“A dogmática e ensino jurídico: o dito e o não dito do sentido comum teórico – o universo do silêncio (eloqüente) do imaginário dos juristas”. “Que tipo de visão têm os operadores jurídicos sobre a aplicação e a eficácia das leis existentes no Brasil?”.
Comumente percebe-se que as leis nem sempre produzem seus efeitos de aplicabilidade e eficácia no seio social a que estão voltadas desde sua elaboração. Muito menos no meio daqueles que circundam, dia a dia, a lei e seus trâmites, diplomas. Mesmo que entre a elaboração e a obrigatoriedade das leis não compreenda uma expectativa acertada no âmbito da completude em relação a todos os indivíduos, pessoas que a lei imputa seu caráter valorativo, coercitivo, intimidatório e conservador, que se submetem à observância, temor e respeito às leis expostas. Principalmente e com certa exclusividade, direciona-se à aplicabilidade e eficácia das leis vigentes no Brasil, com mais primazia, aos olhos daqueles que cotidianamente as opera, exprime, explicita e as fazem muitas vezes existir. Vagarosamente questiona-se: “A lei foi feita para ser cumprida?”, esta pergunta suscita tantas outras como a que primeiro se evidencia nas primeiras linhas desta matéria.
Com efeito, e certa lógica, está condicionada, à lei e sua garantia de caráter conservador, bem como também se exige que a lei, uma vez imposta, seja capaz de tornar-se material, por meio do preceito dogmático e revelador da própria eficiência e justeza, para não invocar justiça, a que a lei busca primariamente exaltar, contra ou a favor dos súditos às leis submetidos, é de se considerar que nem sempre os “dois pesos e duas medidas” justas, se adaptam, e que “João e Chico” não são iguais, embora sejam irmãos e que também, cada “caso é um caso” e para “uns” certos privilégios são dados pela própria legislação como espécie de inimputabilidade ou recurso, enquanto a “outros” a lei, deve e precisa ser cumprida “tal e qual” está escrita. Não valendo, assim, para que por detrás do seu caráter ideológico, pessoas possam esconder-se e, no entanto, servindo de amparo para os suspeitosamente conhecidos como “imputáveis”, por ocasião de espaços ou brechas, lacunas que a própria legislação venha conter.
Sendo assim, o que diria então aqueles vigorosos homens que admitiam a lei do talião: “olho por olho e dente por dente”, se Roma ainda fosse a matriz legisladora dos diplomas legais, em nossos dias, onde se arranca um olho e se paga com um dente e ou vice-versa, dependendo do agente, do ato ou da omissão, assim como da própria legislação vigorante e vigente, sob o infrator e sobre a ação? Por essas e outras assertivas, refletem os operadores do direito sobre o que podemos analisar de um composto e recheado ângulo, de liberdade e pesquisa: “A dogmática e o ensino jurídico”. Do ponto de vista hermenêutico: “o dito e o não dito…” ou melhor: “o universo do silêncio…”.
Por exemplo, um funcionário público de alto escalão engaveta um processo (administrativo ou judicial) durante três ou quatro anos. Dentro dos cânones estabelecidos pela dogmática jurídica, para processá-lo pelo crime de prevaricação, é muito difícil, em face da exigência do dolo, uma vez que o “legislador” não previu a hipótese de prevaricação culposa. Desse modo, se o acusado alegar, em sua defesa, que “o processo ficou parado tanto tempo” porque foi preguiçoso, desleixado ou até mesmo negligente, fatalmente será absolvido (isto no caso de chegar a ser denunciado e a denuncia ser recebida).
Tudo porque a preguiça, a negligência ou o desleixo são considerados causas (sic) que excluem o dolo (aliás, como se diria na dogmática tradicional, “nesse sentido a jurisprudência é mansa e pacífica”: RT 451/414; 486/356; 565/334; 543/342…). Exige-se, ao que parece, uma espécie de “dolo de engavetamento”.
Como contraponto, veja o caso de um indivíduo que furta uma galinha e a leva para casa. Neste caso, basta que com ela (com a resfurtiva) fique alguns minutos, para que, sendo preso, esteja caracterizado o crime de furto (cuja pena, aliás, é várias vezes maior do que a da prevaricação). Isto porque “nessa linha existe copiosa jurisprudência”, dando conta de que “o furto atinge a consumação no momento em que o objeto material é retirado da esfera de posse e disponibilidade do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do autor, ainda que este não obtenha a posse tranqüila”.
Evidentemente, estes exemplos apontam apenas em direção à ponta do iceberg. Paradoxos como estes deveriam colocar em xeque a dogmática jurídica, chamando a atenção dos juristas para a crise”.
Aponta-se em consciente observância que a hermenêutica jurídica tem à frente um obstáculo, senão um “temporal”, conflitante com a sua parte ideal da interpretação. Ao aplicar uma lei, o que pensa o magistrado? Como a interpreta e a faz ser eficaz ou não, tornando-a satisfatória?.
Coerência não há em tentar subtrair do pensamento de um juiz, o correto interpretar em relação à letra fria da lei e a severa, muitas vezes, outras até que não, vontade da lei, que se revela, autêntica, gramatical, teleológica, omissa ou oculta. Sobretudo há de se elevar a mais ampla e possível interpretação da lei; a literal, que por sua vez demonstra total afinidade com a arte da interpretação versus persuasão. Objetivando ou não controlar a hermenêutica, a crise mostra-se cada vez mais desafiante e avassaladora.
Um caminho especulativo e expectante é o de se aproveitar uma geração concebida do “saber jurídico” contemporâneo. São muitos os estudantes, porém poucos estudiosos, que se volvem aos livros e doutrinas, que exalam incomodar a garantia, pelo menos formal do “paradoxo” entre o “saber”. É só pensar que o funil tem uma boca enorme, mas passa pela sua “garganta” apenas alguns selecionados.
Porém é preciso, questionar se faz necessário quanto ao que de fato se tem dito nos estabelecimentos que se propõem a ensinar “direito” e aos alunos que academicamente se dispõe a aprender “direito”. Diante de tanta discussão entre as escalas mais baixas, médias e altas do “saber jurídico-dogmático” é sustentável a conversação entre os alunos, professores, doutrinadores, operadores ou até mesmo simpatizantes e acompanhantes do direito, avalia-se a resposta desta geração quando em prática, tanto da hermenêutica, quanto da aplicação desse aprendizado e a prática no sentido da operação apaixonante que o direito contém. “Será que, de lá para cá, ocorrerão mudanças significativas?”.
Não surpreende, portanto, que, até poucos anos, alguns tribunais, avalizados por renomados penalistas pátrios, ainda sustentavam, por exemplo, que o marido não podia ser sujeito ativo de estupro cometido contra a esposa por “lhe caber um exercício regular de um direito…”. Seguindo essa linha, alguns tribunais brindavam as decisões jurídicas com decisões do tipo “… a cópula intramatrimônio é dever recíproco dos cônjuges e aquele que usa de força física contra outro, a quem não socorre recusa razoável (verbi gratia, moléstia, inclusive venérea, ou cópula contra a ‘natureza’), tem por si a excludente de criminalidade prevista no Código Penal – exercício regular de um direito” (RT 461-444).
Julgados como esse se embasavam em doutrinadores como Nelson Hungria, para quem “o marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente a violência física em si mesma”. Não se olvide que o assim denominado “direito à conjunção carnal” é eufemisticamente referido pelo Código Civil, na medida em que, no artigo 1.566, II, aponta como dever dos cônjuges a “vida em comum, no domicílio conjugal”.
È nesse dever que se “encontra incluído”, consoante Silvio Rodrigues, a de manter relacionamento carnal. Tal tese civilista pode ter levado Damásio de Jesus, expoente da doutrina penal, a um equívoco, eis que, ao comentar o artigo 213 do Código Penal, assim pronuncia: “(A mulher) não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja; o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa”. Deve-se frisar que, atualmente, os tribunais e a doutrina já assimilaram conceitos mais modernos a respeito do tema, entendendo que, em verdade, o marido que força a esposa à prática sexual não está exercitando um direito, e sim, “abusando” de um direito…
Há, porém, uma falta de nexo entre o que é dito nas salas de aulas, aos nossos futuros ou ensaiantes operadores do direito, com o que eles próprios, alunos, professores, doutrinadores, e pessoas da sociedade vivem e com aquilo que se expressa na vida social em si. Nasce uma teoria de que na Teoria é uma “coisa” e, na prática é “outra coisa”.
Um conflito parece pairar, estabelecendo um desencontro entre o que é ensinado e o que deveria ser aprendido, um desconto é vivenciado até mesmo na didática utilizada para a formação desses alunos da nova, ou talvez atual, geração. Se expressa aí uma crise? Somente não! Mas também uma “dificuldade da dogmática jurídica em lidar com os fenômenos sociais. Vários fatores tiveram e têm influência nessa problemática”.
“… È preciso reconhecer que, nos dias atuais, quando se fala em ciência do direito, no sentido do estudo que se processa nas faculdades de direito, há uma tendência em identificá-la com um tipo de produção técnica, apenas a atender às necessidades do profissional (o juiz, o promotor, o advogado) no desempenho imediato de suas funções. Na verdade, nos últimos 100 anos, o jurista teórico, pela sua formação universitária, foi sendo conduzido a esse tipo de especialização, fechada e formalista” (Ferraz Jr.).
Um liberalismo ideológico caracterizado pela consciência dominante que embora distante de uma visão efetiva, muito mais para a oposição, se verifica entre o direito “saber, interpretar e entender o direito” e a sociedade – “o agir e viver de forma direcionada ao direito”.
Será que a ação, em primeira instância até chegar às últimas, em escala gradativa, mostrando tais falhas e advertindo a “cultura jurídica” jamais se operará em cisão para não agravar ainda mais a crise?
São muitas as expectativas quanto à “Súmula Vinculante”. Muitos são os magistrados, que proferem as suas decisões baseadas nelas.
Tramita, porém, no Senado Federal, a Emenda Constitucional de Reforma do Poder Judiciário, referindo-se quanto à validade dessas súmulas de efeito “erga omnes”. Se não bastasse, que a própria administração pública estaria obrigada em seguir, com rigor, as súmulas que o Supremo Tribunal Federal – STF emite, pelo seu efeito vinculante.
A Adoção da Súmula Vinculante no Sistema Judicial Brasileiro é uma matéria tão polêmica que merece uma análise mais profunda por todos os segmentos que constroem o pensamento jurídico pátrio, bem como de todos os seus operadores.
Enfim, analisar como essa crise demonstra o tipo de procedimentos, que são ignorados nos contextos históricos e sociais dos quais estão inseridos os atores jurídicos (acusado, vítima, juiz promotor, advogado, etc.), bem como não se indaga (e tampouco se pesquisa) a circunstância da qual emergiu. Comecemos pela própria ementa jurisprudencial utilizada.
Afinal de contas, se “a jurisprudência torrencialmente vem decidindo que…”, ou “a doutrina pacificamente entende que…” o que resta a fazer?.
Adiante, é de se esperar uma crise na arte de interpretação das leis, a hermenêutica por conseqüência está em crise e, por conseqüência, o “processo de interpretação da lei passa a ser um jogo de cartas (re) marcadas” (Ferraz Jr., Bairros de Brum, J.E. Faria e Warat).
É uma ficção ainda crida a “vontade do legislador, o espírito do legislador, a vontade de norma…”. Ainda assim destaca-se alguma característica desse legislador, sendo ele “racional”, “singular”, “permanente”, “único”, “consciente”, “finalista”, “justo”, “coerente”, “onicompreensivo”, “econômico”, “operário”, “preciso”.
É de se perguntar: “pode alguém, ainda, acreditar em tais ‘propriedades’ ou ‘características’ do legislador?”.
Pode-se dizer que sim, confiando que, na desenvoltura e desenvolvimento da profissão, ou operar de fato o direito, ao enveredar por normas e normas, aplicando a lei, fazendo com que as “letras frias” legisladas saiam da matéria e sua substância torne-se real, através da prática, realizando, criando meios, resolvendo situações, litígios, desvendando os significados das palavras e dinamizando o próprio direito, os operadores, juristas, magistrados se utilizem sempre do meio que, de certo modo, lhes está mais acessível, tanto para interpretar a lei como para torná-la, por meio da hermenêutica, real. Reto este, composto de “um conjunto de crenças e práticas que, mascaradas e ocultas pela ‘communis opinio doctorum’, propiciam que os juristas conheçam de modo confortável e acrítico o significado das palavras, das categorias e das próprias atividades jurídicas”.
Verifica-se aí, citado pelos autores, um certo “tipo” e certo “costume” ou hábito no âmbito profissional no modo com que empenham as atividades jurídicas, os operadores e exercentes do direito, que, ao exercê-lo com algum tipo de rotina, banalização, desprestígio e desvalor, escondem a riqueza, brilho e beleza incontestável da arte de interpretação das leis. No entanto, ressalta-se que, no entendimento da boa postura profissional e no desenvolvimento coerente desta, “o direito é a disciplina na qual a autoridade ainda conserva uma parte substancial de seu prestígio” (Guibourg).
Deriva-se desse prestígio, merecido e a bom tempo, desde tempos anteriores, e até hodiernamente, alguns dos elementos constitutivos da fonte do direito, como a doutrina que leva ao direito uma fonte interpretativa, assim como o da jurisprudência e o da própria lei. Isso porque as “interpretações” serão usadas, no exercício das atividades jurídicas, pelos profissionais do autêntico e eficaz direito…
É relevante frisar, destarte, que toda esta problemática se forja no interior do que se pode chamar de “establishment jurídico”, que atua de forma difusa, buscando uma espécie de “uniformização de sentido”, que, segundo Bourdieu e Passeron, tem uma relação direta com um fator normativo de poder, o poder de violência simbólica. Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força.
Aparece, em meio ao hábito das práticas jurídicas, o chamado e tão desenvolvido “arbitrário juridicamente prevalente”. Uma espécie demonstrativa do poder de controle conservador, exercido pelos operadores da dogmática jurídica, amparada pela própria desenvoltura das ações que empenham para fazer falar, dizer, ou não dizer aquilo que a lei, em seu sentido ou espírito diz, ou pretende, ainda que longe esteja dos autores jurídicos, imaginar o que vai à mente do legislador antes ou na hora de elaborar as leis (mais perfeitas), assim como a sua intenção e racionalidade ao elaborá-la.
É dominante, porém, a doutrina de que, desse modo, toda vez que surge uma nova lei, os operadores do direito, inseridos nesse “habitus” tão bem e amplamente definido por Bourdieu – se tornam órfãos científicos, esperando que o processo hermenêutico-dogmático lhe aponte o (correto) caminho, dizendo para eles o que é que a lei diz (ou “quis dizer”)…
Mostra-se a favor e com grandessíssimo valor a dogmática e o ensino jurídico, o sentido comum teórico merecido e estimado, estabelecendo o universo do silêncio (eloqüente) com grandes vistas ao imaginário dos juristas.
Vale à pena demonstrar com a aplicabilidade e eficácia das leis, impondo profissionalismo e buscando um ensino o mais perfeito possível, o valor inestimável contido no direito e a autêntica autoridade de se fazer um bom “hermeneuta”.
Salvador, 20 de maio de 2004.
* Artigo solicitado pelo orientador da disciplina de Hermenêutica Jurídica, professor Wagner Neto, como requisito avaliativo para a II Unidade do terceiro semestre do curso. Fonte consultada: Hermenêutica e(m) Crise; LENIO, Luiz Streck.
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