1- Introdução
A quem quer que se ponha a analisar a evolução das relações jurídicas privadas, não passará despercebida a evolução que se opera neste campo. Vivemos hodiernamente um período de marcantes mudanças que põe abaixo alguns dogmas arraigados durante uma praxe secular, e põe em questão o sistema jurídico de direito privado como um todo.
Isto se deve, sobretudo, a uma mudança de perspectiva nas relações de direito privado, cujos princípios permeiam-se por um conteúdo publicístico que crescente presença e que é reflexo de uma visão solidarista do Direito. Na medida em que a aplicação de uma disciplina solidificada durante uma prática secular começa a produzir resultados que não condizem, muito antes pelo contrário vão de encontro às expectativas da sociedade, é natural que esta estrutura comece a ceder passo a um modelo mais acorde com o momento vivenciado pelas sociedades ocidentais.
A pedra de toque de todo este movimento de evolução jurídica é o modelo de Estado Social que surge a partir do início do século XX e que, ao contrário do modelo liberal – iluminista que se implantou a partir da Revolução Francesa, preconiza um Estado interventor e ativo, inclusive nas relações eminentemente privadas, ou que assim foram tratadas durante séculos.
Na busca de uma efetiva materialização dos direitos encartados principalmente nas cartas Constitucionais, e que não se referem exclusivamente ás relações de direito público, o Estado se vê na contingência de estabelecer regras protetoras, de cunho notoriamente publicista, a fim de disciplinar as relações entre pessoas privadas para que seja estabelecido um equilíbrio tão desejado pelos novos rumos do Direito e que condiz com as expectativas da sociedade.
Neste mister, a par de movimentos que se verifica em outros ordenamentos em busca de uma efetividade do Direto, produziram-se no direito pátrio diversos diplomas legais nos quais se consignaram profundas alterações na perspectiva pela qual são tratadas determinadas relações jurídicas privadas, dentre os quais avultam o Código de defesa do Consumidor e a Lei de Locações.
A nossa temática na presente abordagem diz respeito exatamente á averiguação da compatibilidade entre estes dois diplomas, pois tem sido corrente e moente na doutrina e na jurisprudência a afirmação de que o CDC é incompatível com a lei de locações. É o que iremos ver a partir de agora.
2- A perspectiva de um Estado Social de Direito
Sob diversas óticas pode ser analisado o fenômeno jurídico,. Ma delas no dá o Direito como uma emanação da soberania estatal, manifestado através de um poder dotado de coerção e inafastabilidade. Sob este ponto de vista institucional, o Direito vigente em determinado local e tempo está intimamente relacionado à espécie de Estado existente. Na verdade, tanto a concepção do modelo de Estado como do Direito vigente são reflexos de opções que têm a sua base as mais variadas motivações político-ideológicas, relacionando-se profundamente uma com outra as duas estruturas.
Desta forma, para conhecermos o Direito vigente em determinado local, é de suma importância conhecermos a espécie de modelo de estado adotada. No nosso caso, parece, à luz do texto da Magna Carta de 1988, que é o local onde encontramos o arcabouço legislativo institucional do Estado, que, indubitavelmente, o modelo de Estado adotado, ao menos sob o prisma legal, é o de um estado Social de Direito.
O Estado Social de Direito representa uma evolução do estado Liberal-iluminista implantado a partir do século XVIII. Este, por sua vez, representa a evolução histórica do Estado Absolutista. Descabe por certo tratarmos aqui amiúde do Estado de matriz liberal, o que, aliás, daria margem a uma longa abordagem que refoge por completo de nossa temática. Porém, insta acentuarmos alguns pontos nodais para a compreensão do direito hoje vigente, ainda em nosso país, como de resto em todo o mundo ocidental.
Em sendo uma evolução histórica do estado Absolutista, o Estado Liberal se pauta por uma inversão político – institucional que dá margem à ascensão de grupos detentores de riqueza econômica e também a, sob o ponto de vista jurídico, construção de um Direito prioritariamente individualista. Ambos os fatores estão interligados, porquanto a ascensão da burguesia é geradora de forte pressão visando à construção de um sistema legislativo que contemplasse os seus interesses, daí surgindo uma acentuado caráter privatista no jus positivum, exatamente para favorecer a livre iniciativa, a economia de mercado e limitar a atuação estatal a limites toleráveis que não interferissem nos negócios privados.
O jogo do mercado, sem efetuarmos aqui nenhum julgamento meritório acerca do modelo econômico capitalista o que a história recente já tratou de fazer na fragorosa derrocada do socialismo, é sabidamente um mecanismo que prestigia o mais forte. Logo, não é de espantar que as codificações que se seguiram à Revolução Francesa se pautassem por um modelo extremamente privatista, que possibilitasse a permanência do status quo institucional implantado através da ascensão burguesa, repelindo-se regras que impossibilitassem a livre fluência dos ditames mercadológicos.
Assim sendo, todos os códigos civis do século XIX e início do século XX e que ainda vigem ou influenciam decisivamente os diplomas que lhes seguiram, marcam-se por um acentuado privatismo, priorizando o dogma da liberdade contratual absoluta e do pacta sunt servanda como princípios retores do sistema.
Ocorre, porém, que o início do século XX, refletindo pressões sociais de há muito existentes, fez vicejar um modelo de Estado Social, em especial a partir das Constituições de Weimar e Mexicana, de 1919 e 1917 respectivamente, modelo este que já se fez sentir no Código Civil Italiano que entrou em vigência quase trinta anos após. Em linhas gerais, o Estado Social representa uma ruptura do modelo de Estado Mínimo do liberalismo, relativizando o privatismo das relações individuais pela introdução de princípios protetores e de novos direito de cunho coletivo.
Ao invés de tornar-se um simples guardião do cidadão frente ao Estado, o que era feito pela garantia de eficácia das garantias e direitos individuais encartados nas Declarações de Direitos, o Estado Social busca transcender a ordem jurídica do plano meramente formal para uma concretude real, efetiva, não se limitando a interferir na atuação do próprio Estado frente aos administrados, mas, indo além, buscar um equilíbrio entre as relações particulares. Constata-se que a mera enunciação de direitos em textos legais, ainda que constitucionais não representa satisfatoriamente o atingimento dos escopos do Estado, carecendo-se ir além e interferir também nas relações privadas quando presentes certas circunstâncias, para ter-se uma justiça material, efetiva.
A adoção dos postulados do modelo de Estado Social não se deu ipso facto, senão que foi percorrido um lento e gradativo caminho de implantação de mudanças que enfrentou, e enfrenta ainda, muitas resistências. Mas sem dúvida este processo de evolução ecoa em todas as áreas do Direito, tendo-se uma especial incidência naquelas áreas socialmente sensíveis de que são exemplos as relações locatícias e de consumo, porque a primeira tem por base um direito constitucionalmente assegurado e a segunda se verifica, via de regra, em condições de desigualdade entre os contratantes.
Estabelecida a principiologia de Estado Social que se Busca implantar, temos que toma-la por base na interpretação e aplicação de qualquer norma legal, priorizando uma exegese teleológica das normas.
3- A relativização dos dogmas do direito privado.
A mais visível conseqüência da adoção de postulados de um Estado Social no direito positivo reside na relativização de dogmas assentes a séculos no direito privado. Como já mencionamos, dois deles têm especial importância na estrutura das relações privadas, quais sejam, o da liberdade contratual e o do pacta sunt servanda. A importância vital destes dogmas está que da sua conjugação temos que pode ser contratado ainda que em termos desvantajosos e demasiadamente oneradores e que uma vez avençado outro caminho não resta que o cumprimento da obrigação ou sua conversão em perdas e danos.
Sobre este sustentáculo, cria-se um quadro pernicioso quando tomamos em linha de conta partes em desigualdade de condições. O quadro se agrava ainda mais quando observamos que a sociedade moderna é uma sociedade de massas na qual tem ampla aplicação a utilização dos denominados contratos de adesão, onde se reduz ou se neutraliza a possibilidade de prévia negociação das condições. Em situações de crise, a situação ainda mais grave se torna, como se vislumbrou no exemplo da Europa nas duas grandes guerras.
Daí que os diplomas legislativos mais recentes tenham consagrado a existência de nulidades quanto a cláusulas que impliquem desequilíbrio entre as partes e a adoção da Teoria da Imprevisão por exemplo. Exemplos emblemáticos desta nova mentalidade são as leis 8.078/90 e 8.245/91. A lei de locações estabelece uma série de normas protetivas do locatário como v.g. arts, 4º, 8º, 11, 12, , 27, 45, 47 e 51. Da mesma forma, o Código de Defesa do Consumidor representa um sistema completo de proteção da parte hipossuficiente na relação de consumo. Este diapasão, ganham especial relevos dispositivos como os artigos 6º, 8º, 9º, 10º, 12 usque 17, 19, 20, 2830, usque 34, 39, a 41, 42, 43 e 44, 51, 54 dentre outros.
O pioneirismo da adoção de uma disciplina publicística nestas áreas deve-se aos valores subjacentes a estas espécies de relações jurídicas, valores estes que ensejaram proteção constitucional. Com efeito o artigo 6º, caput, da Constituição Federal elenca expressamente dentre os direitos sociais a moradia. A defesa do consumidor, de seu turno, ganha acolhida em diversos dispositivos do texto constitucional, a começar pelo inciso XXXII do artigo 5º, inserido dentre as cláusulas pétreas do texto, ( artigo 60, § 4º) determinando o compromisso do estado com a defesa do consumidor, norma esta completada pelo artigo 48 das Disposições Transitórias, o qual estabelecia o prazo de cento e vinte dias para a elaboração pelo Congresso Nacional, do CDC. Também o artigo 170, inc. V, que se insere no capítulo da Ordem Econômica e Financeira, trás como princípio a defesa do consumidor .
Dando cumprimento ao comando constitucional, o Código de Defesa do Consumidor derroga alguns dogmas do direito privado que tinham sua gênese no Direito Romano, adotado como base pela pandectística alemã e pelo Código Napoleônico que tanto influenciou as codificações do século XIX e início do século XX. O Direito Civil, bastião último de sobrevivência da rígida disciplina romana, marcada pelo privatismo e pelo individualismo, vai aos poucos se adaptando aos postulados de um de Estado Social.
4- O CDC como sistema.
Em sendo a materialização de um valor constitucional, o Código de Defesa do Consumidor representa um verdadeiro sistema próprio, mas que se irradia para além dos âmbito das relações definidas em lei como de consumo como definidas nos artigos 2º e 3º do CDC. Haja vista representar a disciplina do CDC uma materialização da nova tendência solidarista do direito privado, expungindo-se ou minimizando-se a aplicação dos dogmas privatistas e individualistas é lícito concluirmos que sua aplicação subsidiária e analógica é perfeitamente invocável a quaisquer ramos do direito.
As normas protetivas do CDC devem, portanto, ser encaradas como normas transcendentes, cuja aplicação não se limita diretamente às relações de consumo, senão que alcança invocação subsidiária a irradiar-se por qualquer ramos do direito privado, onde circunstâncias excepcionais não as afastem.
Enquanto princípio da ordem econômica, e enquanto direito individual expressamente agasalhado no texto do artigo 5º da CF/88, as normas do CDC clamam por interpretação e aplicação a mais ampla possível. Aliás, não é outra a sabedoria do brocardo “odiosa sunt amplianda, favorabilia sunt restringenda”.
Há que considerar, da mesma forma, que onde subsistir a mesma ratio invocável é a mesma lei, em caráter principal ou ao menos subsidiariamente, fato este que é uma defluência lógica das coisas, não carecendo a lei fazer expressa menção, pois “ubi eaden ratio legis, ubi eaden legis dispositio”. Por outro lado, a interpretação que dá margem a estas conclusões, e que se pauta pelo método teleológico, avulta em superioridade ante os métodos lógico e literal. Não podemos fazer da letra da lei, muitas vezes falha e omissa como falhos e omissão são os homens, seus elaboradores, empecilho a que o texto legal cumpra sua verdadeira finalidade, utilizando-os de filigranas lógicas e sofismas lingüisticos para, em interpretações rebarbativas e errôneas, afastarmos disposições que claramente se aplicam a determinados casos, ainda que não se preveja diretamente a incidência dos dispositivos.
Estas premissas são indispensáveis para fazermos o cotejo das relações locatícias e de sua disciplina legal com o CDC. Temos que afastar apriorismos formalistas e buscar a finalidade da norma dentro do espírito que anima o ordenamento em dado momento tomado por base.
5- O CDC nas Locações.
Quando tratamos de investigar a aplicação do CDC nas relações locatícias, encontramos posições antagônicas em grande desequilíbrio, posicionando-se a maioria da doutrina e da jurisprudência contrariamente à invocação da disciplina das relações de consumo nas relações de locação.
Em primeira plana o argumento invocado para dar arrimo à vedação resulta do fato de ser a legislação locatícia posterior ao Código de Defesa do Consumidor, e, portanto, a omissão da Lei de Locações, 8.245/92, implicaria, quanto às questões omitidas, afastamento peremptório do CDC. Venia concessa, esposamos posicionamento diferente.
É bem verdade que, em linha de princípio, a existência de legislação posterior onde não foram repetidas disposições semelhantes, é indício de afastamento da disciplina da lei anterior. No entanto, neste passo impende atentar para a espécie de normas de que se cuida e da função que venham a desempenhar dentro do arcabouço jurídico. Como sabido, há normas cuja aplicação irrefutavelmente limita-se aos lindes do estabelecido no próprio texto legal. Nestes casos, a especialidade da lei impede a aplicação ampla dos dispositivos haja vista o fato de que as circunstâncias que são o movel dos microssistema considerado não se encontram presentes fora dos casos especificados.
Em outros casos, a ratio legis está presente e normas aparentemente especiais grassam acolhida e aplicação a hipóteses para as quais não estavam expressamente previstas. É bom que se diga que raramente o legislador conhece o caminho que o texto irá tomar. Os textos legais assumem por força da interpretação contornos que jamais seus elaboradores seriam capazes de prever. `´e possível e lícito, então, colmatar as lacunas legais ou mesmo ampliar a significação e aplicação de textos legais desde que presentes as circunstâncias que deram margem a sua elaboração.
Assim se nos parece que o argumento de que a lei de locações representa uma disciplina própria, afastando o CDC , é um argumento por demais pobre. A nosso ver não merece aplausos a jurisprudência que afasta sob este argumento o CDC das locações como é o caso da Décima Quinta Câmara Cível do TJRS, em julgado assim ementado: “Locação. Embargos à Execução. Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade. O CDC não se aplica as locações, que possuem lei própria que as regula. Fiança. Beneficio de ordem. Se o fiador pactuou com cláusula de solidariedade, não lhe e permitido invocar perante o credor o beneficio de ordem, pois, diante de tal estipulação contratual, o fiador se equipara ao devedor principal. assim, face a solidariedade da obrigação assumida no contrato de locação e a renuncia ao beneficio de ordem, o fiador e responsável pelo pagamento dos locativos e encargos em atraso ate a entrega das chaves do imóvel. Recurso improvido. (5 fls.) (Apc nº 70001619287, Décima Quinta Câmara Cível, TJRS, relator: des. Ricardo Raupp Ruschel, julgado em 01/11/2000).
Em igual posição, a : “Locação. Despejo por falta de pagamento. Multa moratória. Código de defesa do consumidor. Inaplicabilidade. Inadmissível a redução da multa moratória de 10% para 2%, nos termos do CDC, porque este não se aplica as locações, que possuem lei própria que as regula. Recurso Improvido. (Apc nº 599056199, Décima Quinta Câmara Cível, TJRS, relator: des. Ricardo Raupp Ruschel, julgado em 11/08/1999).
Também no STJ, encontramos esta posição: “Locação – fiador – acordo para reajuste de aluguel. súmula 214/stj.-‘O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.’ (súmula 214-stj). – As relações locatícias possuem lei própria que as regule. Ademais, falta-lhes as características delineadoras da relação de consumo apontadas nos arts. 2º e 3º da lei nº 8.078/90.- O código de defesa do consumidor, no que se refere à multa por inadimplemento, não é aplicável às locações prediais urbanas.( Resp 204244/MG ; Recurso Especial 1999/0014940-8, DJ data:01/07/1999 pg:00205, min. Félix Fischer. T5 – Quinta Turma).
No mesmo diapasão: “Civil. Locação. Fiança. Renúncia do direito a exoneração. Multa contratual. Redução. Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.070/90 -Inaplicabilidade.1. Não podem exonerar-se da obrigação os fiadores que manifestaram expressa renúncia ao direito estipulado no C.C, art. 1.500. Mesmo que o contrato tenha se tornado por tempo indeterminado, se expressamente anuído pelos fiadores; 2. Não se aplica às locações prediais urbanas reguladas pela lei 8.245/91, o Código do Consumidor.(Resp 266625/GO; Recurso Especial 2000/0069155-0,DJ data:16/10/2000,pg:00346, min. Edson Vidigal, T5 – Quinta Turma)
A nosso ver, dita jurisprudência, que é dominante inclusive no STJ, descura-se de analisara a existência de pressupostos aptos a ensejar a aplicação do CDC nas locações. O raciocínio de que a lei de Locações é posterior ao CDC não pode significar o afastamento puro e simples do CDC, pois desde que não haja conflito expresso, a Lei de Locações pode ser complementada pelo CDC, ampliando-se a proteção ao locatário, parte, em tese, em condição de inferioridade na relação contratual. Deveras, uma redução nos horizontes de aplicação do CDC, frente a situações em que se firma a presença de motivos que clama a aplicação de uma disciplina protetiva vai de encontro à busca de uma efetiva proteção do consumidor.
Dir-se-á, como se tem visto nesta jurisprudência, que não estão presentes nas relações locatícias os elementos de caracterização das relações de consumo. De fato, nas locações entre pessoas físicas realmente não se encontra uma delas em posição de hipossuficiência, mas o mesmo não se pode dizer das relações de locação em que interferem imobiliárias. Ora, como sabido e consabido, hodiernamente grande parte das relações de locação são realizadas com intermediação de imobiliárias que administram os imóveis, podendo-se, a partir desta realidade, ter por presentes os requisitos que configuram uma relação de consumo.
Para chegarmos a esta conclusão basta atentarmos para a dicção dos artigo 2º e 3º da Lei 8.078/90. O primeiro define consumidor como ” toda a pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” acresce o parágrafo único que se considera consumidor ” a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. O artigo 3º, de seu turno contempla o fornecedor como sendo ” toda a pessoa física ou jurídica , pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.”. Por outro lado, o parágrafo segundo do mesmo artigo define como serviço ” qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
Como se infere de uma leitura dos dispositivos, a enumeração foi feita exemplificativamente no que concerne às hipóteses de aplicação do CDC. Quanto à hipótese de exclusão da aplicação, in casu nas relações trabalhistas, como norma que deixa de estender direitos, deve ter interpretação e aplicação restritas. Logo, devemos conceber que as relações locatícias não estão subtraídas da aplicação do CDC. Há que atentar que as relações bancárias foram exemplificativamente inseridas no rol de relações as quais se estende o CDC e trata-se de relações submetidas a legislação especial. Isto afasta o argumento de que a especialidade seria óbice para a aplicação do CDC.
Ademais, quando tratamos de locações nas quais atua imobiliárias, temos configurada uma relação de consumo na media em que temos um tomador de serviços e um fornecedor de serviços nos exatos termos dos artigo 2º e 3º do CDC. O locatário é um consumidor final do serviço. Por outro lado, as imobiliárias são verdadeiras empresas com estruturas organizadas a tal ponto de ensejar se vislumbre uma relação em que uma das partes se encontra em hipossuficiência. Mas não bastassem todos estes fatores, temos que lembrar que há uma praxe nas relações locatícias de realização de contratos de adesão. O que por si só já seria uma situação a clamar a aplicação do CDC.
Ainda em abono a tese de aplicação do CDC, não podemos olvidar que está presente na relação locatícia um direito constitucionalmente assegurado que determinou a produção de uma legislação especial para tratar desta espécie. A negativa de aplicação do CDC implica, contrariando a finalidade protetiva da legislação de locações, negar a extensão de uma série de mecanismos protetivos que só viriam a somar ao arcabouço erigido sob os auspícios da lei 8.245/91.
Mas admitida que seja a aplicação do CDC quando presente uma imobiliária em um dos pólos pergunta-se: como ficariam as locações feitas entre pessoas físicas? Primeiramente e bom que se afaste a idéia de que pelo fato de termos pessoas físicas na relação contratual esteja afastada a possibilidade de abusos. O desequilíbrio que o CDC visa abolir ou minimizar na relações contratuais não está necessariamente ligado à presença de uma empresa em um dos pólos, senão que se relaciona com a situação das partes em relação ao objeto do contrato. Logo, pode haver desequilíbrio mesmo assim, aliás, como ocorria antes da entrada das imobiliárias no mercado de aluguéis de imóveis residenciais ou comerciais.
Mas em contraponto argumentar-se-á que neste caso não estaria presente uma relação de consumo. De fato não podemos estender o conceito de relação de consumo para abarcar relações desta espécie, em que o imóvel é locado eventualmente sem o profissionalismo e a estrutura que caracteriza as locações realizadas por imobiliárias ou agências. Porém, não estaria só por isto afastada a aplicação subsidiária do CDC como parâmetro. Realmente, o fato de termos pessoas física envolvidas não significa um “bill” de indenidade à prática de abusos. A repressão a posições de desequilíbrio extremado também deve estar presente nestas relações em consonância às tendências do moderno direito civil.
Logo, embora não estejamos frente a uma relação que possa se enquadrar no gabarito das relações de consumo temos como plausível a invocação do CDC como meio a servir de parâmetro para ferirmos a validade ou não de práticas sobre as quais se esteja a controverter.
Em síntese, presentes os requisitos a clamar por uma atividade intervencionista e protetiva em determinada espécie de relação jurídica, não se há afastar a incidência das normas protetivas do CDC, ainda que estas relações tenham sua disciplina afeita a uma legislação especial, pois esta legislação só tem o condão de afastar a disciplina do CDCV naquilo em que forem incompatíveis os diplomas, levando-se em conta, é claro, que a norma seja posterior ao CDC. O Código de Defesa do Consumidor representa um aspecto de um sistema de proteção mais amplo, que tem, inclusive facetas processuais na lei dos juizados especiais cíveis, transcendendo seu regramento os limites estreitos que a que o texto legal, em uma interpretação literal, possa conduzir.
Na jurisprudência, embora minoritária, a tese encontra eco como em julgado da 12ª Câmara Cível do TARGS assim ementado: “Locação de imóvel. Cláusula abusiva. Tem-se como abusiva a clausula contratual autorizando o administrador do imóvel a emitir titulo de crédito, para satisfação da obrigação, face ao disposto no CDC, art. 51, IV, como art. 37, par. único. Lei locações”. (Apc nº 198039075, Décima Segunda Câmara Cível, TARGS, relator: des. Cezar Tasso Gomes, julgado em 15/10/1998).
Igual opinião em julgado da Terceira Câmara Cível do TARGS: ” Locações. multa. Honorários e “docs”. Não prevendo o contrato de locação, expressamente, multa, pode o juiz fixa-la em 2%, invocando o CDC. Honorários arbitráveis segundo o art. 20 do CPC. Em juízo, e incabível cobrança das despesas pelos “docs” bancários”. (Agi nº 197131667, Terceira Câmara Cível, TARGS, relator: des. Wilson Carlos Rodycz, julgado em 03/09/1997).
Do mesmo modo: “Código de defesa do consumidor – locações – multa. Aplica-se o CDC as relações locatícias, inclusive a redução da multa para 2% pela lei 9298/96, sobre os aluguéis vencidos após sua vigência, ressalvado o entendimento do relator no sentido da não aplicação por ter regramento próprio. Provimento unânime do apelo, porém por fundamentos diversos”. (Apc nº 197126154, Quarta Câmara Cível, TARGS, relator: des. Ilton Carlos Dellandrea, julgado em 14/08/1997).
Esta jurisprudência, em nosso entendimento, merece aplausos.
6- Conclusões
É induvidoso que o Direito Civil de um Estado Social não pode mais relegar aos dogmas privatistas, dos quais hauriu, durante séculos, sua base, a mesma força de outrora. Isto se deve ao fato de que as expectativas de justiça dos jurisdicionados se pautam, hoje, por uma visão mais solidarista do Direito como um todo e em especial do Direito Civil, bastião secular das fontes romanas.
A ordem jurídica de um Estado Social, como indubitavelmente se acolheu na Carta Política de 1988, não se compadece com desequilíbrios gritantes que dão margem a rematadas injustiças. As práticas predatórias, que outrora eram comuns, não podem mais ser toleradas qualquer que seja a espécie de relação jurídica em questão.
Este princípio de solidarismo jurídico mais ganha importância quando estamos frente a relações jurídicas que possuem por natureza um conteúdo sobre o qual q ordem jurídica lança maior proteção. Dentro destas espécies podemos enquadrar as relações de consumo e as relações locatícias. As primeiras por envolveram sujeitos quase sempre díspares; a segundas por envolverem um direito constitucional. Estas relações demandam uma proteção mais efetiva.
Nesta ordem de idéias, e tendo por base o fato de que o CDC, antes de ser uma legislação destinada exclusivamente às relações de consumo, é na verdade um sistema de proteção que encontra larga invocação dentro do direito privado. Não vemos porque se afastar aprioristicamente a aplicação do CDC às locações. O argumento de que as relações locatícias possuem regramento específico e posterior é fraco porquanto as relações de crédito também possuem regras próprias e nem por isto o CDC deixa de lhes ser aplicável, elencando-as expressamente em rol exemplificativo.
Há que preponderar, a nosso juízo, a interpretação teleológica das normas, de modo a se aplicar os dispositivos protetivos do CDC quando presentes as justificativas para tanto, inobstante a referência expressa da lei, que, no caso, é despicienda, haja vista tratar-se de uma ilação lógica inexorável. Justificativas de cunho formal não podem afastar normas que criam direitos, cuja natureza clama larga interpretação e aplicação.
Por isto cremos plenamente aplicável o CDC às locações, relações cujas feições modernas introduziram uma visível disparidade entre os contratantes, naquilo em que não houver contrariedade, é óbvio, por ser a Lei de Locações lex posteriori. Não há justificativa plausível para deixar de estender o sistema protetivo do CDC às locações, ainda que seja como parâmetro de utilidade incontestável.
Tal conclusão vai ao encontro dos anseios de justiça da sociedade e de uma interpretação do texto legal conforme os ditames do direito vigente e de seus princípios basilares.
Juiz de Direito Substituto, atuando na 2ª Vara Cível e Anexo da Fazenda Pública de Erechim-RS
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