O conflito entre Israel e Palestina

A construção dos significados que
escondem complexidades e diversidades é um tema do livro de Alain Badiou, La
portée du mot juif[1].
Cita o autor um episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O
primeiro-ministro Raymond Barre comentando um atentado a uma cinagoga comentou
para a imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da
cinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba explodiu.
Qual o significado da palavra judeu agiu de maneira indisfarçável na fala do primeiro-ministro?
A palavra “judeu” escondeu toda a diversidade histórica, pessoal do grupo de
pessoas que são chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de
simplificação e de geração de preconceitos que facilita a manipulação e a
dominação. A estratégia de nomear facilita a dominação.[2]

Badiou menciona que o anti-semitismo
de Barre não mais é tolerado pela média da opinião publica francesa. Entretanto
um outro tipo de anti-semitismo surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da
criação do estado palestino. No livro Badiou não pretende discutir o novo ou o
velho anti-semitismo mas debater a existência de um significado excepcional da
palavra “judeu”, um significado sagrado, retirado do livre uso das pessoas.[3]

Assim como ocorre com varias outras
palavras de forma menos radical (liberdade e igualdade, por exemplo), a palavra
“judeu” foi retirada do livre uso, da livre significação. Ela ganhou um status
sacralizado especial, intocável. O seu sentido é pré-determinado e intocável,
vinculado a um destino coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido que retira a
possibilidade das pessoas enxergarem a complexidade, historicidade e
diversidade das pessoas que recebem este nome.

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Badiou ressalta que o debate que
envolve o anti-semitismo e a necessidade de sua erradicação não recebe o mesmo
tratamento de outras formas de discriminação, perseguição, exclusão ou racismo.
Existe uma compreensão no que diz respeito à palavra “judeu” e à comunidade que
reclama este nome, que é capaz de criar uma posição paradigmática no campo dos
valores, superior a todos os demais. Não propriamente superior mas em um lugar
diferente. Desta forma pode-se discutir qualquer forma de discriminação, mas
quando se trata do “judeu” a questão é tratada como universal, indiscutível,
seja no sentido de proteção seja no sentido de ataque. Da mesma forma, toda
produção cultural, filosófica assim como as políticas de estado tomam esta
conotação excepcional. Talvez nenhum outro nome tenha tido tal conotação, ou
para Badiou, a força e a excepcionalidade do nome “judeu” só tenha tido
semelhança com a sacralização do nome Jesus Cristo. Não há, entretanto, um
medidor para esta finalidade. O fato é que o nome judeu foi retirado das
discussões ordinárias dos predicados de identidade e foi especialmente sacralizado.

O nome “judeu” é um nome em excesso
em relação aos nomes ordinários e o fato de ter sido vitima incomparável se
transmite não apenas aos descendentes mas a todos que cabem no predicado
concernente, sejam chefes de estado, chefes militares, mesmo que oprimam os
palestinos ou qualquer outro. Logo, a palavra “judeu”, autoriza uma tolerância
especial com a intolerância daqueles que o portam, ou, ao contrário, uma
intolerância especial com os mesmos. Depende do lado que se está.

Uma lição importante que se pode
tirar da questão judaica, da questão palestina, do nazismo e outros nomes que
lembram massacres ilimitados de pessoas, é a de que, toda introdução enfática
de predicados comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de
criminalização (como nazistas e fascistas) seja de sacrifício (como cristãos no
passado e judeus e mulçumanos no presente), esta nomeação nos expõe ao pior.

Esta mesma lógica se aplica a
nomeação de um estado judeu. Primeiro, um estado democrático não pode ser
vinculado a uma religião. Segundo, porque esta nomeação pode gerar privilégios.
Uma democracia constitucional includente exige um estado indistinto do ponto de
vista identitário na contemporaneidade.

Vários equívocos podem ser
percebidos quando da aceitação ou utilização do predicado radical para
significar comunidades, países, religiões, etc. Por exemplo, podemos encontrar
pessoas comprometidas com projetos democráticos, fechando os olhos ou mesmo
apoiando um anti-semitismo palestino, tudo pela opressão do estado judeu aos
palestinos, ou, ao contrário, a tolerância de outras pessoas, também
comprometidas com um discurso democrático, tolerarem praticas de tortura e
assassinatos seletivos por parte do estado de Israel, por ser este estado um
estado “judeu”.

Combater as nomeações, a
sacralização de determinados nomes, significa defender a democracia, o
pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que não ignora os
particularismos mas que ultrapasse este; que não tenha privilégios e que não
interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os nomes comunitários, religiosos
ou nacionais.

Badiou dedica o seu livro a uma
pluralidade irredutível de nomes próprios, o único real que se pode opor a
ditadura dos predicados.

O filme “trem da vida” é um
maravilhoso poema a pluralidade de nomes próprios que foram reduzidos a um
predicado “judeu” na segunda guerra mundial. O filme ressalta a pessoa, os
grupos dentro dos grupos, e como a identificação com determinados grupos dentro
de um outro grupo gera segregação. A introdução do tema identidade e
identificação com grupos, religiões, estados, partidos, idéias, como fator de
segregação, sempre irracional. Como anulação do sujeito livre, com a anulação
do nome próprio em nome de um nome do grupo.

Um mundo onde a pessoa seja vista
sempre como pessoa, em toda sua complexidade e singularidade, sejam quais forem
suas identificações ou identidades, este é o mundo onde a paz e a justiça serão
possíveis.

Notas:

[1] BADIOU,
Alain. Circonstances 3, Portées du mot “juif”, Editions Lignes et Manifestes,
2005, Paris. Pages 7 et 8.

[2]
Comentamos em outro estudo que um outro mecanismo de dominação e manipulação do
real é a estratégia amplamente utilizada pela imprensa de explicar o geral pelo
fato particular. Slavoj Zizek no livro citado anteriormente (Plaidoyer em
faveur de l’intolerance) menciona dois exemplos norte-americanos. Cita o caso,
por exemplo da jovem mulher de negócios bem sucedida que transa com o namorado
e engravida e resolve abortar para não atrapalhar a sua carreira. Este é um
caso que ocorre entre milhares, talvez milhões de outras situações. Entretanto
o poder toma este caso como exemplo permanente para demonstrar o egoísmo que
representa o aborto diante da opinião pública. Ao explicar o geral pelo
particular ou construir predicados para grupos sociais, a tarefa de manipulação
para a dominação se torna mais fácil.

[3] É
fundamental ler Giorgio Agambem, especialmente o livro Homo Sacer, publicado
pela editora UFMG, Belo Horizonte. Ler também o texto Profanation, do mesmo
autor, publicado em Paris, 2005 pela editora Payot e Rivages. Neste ultimo
texto o autor explica o processo de sacralização como mecanismo que retira do
livre uso das pessoas  determinadas
coisas, objetos, palavras, jogos, etc. Através da profanação, do rompimento do
rito com o mito, é possível devolver estas coisas, palavras, ao livre uso.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

José Luiz Quadros de Magalhães

 

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.

 


 

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Equipe Âmbito Jurídico

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