareça-se, nesse ínterim, que caberá ao Juiz da causa determinar se a droga apreendida destinava-se a consumo pessoal ou não. Para tanto, consoante dicção legal, observará a natureza, quantidade, local e condições em que ocorreram o delito, bem como aspectos sociais e penais do agente (art 28, § 2° da Lei 11.343).
No campo processual, a nova lei de tóxicos citada adotou o princípio da isenção de prisão em flagrante do usuário, a qual fora substituída pela lavratura de termo circunstanciado do ocorrido, mediante termo de compromisso de comparecimento daquele ao Juízo competente.
Gize-se que medidas tais como: atos de lavratura de termos circunstanciados, requisições de exames e perícias deverão ser imediatamente tomadas pela Autoridade Policial, sendo vedada a detenção do agente (art 48, § 3° da Lei 11.343).
O fato é que, com acertos e desacertos, avançaram a legislação penal e processual comum, no tocante ao delito de entorpecente. Enquanto isso as leis penal e processual militar permaneceram vetustas nesse particular.
Apesar disso, ao nosso aviso, ante as omissões voluntárias do legislador do Código de Processo Penal Militar acerca do assunto em tela, entendemos, com base no artigo 3°, “a” do CPPM (os casos omissos neste código serão supridos pela legislação de processo penal comum) que as inovações trazidas pela Lei n° 11.343, de agosto de 2006, por analogia autorizada, tem inteira aplicação no Processo Penal Castrense.
Destaco abaixo algumas das hipóteses constantes da lei susomencionada que poderão ser encampadas pelos operadores castrenses:
“O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços. (art 41)
Em qualquer fase de persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I- a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes;
II- a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível. (art. 53). (hipótese de flagrante retardado ou prorrogado)
Sempre que conveniente ou necessário, o juiz, de ofício, mediante representação da autoridade de polícia judiciária, ou a requerimento do Ministério Público, determinará que se proceda, nos limites de sua jurisdição e na forma prevista no § 1° do art. 32 desta Lei, à destruição de drogas em processos já encerrados. (art 72).”
Por fim, insta comentar que, embora o art 40 da Lei 11343/2006, em seu inciso III, tenha previsto, como causa para aumento de pena, o tráfico de drogas nas dependências de unidades militares, tal fato não modifica a competência da Justiça Castrense como, numa leitura açodada, possa transparecer. Veja o artigo 40.
“Art 40 – As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta lei são aumentadas de um sexto a dois terços (obs.: art 33 da lei refere-se ao tráfico de drogas), se:
I – omissis;
II – omissis;
III – a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas,esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos” (grifei)
À evidência, uma interpretação lógica ou teleológica do referido inciso nos leva insopitavelmente a conclusão que a aludida causa de aumento de pena só tem aplicação nos casos em que o tráfico de drogas, em lugar sujeito à Administração Militar, destina-se ao comércio com outro país, vale dizer, constituir-se em tráfico internacional de drogas.
Nestas hipóteses, a competência é da Justiça Federal. Do contrário, o fato fica afeto à Justiça Militar para processo e julgamento.
Em nossos comentários supra, tivemos por escopo, além de elucubrar sobre o tema em enfoque, aguçar a reflexão dos operadores de direito que militam perante a Justiça Castrense.
Promotor de Justiça Militar
Professor Universitário – UGF (Universidade Gama Filho)
Pós-graduado em ciência criminais pela Universidade Federal Juiz de Fora
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