O CDC contra o interesse difuso

O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, é conhecido como uma legislação de vanguarda. E realmente o é. Sua principal virtude, no nosso entender, consiste em ter adaptado importantes instrumentos, colhidos da legislação alienígena, para a realidade brasileira.

Na legislação consumerista não se fez como no Direito Eleitoral, que contou com a importação de um instituto norte-americano, reeleição, que foi introduzido por força de emenda constitucional, sem qualquer tipo de adaptação.

Os méritos do CDC são inúmeros.

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Definiu ele os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, o que foi importantíssimo, na medida em que, em 1990, ainda havia muitos questionamentos quanto à existência ou não dos denominados direitos coletivos “lato sensu”. Muito embora ainda hoje existam questionamentos nesse sentido, quem hoje os faz, no mínimo, atenta contra a lei.

Trouxe também para as relações de consumo a responsabilidade objetiva, despida da necessidade da prova do dolo ou da culpa, como regra. O modelo da responsabilidade subjetiva mostrou-se inadequado para as relações de consumo, na medida em que, em muitas ocasiões, o fornecedor se cerca de todos os meios para evitar que o produto chegue ao mercado com vícios ou defeitos. Ainda assim, contudo, estes ocorrem, não cabendo ao fornecedor ficar com os lucros e o consumidor com os prejuízos. O risco da atividade sempre é do fornecedor.

Previu a inversão do ônus da prova. A vulnerabilidade do consumidor muitas vezes torna impossível a este a prova do fato constitutivo do seu direito, o que lhe é exigido nos termos do art. 333 do CPC. Para situações que tais e também nos casos de verossimilhança das alegações do consumidor, a critério do juiz, é possível inverter o ônus da prova, ou seja, exigir que o fornecedor prove o fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito do consumidor, mesmo sem que este tenha provado o fato constitutivo.

Sem falar na inversão do ônus da prova “ope legis”, para os casos de questionamento acerca do teor da veiculação publicitária, que criou regra especial referente ao ônus da prova, que prevalece sobre a regra geral do art. 333 do CPC.

Outros tantos exemplos de méritos do CDC poderiam ser aqui mencionados. O objetivo, entretanto, não é esse. O objetivo é apontar uma falha que, na prática, vem causando sérios entraves.

A responsabilização do fornecedor pelo fato e pelo vício do produto, a despeito do que ocorreu com relação aos serviços, não ressalvou os casos de produtos gratuitos. Fê-lo até com certa razão, na medida em que a ressalva indistinta dos produtos gratuitos acabaria tornando o fornecedor irresponsável, ao menos segundo o CDC, no tocante às chamadas “amostras grátis”.

Cada vez mais as “amostras grátis”, que nada mais são do que produtos gratuitos, são utilizadas como técnicas de marketing visando aproximar os consumidores dos produtos e serviços, ou seja, visando levar o consumidor a aderir às ofertas que lhe são feitas no mercado de consumo.

A distribuição de “amostras grátis”, portanto, enquanto prática comercial, está corretamente subordinada à aplicação do CDC.

No entanto, a experiência vem demonstrando que muitos fornecedores vêm deixando de realizar doações em razão da regra absoluta da responsabilização dos fornecedores pelo fato do produto e pelo vício do produto.

Por exemplo, restaurantes vêm jogando no lixo os alimentos que não são utilizados na sua atividade, ou mesmo que sobram das refeições de seus clientes, em decorrência da possibilidade de sua responsabilização segundo o CDC.

Da mesma forma, confecções vêm deixando de doar pontas de estoque, indústrias deixam de doar alimentos não considerados como “de primeira linha” por conta da incidência do CDC.

Nesse diapasão o CDC, que define os direitos difusos, atenta contra eles, na medida em que deixam de ser beneficiadas inúmeras pessoas carentes, por conta do desestímulo às doações.

Poderia alguém então perguntar: quer dizer que os restaurantes ou indústrias poderão doar alimentos estragados  e não ser responsabilizados por isso?

A resposta é negativa. Quer dizer que quem doar produtos por benemerência, ou seja, sem utilizar a doação como técnica de marketing, não será responsabilizado pelo CDC, mas sim segundo o direito civil.

Ao invés de ser responsabilizado objetivamente, deverá ser demonstrada a culpa ou o dolo do doador. Traduzindo em caso prático, para responsabilizar o dono do restaurante que doou por benemerência terá que ser demonstrada a sua imprudência ao doar comida que ficou muito tempo fora da geladeira ou o seu dolo, intuito deliberado de causar mal à saúde dos donatários.

Na prática, em casos de doação, quase não haverá responsabilidade dos doadores, porque aquele que doa sempre toma as cautelas, a fim de preservar a saúde dos donatários. De outro lado, quem recebe as doações estará sendo beneficiado, porque sabe-se que a população carente corre muito maior risco dirigindo-se aos lixões, o que, infelizmente, é comum.

Em contrapartida, continuarão a ser responsabilizados segundo o CDC aqueles que não doam por mera benemerência, porque usam as doações com marketing de consumo. Aqueles que divulgarem as doações sob a forma de publicidade não estarão praticando mera benemerência, mas sim realizando marketing, estando, por isso, sujeitos ao CDC.

Notadamente em tempos de “fome zero”, é inconcebível que não seja feito projeto de lei visando corrigir essa deficiência do CDC. Enquanto isso não acontecer, produtos de segunda linha, inaproveitáveis muitas vezes pelo mercado, continuarão indo para o lixo, dando motivo para que o Brasil seja considerado no exterior o país do desperdício.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Arthur Luís Mendonça Rollo

 

Advogado em São Paulo, mestre e doutorando em direitos difusos e coletivos pela PUC/SP, Professor Titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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