Sumário: 1. Introdução; 2. A divergência teórica sobre o controle da atividade administrativa fundada em conceitos indeterminados na doutrina brasileira; 3. A amplitude do controle jurisdicional da aplicação de conceitos indeterminados pelo administrador na jurisprudência; 4. Considerações finais;5. Bibliografia.
1.Introdução;
O tema da verificação dos atos da administração pública levanta uma série de reflexões, o que o torna uma questão recorrente no direito administrativo, seja pela polêmica sobre o modelo ideal de controle, seja pela delimitação da amplitude da ação do órgão controlador. As posições teóricas, em geral, oscilam entre dois pólos claramente distintos, a saber, a orientação que defende a maximização do controle da administração e a corrente que valoriza a liberdade de atuação do administrador, considerada necessária para a boa implementação das políticas públicas.
Quanto ao primeiro aspecto referido, ou seja, a discussão sobre a estrutura adequada de controle da atividade administrativa, os sistemas jurídicos moldaram-se conforme sua preferência pela tradição francesa, em que o contencioso administrativo ligado à administração tem a incumbência do controle, ou pela tradição anglo-americana, na qual está a atividade administrativa submetida aos tribunais comuns[1]. Cabe lembrar que cada sistemática tem sua origem própria: enquanto na França a limitação do poder dos parlamentos judiciais baseava-se em uma interpretação radical da separação dos poderes e na existência de um regime jurídico-administrativo próprio para a atividade administrativa, alicerçado na supremacia do interesse público, na Inglaterra e nos EUA a administração submetia-se ao direito comum, sem motivo, portanto, para a criação de uma jurisdição similar ao caso francês.
No Brasil, após a experiência do contencioso administrativo no período do império consolidou-se o sistema de heterocontrole, instituído a partir da Constituição Republicana de 1891. Esta, aliás, claramente inspirada no regime constitucional norte-americano, como se constata no modelo federal adotado, no sistema judiciário e de controle de constitucionalidade, e na própria denominação da República, intitulada “Estados Unidos do Brasil”. Com o fim do contencioso, ao poder judiciário ficou reservada a tarefa de controlar a atividade da administração pública, atribuição que se preservou até os dias de hoje. Isto, inclusive, levou Vitor Nunes Leal a afirmar ser “(…)da índole do nosso regime a posição de superioridade que o Judiciário assume em face dos outros podêres, sempre que se trate de interpretar e aplicar um texto de lei ou um princípio constitucional”[2].
Contudo, no direito brasileiro convivem esferas autônomas de controle, como o judicial, o parlamentar, o exercido pelos tribunais de contas, e a avaliação prévia dos atos pela própria administração. Eventual conflito entre os órgãos resolve-se com a afirmação da inafastabilidade da apreciação jurisdicional, estatuída pelo art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
É, todavia, na definição dos limites do controle jurisdicional da administração que se encontram as maiores dificuldades, especialmente devido à “(…)tensão entre os princípios constitucionais da inafastabilidade da tutela jurisdicional e da separação dos poderes”[3], e isso por ser nebuloso o limite entre a vinculação e a liberdade de atuação do administrador. Assim, surge o desafio de encontrar-se a justa medida do controle, de forma que se garanta, ao mesmo tempo, a proteção efetiva dos direitos fundamentais e o grau de autonomia reservado à administração pela separação dos poderes.
A elucidação dos parâmetros de fiscalização e, por via de conseqüência, das fronteiras da perquirição judicial dos fundamentos dos atos administrativos torna-se particularmente complexa diante da inserção de conceitos imprecisos nos preceitos de direito administrativo, incapazes de indicar uma resposta claramente unívoca ao intérprete. É em torno dos conceitos indeterminados e da discussão sobre o caráter vinculado ou discricionário da aplicação dos mesmos que se desenvolvem as principais teses sobre a maximização ou minimização do controle jurisdicional, sendo certo que, no estágio atual, a análise da compatibilidade dos atos administrativos com o sistema jurídico dispõe de um número significativo de métodos de controle, independentemente da adoção prévia de um conceito amplo ou restrito de discricionariedade. Dessa forma, não mais se admite um espaço de liberdade totalmente fora do mundo do Direito[4].
Neste texto, apresenta-se uma reflexão sobre o comportamento da jurisprudência diante da incumbência de controlar a aplicação, pelo administrador, de preceitos jurídicos cujo enunciado contenha conceitos indeterminados. Antes, porém, são sintetizadas as lições doutrinárias atinentes ao tema, cuja influência na praxis não deve ser desconsiderada. Por fim, é pertinente uma reflexão sobre os fundamentos adotados pelo judiciário para efetivar(ou não) o exame judicial das atribuições de sentido dos conceitos vagos.
2. A divergência teórica sobre o controle da atividade administrativa fundada em conceitos indeterminados: a doutrina brasileira;
A incerteza quanto ao sentido das expressões contidas na lei sempre trouxe perplexidades para a metodologia jurídica e, em especial, para a aceitação da idéia de que o direito é um sistema fechado e logicamente ordenado, capaz de oferecer respostas seguras ao operador do direito. A vagueza dos conceitos e a pouca rigorosidade técnica do legislador tornou inviável a admissão de critérios puramente lógicos para a “descoberta” da “vontade da lei” ou a “vontade do legislador”, de maneira que cada vez mais a ciência jurídica teve de trilhar caminhos que superassem a crença pandectística no caráter hermético do sistema jurídico e na “realidade directa” dos conceitos jurídicos, na expressão utilizada por Wieacker[5].
O reconhecimento da potencial imprecisão da linguagem, pela concepção positivista kelseniana, trouxe uma solução desconfortável para o aplicador do direito. Segundo Kelsen, certamente consciente dos limites da linguagem e de uma apreciação científica do direito(na visão positivista), a interpretação apresentaria um elemento cognitivo e outro volitivo e, se“(…) por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem”[6]. Nos limites da moldura, indicada por meio de uma apreciação cognitiva, teria o aplicador da norma liberdade para definir o seu sentido, decisão esta que não poderia ser captada cientificamente pelo estudioso do direito, já que tomada no plano estritamente volitivo.
O conceito de interpretação formulado por Hans Kelsen e, no campo do direito administrativo, por Adolf Merkl[7], que distinguiu entre determinantes heterônomas(o direito objetivo) e autônomas para o órgão aplicador do direito, estas últimas inseridas no campo da discricionariedade, anunciava um barreira incômoda para o cientista, pois colocava no plano extrajurídico parcela importante da aplicação do direito e sepultava a aceitação de parâmetros jurídicos para o controle de grande parte das interpretações de normas jurídicas. Para além da moldura estar-se-ia em terreno diverso do direito e, em decorrência disso, alheio à ciência jurídica.
A teoria de Kelsen reflete os pilares teóricos dominantes em seu tempo nas ciências sociais[8], e, como Pareto e Weber, combatia a contaminação da ciência por juízos de valor[9]. Para Bobbio, “Também em Kelsen o desígnio de colocar a ciência do Direito ao nível das demais ciências, perseguindo o ideal científico da ‘objetividade’ e da ‘exatidão’, vai acompanhado de uma concepção irracionalista dos valores tão radical como a de Pareto ou Weber”[10]. A distinção categórica entre juízo de fato e juízo de valor e o distanciamento deste da ciência jurídica acabou por instituir o chamado desafio kelseniano, na expressão adotada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior[11]: afinal, como edificar um conceito de ciência jurídica- e de interpretação- que supere a limitação positivista e permita a inserção, no âmbito científico, dos “juízos de valor” empreendidos pelo intérprete? Ou, em outras palavras, de que forma retirar da total irracionalidade a definição e aplicação dos valores contidos nas normas que compõem o sistema jurídico?
Várias vertentes teóricas pretenderam construir alternativas ao pensamento kelseniano. A hermenêutica passou a recorrer a uma concepção aberta do sistema jurídico e à valorização do caso concreto para a atividade interpretativa, pelo que se rejeitou uma concepção essencialista da linguagem, inalterada no tempo e infensa a influências do intérprete e dos elementos da realidade. E, neste esforço para superar a concepção formalista do direito, a hermenêutica constitucional foi de extrema relevância, ao se assentar a idéia de que
“Compreender”, e, com isto, “concretizar”, somente é possível em relação a um problema concreto. O intérprete tem que colocar em relação com dito problema a norma que pretende entender, se quer determinar seu conteúdo correto aqui e agora. Esta determinação, assim como a “aplicação” da norma ao caso concreto, constituem um processo único e não a aplicação sucessiva a determinado suposto de algo preexistente, geral, em si mesmo compreensível. Não existe interpretação constitucional desvinculada dos problemas concretos[12]
A evolução dos estudos hermenêuticos não acompanhou, no direito administrativo brasileiro, o mesmo ritmo do direito constitucional. Após a Constituição de 1988, diversas obras têm privilegiado a hermenêutica constitucional, enquanto a ciência jurídico-administrativa ainda não descobriu toda a potencialidade da questão para o aperfeiçoamento do controle da administração pública.
No direito administrativo, a limitação da atividade interpretativa foi reforçada por outro aspecto não menos relevante. Afora as inúmeras afirmações de que os valores, as circunstâncias de aplicação e a participação do intérprete eram determinantes significativas para a definição do sentido da norma jurídica, observou-se que a separação dos poderes restringia a própria capacidade do órgão controlador de realizar a operação de interpretação/aplicação do preceito jurídico. Em suma, antes da discussão sobre o como se deve interpretar a regra, há uma questão prévia sobre quem tem a legitimidade constitucional para interpretá-la, e até que ponto cada órgão tem atribuição para tanto.
As dificuldades na interpretação do direito, dessa forma, foram relegadas a um segundo plano ou tiveram respostas baseadas em uma metodologia jurídica inapropriada para a realidade do direito administrativo. De um lado, houve quem sustentasse, em nome do princípio da separação dos poderes, a vedação imposta ao judiciário para corrigir a interpretação do administrador em relação aos conceitos indeterminados, em razão da impossibilidade de substituir juízo de sua estrita responsabilidade. Ao se dar esta resposta à questão, a priori era afastada a discussão hermenêutica, já que a tarefa de atribuição de sentido incumbia unicamente ao administrador. Em posição contrária, defendeu-se que os conceitos indeterminados admitiam apenas uma única resposta correta e, portanto, vinculavam o agente público, tese que não obstante alargasse o controle dos atos administrativos não resolvia, por si só, a demanda por métodos interpretativos capazes de racionalizar os conflitos valorativos subjacentes à aplicação do preceito jurídico.
No Brasil, a aplicação dos conceitos indeterminados veio a encontrar espaço relevante na doutrina recentemente, embora seja de se registrar que Celso Antônio Bandeira de Mello trata da questão desde a década de 1970. E a razão para o delongado silêncio dos doutrinadores decorre principalmente do enfoque conferido ao controle dos atos administrativos, que pautava na definição dos elementos do ato administrativo e no grau de vinculação previamente estabelecido(quanto à competência, forma e finalidade) a demarcação do contorno da análise judicial da legitimidade dos atos praticados pelos administradores públicos.
Quando se trata do controle jurisdicional da atividade administrativa pautada em conceitos indeterminados no direito brasileiro é pertinente a referência aos escritos de Vitor Nunes Leal, notável jurista que, mesmo à época em que se reconhecia um extenso âmbito de liberdade em prol da administração pública já fazia referência ao caráter vinculado da aplicação de conceitos vagos, ao refletir especificamente sobre o tombamento de obra em razão de interesse histórico.
Conforme o ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal ressaltou, a primeira oportunidade em que a Corte Suprema tratou do regime do patrimônio histórico foi no julgamento da Apelação Cível nº 7.377, na qual uma das partes alegou não ser o bem tombado de interesse histórico e, assim, passível de tombamento[13]. Para o autor, a qualificação de um bem como sendo ou não de valor histórico não se trata de um juízo de conveniência e oportunidade do administrador, mesmo se os critérios indicados pela lei sejam expressos por meio de conceitos vagos[14]. Além disso, conclui que a dificuldade técnica, por si só, não exclui o controle jurisdicional[15] e registrou que o controle da legalidade abarca tanto os aspectos formais quanto os substanciais dispostos em lei[16].
A lição de Vitor Nunes Leal não tomou corpo na doutrina e jurisprudência, que continuaram a tratar da discricionariedade como um fenômeno capaz de surgir no objeto e no motivo do ato, sem indagar diretamente sobre a relação entre interpretação de conceitos vagos e a existência(ou não) de liberdade de atuação do administrador. A aplicação de conceitos indeterminados apenas posteriormente passou a ser estudada em detalhes, por três correntes definidas. A primeira, que considera a discricionariedade como insuficiência de programação normativa; a segunda, que nega a relação entre conceitos indeterminados e discricionariedade, e a última, que não faz uma associação direta entre vagueza dos conceitos e liberdade do administrador, embora reconheça que em certas situações haja discricionariedade diante da imprecisão conceitual.
Entre as vertentes acima enunciadas, a primeira é a que mais encontrou eco, e isso principalmente pelo fato de que os autores oriundos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na sua maioria, defendem a tese em seus estudos, com a aceitação das premissas sustentadas por Celso Antônio Bandeira de Mello.
Bandeira de Mello não admite uma relação necessária entre discricionariedade e indeterminação dos conceitos, que devem ser interpretados a fim de se descobrir a real liberdade conferida ao administrador. Para o autor,
A discrição administrativa pode residir na hipótese da norma, no caso da ausência de ausência de indicação explícita do pressuposto de fato, ou no caso de o pressuposto de fato ter sido descrito através de palavras que recobrem conceitos vagos, fluidos ou imprecisos. Pode residir no comando da norma, quando nele se inculca ao administrador certa margem de liberdade para decidir-se se pratica ou se não pratica dado ato e em que momento o faz ou mediante que forma jurídica o revestirá ou, ainda, que ato pratica diante daquelas situações fáticas. Finalmente, pode residir na finalidade da norma, pois, como ela serve de diretriz para a intelecção dos demais elementos da estrutura lógica da norma, se a finalidade é um valor,-como deveras o é- e se os valores não são unissignificativos, a fluidez da finalidade reflui sobre o pressuposto de fato.[17]
Bandeira de Mello entende que o conceito possui um conteúdo mínimo, razão pela qual se pode dizer que possui uma zona de certeza positiva, cuja aplicação da palavra é certa, e uma zona de certeza negativa, referente às situações nas quais inexiste dúvida sobre a não aplicação[18]. Nessas zonas não há discricionariedade, pois a interpretação leva a um grau seguro de univocidade, o que não ocorrerá, todavia, quando haja hesitação sobre o sentido do conceito, de forma que “a discricionariedade ensejada pela fluidez significativa do pressuposto ou da finalidade da norma cingir-se-á sempre ao campo de inelimináveis dúvidas sobre o cabimento dos conceitos utilizados pela regra de direito aplicanda”[19].
O autor paulista insere o problema da discricionariedade na discussão sobre a interpretação dos preceitos jurídicos com o intuito de buscar uma solução metodologicamente útil para a quaestio diabolica dos conceitos indeterminados no direito administrativo, e afasta a ocorrência de um nexo essencial entre liberdade do administrador e imprecisão das palavras, já que estas sempre serão passíveis de interpretação. Há um campo de significação possível, em que tanto o administrador público quanto o juiz podem captar por meio dos métodos de interpretação reconhecidos como legítimos.
Por outro lado, Celso Antônio Bandeira de Mello admite que dúvidas insolúveis podem persistir diante dos conceitos vagos. E é neste limite da interpretação que surgiria a discricionariedade, entendida como uma insuficiência da programação normativa estabelecida pelo legislador. Diante da inexistência de parâmetros seguros para a identificação do sentido do conceito, não restaria alternativa senão reconhecer a liberdade do agente público para decidir. A esfera discricionária, contudo, apenas se exterioriza no caso concreto, de forma que
O campo de liberdade existente no mandamento ou na norma de Direito em abstrato, é muito maior do que o campo de liberdade existente perante a situação concreta, já que a norma se fez ampla ou com certa liberdade, precisamente para que fosse adensada ante o caso concreto e ao lume de sua finalidade. Em despeito da lei haver permitido, em tese, que a Administração optasse por uma ou outra conduta, no caso concreto deixaria de ser atendida a finalidade da norma se fosse negado o que a parte requereu[20]
Essa concepção dinâmica da discricionariedade administrativa procura contextualizar a atividade aplicação dos conceitos vagos na globalidade da função administrativa, com atenção à finalidade perseguida pela administração. Para tanto, a liberdade do administrador “não significa sempre liberdade de eleição entre indiferentes jurídicos”[21], e sim “Significa o dever jurídico funcional(questão de legitimidade e não de mérito) de acertar, ante a configuração do caso concreto, a providência(…)ideal capaz de atingir com exatidão a finalidade da lei(…).”[22]
Em síntese, para Celso Antônio Bandeira de Mello, a discricionariedade administrativa é uma margem de liberdade verificável perante o caso concreto, cuja utilização deve perseguir a solução mais adequada à finalidade legal. Por via de conseqüência, é autorizado o intérprete a constatar que a discricionariedade prevista no preceito não subsista perante a situação que demanda a aplicação, e isso quando as circunstâncias levem a uma única solução justa. É o que se chama de redução da discricionariedade a zero.
A tese de Bandeira de Mello, conquanto enuncie uma compreensão dinâmica da discricionariedade, apresenta esta basicamente como um fenômeno de caráter cognitivo, isto é, como o dever imposto ao administrador para buscar a solução adequada perante o direito, e, principalmente, relaciona a liberdade do administrador com a possibilidade de controle jurídico, pelo que se pode afirmar que o autor apresenta um conceito de natureza jurídico-metodológica de discricionariedade, no sentido de que explica a liberdade do administrador a partir do “alcance e limites intrínsecos do controle jurídico de seu exercício”[23].
A tese da discricionariedade como insuficiência de programação normativa não foi a única a tentar superar a doutrina consolidada no direito brasileiro. Autores consagrados, em oposição à idéia que relacionava, de alguma forma, liberdade do agente público e vagueza dos conceitos, passaram a defender o caráter vinculado da aplicação de tais expressões.
Para Almiro do Couto e Silva, a “(…)impossibilidade relativa do controle judicial da aplicação dos conceitos indeterminados pela Administração Pública não os transforma, entretanto, em fonte do poder discricionário”[24]. Na sólida lição do jurista, a discricionariedade diferencia-se dos conceitos indeterminados porque nestes, a princípio, o controle é total, enquanto que na naquela já há previsão inicial de liberdade de escolha pelo administrador. Decorrência disso é que o próprio julgador deverá verificar se existe no caso concreto limitação ao controle judicial, cuja restrição surgirá quando a complexidade ou a diversidade de opiniões não permita vislumbrar a melhor solução. A discricionariedade, ao contrário, tem a previsão de controle restrito disposta na lei[25].
Afora isso, Almiro do Couto e Silva afirma “(…) que muitas vezes, na mesma norma jurídica há a conexão de conceito jurídico indeterminado com poder discricionário. Nisso não há nada de singular. O intérprete deverá separar os dois conceitos e tratá-los de acordo com os princípios e regras que lhe são peculiares”[26]. Nota-se que o mestre gaúcho introduziu no direito brasileiro a corrente predominante no direito germânico, que dissocia discricionariedade de conceitos indeterminados, e com clareza e linearidade de raciocínio assenta que a diferença substancial está no fato de que enquanto naquela a liberdade é previamente definida pelo legislador, nos conceitos vagos o controle, em tese, é total, sendo que a restrição da verificação judicial somente ocorrerá diante do caso concreto.
Além de Almiro do Couto e Silva, Eros Roberto Grau diferencia a atividade de aplicação de conceitos indeterminados da discricionariedade. Privilegia, no entanto, uma abordagem baseada no estudo dos conceitos, principalmente na distinção entre conceito e termo. O primeiro, para o Ministro do Supremo Tribunal Federal, designaria uma idéia universal, sendo que o conceito é representado por um termo. E é neste que pode ocorrer indeterminação, já que o termo é a expressão lingüística de um conceito de significação determinada[27].
Eros Grau distingue juízos de legalidade de juízos de oportunidade. Enquanto naqueles há interpretação, nestes há uma escolha entre alternativas igualmente válidas perante o Direito. Para o autor, “Os conceitos são, pois, objeto de interpretação cujo resultado apresenta apenas uma solução justa, enquanto que a discricionariedade pressupõe “(…)uma liberdade de eleição entre alternativas igualmente justas ou entre indiferentes jurídicos”[28]. Nesse sentido, esclarece que
Daí porque entendo serem extremamente reduzidas as chamadas margens de discricionariedade, que apenas se manifestam, única e exclusivamente, quando a lei, expressamente, as atribuir à administração. Por isso, também é que não pode nem deve o Poder Judiciário escusar-se ao exame da prática, pela administração, da aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, sob o pretexto de que esta, então, estaria a atuar no campo da discricionariedade. Note-se que, se adotada em sua plenitude a tese de que deva ele escusar-se ao exame dessa aplicação, seríamos forçados a concluir, v.g., ser despropositada e incabível a fixação pelo Poder Judiciário, em ações de desapropriação, dos valores de indenização a serem pagos aos desapropriados. Pois, se “justa indenização” é conceito jurídico indeterminado- e é- a adoção da tese teria de nos conduzir, forçosamente, à afirmação de que incumbe exclusivamente à administração, discricionariamente, fixar tais valores.[29]
A terceira corrente encontrada no Brasil é representada pela obra de Germana de Oliveira Moraes. Para a professora da Universidade Federal do Ceará, os conceitos indeterminados não se confundem com a discricionariedade, sendo que aqueles podem ser não vinculados ou vinculados. Estes seriam aqueles “(…)cuja aplicação conduz a uma única solução juridicamente possível, seja porque a indeterminação deriva da indeterminação da linguagem, seja porque a indeterminação resulta da contextualidade da linguagem e envolve uma avaliação atual, não-prospectiva das circunstâncias de fato presentes e concomitantes à incidência da norma[30]” Já a atividade administrativa não vinculada é
(…)aquela decorrente da concretização de normas que atribuem à Administração Pública certa margem de liberdade, seja para valorar e preencher os conceitos verdadeiramente indeterminados, mediante um juízo de prognose, seja para agir discricionariamente, mediante a ponderação comparativa de interesses, ora quando se procede à valoração e aditamento dos pressupostos de fato necessários à edição do ato administrativo(discricionariedade quanto aos pressupostos); ora quando decide se e quando vai editá-lo(discricionariedade de decisão); ora quando escolhe seu conteúdo, dentre mais de uma opção igualmente prevista pelo Direito, compreendido este como o conjunto de princípios e regras(discricionariedade de escolha optativa); ou ainda quando colmata o conteúdo do ato administrativo descrito com lacunosidade na lei (discricionariedade de escolha criativa)[31]
Germana Moraes parte de uma classificação dos conceitos indeterminados e limita a ocorrência de discricionariedade aos conceitos abertos que requeiram uma ponderação valorativa de interesses concorrentes, bem como aqueles que demandem um juízo de prognose. Quanto aos conceitos cuja incerteza decorre unicamente da linguagem, ou que seja a questão solucionável por uma avaliação atual das circunstâncias, estar-se-á diante de atividade vinculada.
A posição de Germana de Oliveira Moraes assume o risco de sofrer a crítica dirigida a todos os posicionamentos que apresentam classificações de conceitos. A imprecisão dos termos contidos nos preceitos jurídicos não pode ser, com alto grau de segurança, submetida a uma classificação a priori. Os elementos da realidade e os valores dignos de ponderação determinam, em cada caso concreto, a amplitude da situação problemática a ser resolvida com a utilização dos métodos de interpretação. Dessa forma, nada impede que diante de determinadas circunstâncias, um conceito supostamente dependente apenas de uma avaliação atual seja mais impreciso que aqueles à primeira vista indicadores de um conflito entre valores concorrentes. Não bastasse isso, o conflito latente na interpretação jurídica e o permanente choque de interesses fazem com que não se possam distinguir com extremo rigor as hipóteses de mera interpretação do sentido da norma daquelas em que se impõe uma ponderação de interesses.
Adiante, após ter sido feita uma breve análise da doutrina, passa-se ao estudo da jurisprudência, no que concerne ao controle da atividade administrativa baseada em conceitos indeterminados contidos nos preceitos de direito administrativo.
3. A amplitude do controle jurisdicional da aplicação de conceitos indeterminados pelo administrador na jurisprudência;
A jurisprudência brasileira não utiliza a chamada técnica dos conceitos indeterminados, de larga aceitação na Alemanha, cujo pressuposto teórico básico é a distinção entre hipótese e estatuição. Pela técnica, na hipótese, em virtude do princípio da legalidade, não se pode admitir liberdade para o administrador, de forma que os conceitos indeterminados nela contidos jamais gerarão discricionariedade.
Os tribunais pátrios costumam adotar, no controle da administração, uma prática discursiva variável, sem a fixação prévia de métodos considerados aptos à correta aplicação do direito, o que torna praticamente impossível uma tipificação das intensidades de controle, como se faz no direito francês, com a definição dos controles mínimo, normal e máximo. No Brasil, há uma disparidade no grau da interferência judicial sobre os atos administrativos determinada principalmente pelo critério de justiça considerado correto em determinado momento.
Há conceitos que a jurisprudência nunca indagou sobre a possibilidade ou não de controle e, em grande parte dos julgados, nem mesmo menciona a questão relativa a uma eventual atribuição de discricionariedade administrativa. São exemplos os numerosos julgados que envolvem pedidos de reforma de militares, com base em invalidez, nos quais os juízes não hesitam em concretizar o conceito de “incapacidade definitiva para os serviços Forças Armadas”, expressão esta que se torna problemática quando o pretendente ao benefício é considerado, por perícia judicial, “parcialmente incapacitado”. Não se tem notícia de julgados em que os magistrados colocam esta situação na “zona de penumbra” e, com base nisso, deixam à Administração a prerrogativa de avaliar se existem serviços cuja execução pelo militar seria satisfatória, mesmo com a incapacidade parcial, ou, pelo contrário, reconhecem a dificuldade e, mesmo assim, afirmam que os conceitos indeterminados são objeto de vinculação.
Outro conceito ao qual jamais se atribuiu a capacidade de gerar discricionariedade para o administrador é o de justo preço. Em matéria de desapropriação, os juízes utilizam perícias e outras provas que entendam cabíveis, a fim de chegar ao preço justo do bem expropriado e estabelecer o critério adequado de correção monetária. Na decisão abaixo, o Superior Tribunal de Justiça deixa clara a função do juiz de garantir o direito de propriedade em toda sua amplitude:
DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA. INDENIZAÇÃO JUSTA E PRÉVIA.CORREÇÃO MONETÁRIA. ÍNDICE DE ATUALIZAÇÃO DA MOEDA.A INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA, PARA SER JUSTA, DEVE SER CORRIGIDA MONETARIAMENTE. A CORREÇÃO MONETÁRIA CONSULTA AO INTERESSE DO PRÓPRIO ESTADO-JUIZ, A FIM DE QUE SUAS SENTENÇAS PRODUZAM, TANTO QUANTO VIÁVEL, O MAIOR GRAU DE SATISFAÇÃO DO DIREITO CUJA TUTELA SE LHE REQUER.CONSTITUINDO OFENSA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL, FIXAR-SE INDENIZAÇÃO, EM EXPROPRIATÓRIA, SEM A DEVIDA CORREÇÃO, INEXISTE ILEGALIDADE NA DECISÃO QUE, AFASTANDO A TR COMO FATOR DE ATUALIZAÇÃO, INDICA, DESDE LOGO, COMO ÍNDICE DE CORREÇÃO, O INPC, SEM QUE ESSA PROVIDÊNCIA POSSA SE ERIGIR EM JULGAMENTO “EXTRA PETITA”.[32]
A afirmação de que o conceito de justo preço é passível de controle pelo judiciário porque se refere a uma situação objetivamente verificável não explica por qual motivo os juízes avaliam, para a fixação da indenização, questões complexas e até mesmo dotadas de subjetividade, como o valor histórico ou artístico de um bem. Afora isso, até mesmo quanto ao critério de correção monetária é intrincada a tarefa de estabelecer o índice correto. Como explicar porque a justiça federal adota o IPCA-E e a justiça estadual do Rio Grande do Sul o IGP-M como fatores de correção, se estes deveriam apenas preservar o direito frente à depreciação do valor da moeda, e é sabido que os determinados índices, como o IGP-M são mais suscetíveis à variação do dólar, o que pode gerar uma desproporção entre o percentual apresentado e a realidade inflacionária no mercado interno?Afinal, qual o índice mais adequado? Portanto, o conceito de justo preço é notadamente indeterminado, e a amplitude de sua vagueza, se menor ou maior que a dos demais conceitos vagos, não justifica uma distinção entre estes.
Também o conceito de utilidade pública, em matéria de desapropriação, traz à tona o tema da relação entre discricionariedade e termos indeterminados. O referido conceito sugere alguns desafios, e isso porque:
1º) põe em questão a tese da vinculação da finalidade do ato, ante a constatação de que o único fim a ser vislumbrado com os parâmetros tradicionais de verificação da vinculação da atividade administrativa possui dimensão mediata, o que permite, no máximo, um controle negativo limitado ao desvio de poder; 2º) por se tratar de intervenção ablativa e atacar a esfera privada, traz à tona o imperativo da reserva de lei para a legitimidade de tais atos; 3º) Estando a competência legal relacionada com finalidade expressa por meio de conceitos indeterminados, a constatação de que estes geram discricionariedade pode acarretar a inobservância do princípio da legalidade, de maneira que o administrador poderá construir a hipótese que legitimará a concreta intervenção em relação aos cidadãos. Em tese, isto acarretará a violação dos postulados básicos do Estado de Direito referentes à racionalização da atividade administrativa e aos direitos fundamentais.[33]
A doutrina diverge sobre o caráter vinculado ou discricionário da aplicação do conceito de utilidade pública. José Carlos Moraes Salles, por exemplo, defende que “(…)no que concerne à ocorrência ou não da alegada utilidade pública, é amplo o controle a ser exercido pelo Poder Judiciário, porque se trata, aí, de verificar se o expropriante agiu dentro dos limites fixados pela Constituição e pela lei para promover a desapropriação”[34], embora admita uma certa limitação do controle jurisdicional. Os tribunais, por sua vez, têm recorrido ao consagrado desvio de finalidade para invalidar as apreciações feitas pela administração em matéria de utilidade pública, sendo de se registrar, contudo, que na decisão abaixo do Supremo Tribunal Federal foi assentado que a causa de utilidade pública invocada para o ato expropriatório deve constar em forma legal e ser de “manifesta compreensão”, idéia que indica a aceitação da interpretação, pelo juiz, do conceito indeterminado. A ementa foi redigida nos seguintes termos:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DECRETO MUNICIPAL QUE DECLAROU DE UTILIDADE PÚBLICA, PARA DESAPROPRIAÇÃO, TERRENOS E BENFEITORIAS, TIDOS COMO NECESSÁRIOS À CONSTRUÇÃO DE VIA DE ACESSO FERROVIÁRIO ENTRE ESTABELECIMENTO PARTICULAR E A ESTRADA DE FERRO CENTRAL DO BRASIL.
Ação ordinária de nulidade do Decreto. Alegação de tratar-se de desapropriação, exclusivamente, em benefício e proveito de empresa privada, com fins lucrativos.
(…)
A simples construção de um acesso ligando o parque industrial de empresa particular à Estrada de Ferro, por si só, não indica ou induz existência de utilidade pública, mas, sim, de utilidade privada. Hipótese em que não há falar em abertura, conservação e melhoramento de via ou logradouro público, nem em meio de transporte ferroviário coletivo, como serviço à comunidade, eis que expresso, no próprio Decreto e sua motivação, que o ato expropriatório se destina “a construção de uma via de acesso ferroviário entre a Companhia Mineira de Cimento Portland S.A – Cominci e a Estrada de Ferro Central do Brasil”.
Ao Poder Executivo interdita-se considerar de utilidade pública, para fins de desapropriação, situações não definidas em formas legais ou que, nestas, não sejam de manifesta compreensão. Precedentes do STF.
No caso concreto, releva destacar que, após a imissão provisória na posse, desde logo, o uso dos bens expropriados se fez em favor da empresa privada, que, por sua iniciativa, neles principiou as obras de construção do ramal ferroviário, de seu exclusivo interesse.(…)[35]
Outras situações denotam uma crescente preocupação com o controle da concretização de conceitos indeterminados. O Supremo Tribunal Federal invalidou decisão administrativa que considerou descaracterizar o requisito de idoneidade moral de candidato ao cargo de escrivão de polícia o fato de aquele ser réu em ação penal, tendo entendido a Corte que “Surge motivado de forma contrária à garantia constitucional que encerra a presunção da não-culpabilidade ato administrativo, conclusivo quanto à ausência de capacitação moral, baseado, unicamente, na acusação e, portanto, no envolvimento do candidato em ação penal”[36]. Embora não tenha o Tribunal expressamente afirmado, constata-se que, ao entender que a motivação do ato atentou contra um direito fundamental, exclui do núcleo essencial do conceito de “inidoneidade moral” a situação de estar-se respondendo a processo criminal, de forma que a referida adjetivação demanda a existência de outras notas conceituais.
Em determinadas oportunidades, de acordo com os fatos e o grau de indeterminação dos conceitos que se apresentam, os Tribunais chegam a realizar a interpretação e negam o nexo entre liberdade e vagueza dos conceitos, como já decidiu o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, ao afirmar que “[…]A expressão requerimento devidamente justificado, empregada pelo Decreto nº 952/93, como conceito indeterminado, exigia interpretação, mas não outra norma(regulamento de regulamento que lhe explicitasse o sentido”[37], e que “[…]interpretação por norma regulamentar não tem mais autoridade que qualquer outra; só o Poder Judiciário interpreta a lei incontrastavelmente”[38].
De todo modo, prevalece o entendimento de que a discricionariedade não decorre apenas de remissão legal, e que “A competência discricionária deve resultar de lei, mas pode ser inferida de sua interpretação sistemática”[39]. Em virtude disso, as imprecisões conceituais acabam por representar uma autêntica fonte de poder discricionário, ainda que esteja este fique sujeito ao controle jurisdicional. Em linhas gerais, os juízes brasileiros, nos mais das vezes, exercem um controle mínimo sobre a aplicação de conceitos indeterminados e evitam controlar a valoração dos fatos, bem como o sentido das expressões vagas. A valoração é incluída, para grande parte e jurisprudência, na conveniência e oportunidade, e indagada somente nos limites do desvio de poder e da teoria dos motivos determinantes, com o controle da existência dos fatos e a pertinência destes com a hipótese legal. Ilustrativa é a decisão a seguir citada, que considerou discricionária a atribuição de proibir a pesca, com a finalidade de atender às “peculiaridades regionais” e proteger a “fauna e flora aquáticas”:
ADMINISTRATIVO. MEDIDAS DE DEFESA AMBIENTAL. PROIBIÇÃO DA PESCA EMBARCADA NO PERÍODO DA PIRACEMA. DISCRICIONARIEDADE DO ADMINISTRADOR. ATO MOTIVADO. CONTROLE JUDICIAL DE MÉRITO LIMITADO À RAZOABILIDADE.
I- Nos termos do art. 33, §2º, do Decreto-lei 221/67, “a pesca pode ser transitória ou permanentemente proibida em águas de domínio público ou privado”.
II- A Lei nº 7.679/88, art. 2º, também prevê que “o Poder Executivo fixará, por meio de atos normativos do órgão competente, os períodos de proibição da pesca, atendendo às peculiaridades regionais e da para proteção da fauna e flora aquáticas, incluindo a relação de espécies, bem como as demais medidas necessárias ao ordenamento pesqueiro”.
III- em se tratando de ato administrativo predominantemente discricionário, o controle judicial de mérito está limitado à razoabilidade.
IV- Vai além desse limite sentença em que o juiz substitui o administrador na escolha entre o interesse ambiental, que envolve, inclusive, a questão da sobrevivência de gerações futuras, e o interesse social e econômico de um grupo restrito de pescadores.[40]
O controle da aplicação de conceitos indeterminados, realizada no exercício de atribuição discricionária no entendimento majoritário da jurisprudência é efetivado, habitualmente, com a aplicação de princípios jurídicos[41], pois a liberdade do administrador não é considerada espaço estranho ao direito. Em questões relativas ao poder de polícia, por exemplo, tem larga aplicação o princípio do devido processo legal em sentido processual, como em decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, na qual se anulou ato administrativo de Prefeitura Municipal que determinou a retirada em 24 horas de construção onde funcionava a título precário um camelódromo, por entender que o procedimento, ao não oportunizar a participação do interessado, violou o direito ao contraditório e à ampla defesa do administrado[42]. Há também casos em que se lançou mão do princípio da proporcionalidade, a fim de delimitar o exercício do poder de polícia, como no seguinte julgado:
MANDADO DE SEGURANÇA INTERDIÇÃO DE ESTABELECIMENTO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DISCRICIONARIEDADE DESTA QUE NÃO É ABSOLUTA, DEVENDO AGIR NOS LIMITES DA LEI SEGURANÇA CONCEDIDA RECURSO DESPROVIDO.
É certo que a Administração Pública dispõe do poder de polícia, o qual atribui à mesma a faculdade de disciplinar e restringir, em favor do interesse público ou do próprio Estado, direitos e liberdades individuais.
Entretanto, essa discricionariedade deve estar de acordo com a lei, bem como ser proporcional à infração cometida, não sendo admissível, como no caso, interdição de estabelecimento por agentes da saúde que deram prazo imediato para cumprimento das condições exigidas.[43]
O Tribunal invalidou decisão administrativa que interditou estabelecimento comercial sob a alegação de descumprimento das normas de saúde pública. Conquanto tenha reconhecido que o poder da administração é amplo em relação a limitações de higiene e segurança, o julgador valorou as circunstâncias de fato envolvidas e considerou que “(…)as irregularidades encontradas não são de molde a ensejar a aplicação da mais dura das penas, a interdição”[44], além do que “Cabia aos agentes da vigilância sanitária oferecer prazo razoável para que fossem sanadas as irregularidades”[45]. Conclui, ainda, ser “(…) arbitrário o ato dos fiscais sanitários, que interditaram o estabelecimento do impetrante, sem qualquer procedimento administrativo que pudesse conferir-lhe defesa, ou oportunidade de cumprir as condições exigidas”[46]. O fundamento expresso da decisão foi a violação do devido processo legal em sentido processual, muito embora o raciocínio jurídico que efetivamente levou o julgador a anular o ato administrativo tenha sido a valoração das circunstâncias relevantes a partir da adequação entre meios utilizados e fins estabelecidos para o ato.
Em relação ao princípio da proporcionalidade como instrumento de controle e a exigência de adotar-se o meio menos gravoso para os direitos dos particulares, além do imperativo de existência de motivo determinante para a edição do ato administrativo, entendeu a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que:
5. Apelações e remessa oficial improvidas.[47](grifo nosso)
Os preceitos jurídicos que atribuem à administração pública o poder de polícia recorrem, freqüentemente, a conceitos indeterminados, ante a impossibilidade de definirem-se, ex ante, todas as circunstâncias nas quais se requer a ação administrativa. Por tal motivo, é corriqueiro encontrar-se nas legislações expressões como “ordem pública”, “preservação da saúde pública”, “interesse coletivo”, entre outras, que demandam uma ponderação frente ao caso concreto. A relação entre liberdade do administrador e imprecisão dos conceitos reconhecida pela jurisprudência pode trazer incômodos ao órgão controlador, que diante de uma injustiça pode ter que reconhecer a prerrogativa de avaliação do administrador e negar o controle. Os tribunais têm procurado evitar essa situação com o recurso aos princípios jurídicos, cuja aplicação, no entanto, implicam interpretação dos conceitos vagos e correção do sentido atribuído pelo administrador. Raramente, entretanto, os juízes admitem que em certos momentos efetivamente interpretam os conceitos e avaliam a ponderação do administrador público.
A jurisprudência passou por um processo evolutivo quanto ao controle da administração pública. Originariamente, o judiciário recorria largamente ao conceito de mérito para restringir o controle dos atos administrativos, em respeito à liberdade de apreciação conferida ao agente público. Essa forte limitação é explicada por Vitor Nunes Leal:
Enquanto, nos Estados Unidos, a tradição colonial do common law, levada pelos inglêses, e que conferia ao juiz um papel de co-criador do direito positivo, contribuía para dilatar a competência do judiciário após a independência, entre nós, a tradição imperial do direito escrito e da quase imunidade da administração pública em face do Judiciário operava em sentido inverso, levando o poder judiciário republicano a restringir sua interferência no campo da atividade administrativa. Certamente, trata-se, aqui, de fatos e não de princípios, mas em tôda parte a tradição se incorpora, consciente ou inconscientemente, aos demais fatores determinantes dos princípios jurídicos, e o Brasil não constitui exceção.[48]
A passividade do judiciário frente à atividade administrativa foi sendo superada com o reflexo, nas decisões, da nova posição da doutrina em relação à discricionariedade, que passou a ser caracterizada como uma margem de liberdade demarcada por regras e princípios jurídicos. A partir daí, o chamado mérito administrativo, noção mantida pela jurisprudência para designar o âmbito de conveniência e oportunidade da ação administrativa, teve seu espaço restringido em detrimento de um conceito de discricionariedade informado por uma defesa da racionalização da atividade administrativa até mesmo diante da liberdade para a seleção dos pressupostos de aplicação do preceito jurídico. E, sendo atividade racionalmente ordenada por princípios jurídicos, mostra-se admissível o controle jurisdicional, em virtude da existência de elementos extraídos do sistema jurídico para a apreciação dos atos praticados pelos agentes públicos.
Portanto, os conceitos indeterminados, no direito brasileiro, não serviram de apoio para a construção de uma nova técnica de controle, ao contrário do que ocorreu na Alemanha e na Espanha. Os autores brasileiros e também a jurisprudência, cuja influência histórica advém das lições francesas- com a adoção de pressupostos como a teoria do ato administrativo, o desvio de poder, a supremacia da administração, a teoria dos motivos determinantes, e o princípio da moralidade- mantiveram o conceito amplo de discricionariedade, entendido como uma remissão expressa ou implícita da lei[49]. Registre-se, todavia, que, afora certos fragmentos, o direito administrativo pátrio jamais conseguiu sistematizar o controle da administração conforme sua intensidade. Atualmente, é penosa a tarefa de elucidar o comportamento dos tribunais frente ao controle dos atos administrativos, inclusive nos casos de remissão expressa, já que a demarcação da vinculação, da discricionariedade, do mérito e do próprio âmbito de aplicação dos princípios jurídico-administrativos não se mostra com clareza.
4. Considerações finais;
A inserção dos conceitos indeterminados no plano da discricionariedade ou da vinculação causava, em tempos longínquos, efeitos radicalmente diversos na definição da intensidade do controle jurisdicional da administração pública. Com o tempo, a distância foi amenizada, e isso porque o próprio conceito de discricionariedade foi reformulado e cada vez mais aproximado da idéia de vinculação, diante da sua redefinição como uma atribuição conferida por lei para que o administrador adotasse a solução consentânea com o interesse público. Sainz Moreno comenta essa perda da relevância da diferença entre a aplicação de conceitos indeterminados e discricionariedade, ao se integrar a última totalmente na esfera da execução da lei[50]. Adverte, no entanto, que a “[…]chamada ‘superação da concepção tradicional da discricionariedade’ não é outra coisa que a negação da discricionariedade e sua substituição por uma certa margem de confiança que se atribui à Administração para que resolva a aplicação de noções jurídicas mais ou menos difíceis”[51].
De fato, o esforço feito para conciliar a juridicidade da atividade administrativa e a preservação da liberdade do administrador, aliada à dificuldade teórica da fixação de parâmetros seguros de controle, induziram grande parte da doutrina a remeter a discricionariedade administrativa para um hipotético plano cognitivo, no qual o agente público indicaria a alternativa adequada ao interesse público, na exata medida da finalidade prevista em lei. Essa posição teórica, embora possa satisfazer, em tese, os desígnios de completa racionalização da atividade estatal e submissão plena ao direito, cria uma ficção equivalente àquela edificada pela pandectística e sua crença na ordenação lógica e hermética do sistema jurídico, em que a interpretação contentava-se com a mera subsunção.
Ao se reduzir a discricionariedade(no plano teórico) a tal ponto que se mostra dificultosa até mesmo sua distinção da vinculação, sonega-se uma informação essencial para o direito público: a de que o Estado de Direito admite uma pluralidade de concretizações, variáveis de acordo com a posição política dos titulares do poder administrativo. E, se é certo que grande parte da atividade administrativa está determinada pela lei e por práticas legitimamente consolidadas, de forma, inclusive, que os agentes públicos de carreira tenham o dever de cumprir uma série de tarefas independentemente da vontade do mandatário eleito pelo povo, não é menos correto que, em certas oportunidades, previstas em lei, o administrador realiza uma avaliação que não se limita a uma aplicação metódica do direito. Nessas hipóteses, o administrador, autorizado pela lei, decide com base em critérios que não merecem correção judicial pela razão de que não interessa ao direito tolher a liberdade de conformação administrativa, salvo na excepcional utilização abusiva do poder concedido.
Desta maneira, e.g., é discricionário o poder da administração pública para estabelecer o “(…)momento de realização da licitação, do seu objeto, da especificação de condições de execução, das condições de pagamento(…)”[52]. Será vinculada sua atividade, todavia, para verificar se há caso de dispensa ou inexigibilidade de licitação, e os conceitos indeterminados contidos na Lei nº 8.666/93 serão todos objetos de concretização metodicamente organizada e racionalmente fundamentada, para que tanto o controlador quanto a coletividade possam conhecer as razões jurídicas que justificam a ação da administração. As incertezas da linguagem e aquelas decorrentes do caso concreto serão solucionadas pela ponderação, e a ausência de univocidade não deve ser obstáculo para a instituição de um processo argumentativo cujo enfoque privilegiado é o questionamento da legitimidade ou não do ato administrativo. O exemplo da lei de licitações, ressalte-se, é válido para a totalidade do direito administrativo e a aceitação do paradigma teórico ventilado traria benefícios para a própria segurança jurídica, como se constatará.
A maneira como o controle é realizado por parte significativa da jurisprudência não consegue mostrar, tanto para o administrador quanto para o cidadão, as diretrizes impositivas de ação do administrador e os critérios de julgamento adotados pelo poder judiciário. O recurso aos princípios jurídicos varia conforme o direito posto em causa e aqueles são utilizados, em muitas decisões, sem um esclarecimento prévio do âmbito de aplicação de cada um deles. É comum a referência pelos julgados a vários princípios jurídicos, indicados unicamente como artifícios argumentativos para justificar uma decisão já tomada, pautada em critérios subjetivos. Por outro lado, é rara a sentença que define os critérios de incidência de princípios como a imparcialidade, a eficiência, a razoabilidade, e a proporcionalidade[53].
O recurso excessivo aos princípios, como panacéia argumentativa para todos os casos difíceis, abala a confiança dos setores controlados e dos administrados na capacidade do poder judiciário fazer justiça. Além do mais, ao manter pouca distância entre discricionariedade e vinculação, não apresenta para o agente público um quadro seguro para sua atuação. É correto que a vinculação, ao invés de representar a univocidade da lei(já que a divergência de sentido é corriqueira), signifique a imposição dirigida ao administrador para que aplique o preceito jurídico conforme os métodos consolidados pelo direito e tome a solução correta perante a situação concreta.Essa operação de interpretação/aplicação, plenamente motivada, por sua vez, é submetida ao controle jurisdicional, o que não significa, entretanto, que o magistrado possa, sem razões justificadas, afastar a decisão administrativa, dotada de presunção de legitimidade. A invalidação de ato administrativo somente é cabível quando haja substancial comprovação de sua incompatibilidade com o sistema jurídico.
A discricionariedade, por sua vez, denota o real espaço de liberdade destinado ao administrador pela lei. Nesse espaço de atuação, pode o administrador decidir conforme razões de conveniência e oportunidade, cuja repreensão judicial apenas é admitida na ocorrência de uso abusivo do poder.
A redução do espaço da discricionariedade, portanto, não é a consagração de um controle sem limites. Apenas deixa claro quando o administrador deve ponderar e expressamente fundamentar sua ponderação, e em que momentos o agente pode decidir conforme um juízo de conveniência e oportunidade. Dessa forma, evita-se o controle de intensidade irregular e sem pressupostos prévios claramente estabelecidos, e se sinaliza para o administrador, definitivamente, que sua tarefa de administrar é orientada pelo direito e com base neste deve ser fundamentada, sem prejuízo de sua liberdade, garantida nos termos da legislação.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina(UFSC). Auditor Substituto de Conselheiro do Tribunal de Contas de Santa Catarina. Professor do Curso de Especialização em Direito das Faculdades Atlântico Sul.Ex-Procurador Federal. Autor do livro “Discricionariedade administrativa:conceitos indeterminados e aplicação”, publicado pela editora Juruá.
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