O devido processo legal e seu sentido único

Resumo: O fenômeno da constitucionalização do Direito, identificado primeiramente pelos civilistas brasileiros, alcançou também o direito processual civil. O catálogo de direitos fundamentais (art. 5º da CRFB) está repleto de garantais processuais fundamentais, dentre as quais a do devido processo legal. A compreensão do princípio do devido processo legal enquanto direito fundamental o faz recobrar um sentido único, que, por sua vez, acarreta uma nova compreensão do próprio processo civil brasileiro.


Sumário: 1. A constitucionalização do processo; 2. A origem e o desenvolvimento do princípio do devido processo legal;3. O direito fundamental ao devido processo legal; 4. Conclusão; 5. Referências bibliográficas.


1. A constitucionalização do processo.


Ainda que de forma tardia, o direito brasileiro vivenciou o fenômeno, assim identificado pelos civilistas pátrios, da constitucionalização. Como não poderia deixar de ser, os efeitos deste fenômeno não se limitaram ao âmbito do direito privado, ainda que nesta seara as transformações decorrentes desta nova forma de compreender o direito tenham provocado uma mudança radical[1]. Pode-se afirmar sem hesitações que todos os ramos do direito sentiram seus efeitos e dentre eles também o direito processual civil.


Para se identificar o fenômeno da constitucionalização é preciso atentar para as cinco formas por meio das quais ele pode se manifestar: A primeira delas diz com a previsão expressa de institutos, princípios e regras jurídicas próprias dos respectivos ramos do direito infraconstitucional na Constituição. Outra forma, não menos importante, é a reprodução nos Códigos de preceitos constitucionais. A terceira forma manifesta-se quando somente a Constituição regula a matéria e dá-se através da aplicação direta dos dispositivos constitucionais pertinentes. O uso, pela legislação infraconstitucional, de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, ambos carecedores da atividade interpretativa para ganhar concreção, também se identifica como uma das formas do fenômeno de constitucionalização, pois impõem ao intérprete, diante do caso posto sob apreciação, a concretização de tais cláusulas e conceitos em conformidade com os valores constitucionais. Finalmente, a quinta forma de manifestação do fenômeno é justamente a interpretação das normas infraconstitucionais à luz dos preceitos constitucionais.


Atentando para o direito processual civil brasileiro contemporâneo não restam dúvidas de que o fenômeno da constitucionalização também lhe atingiu, pois as cinco formas por meios das quais é possível identificar a sua manifestação se fazem presentes. Contudo, neste estudo, a atenção deve cingir-se de um modo todo especial sobre a primeira forma de constitucionalização apontada acima, ou seja, sobre a consagração de certos institutos, regras e princípios essencialmente processuais no texto constitucional. O que terá pretendido o legislador constituinte ao contemplar expressamente no texto constitucional certas normas processuais?


Note-se que não se está aqui a falar naquelas normas constitucionais que prevêem a competência dos juízes federais, estaduais e dos Tribunais ou nas normas que regulam o procedimento de controle de constitucionalidade, enfim, normas de caráter tipicamente processual. Está-se falando de outras normas também tipicamente processuais, contudo, não meramente instrumentais, mas substanciais. Está-se a falar nas normas basilares do direito processual assim identificadas pela maciça maioria dos processualistas: o princípio do devido processo legal e seus corolários constitucionalmente consagrados[2].


A pergunta que se coloca, nesse sentido, é: O que terá pretendido o legislador constituinte ao contemplar expressamente no texto constitucional o princípio do devido processo legal? Note-se que é na Constituição de 1988 que o princípio é consagrado pela primeira vez de forma explícita. Até então, o princípio era deduzido do texto constitucional, por esforço interpretativo dos intérpretes, que o entendiam como implícito em outras disposições constitucionais.


Antes de se responder a pergunta formulada, todavia, parece oportuno entender a origem do princípio do devido processo legal.


2. A origem e o desenvolvimento do princípio do devido processo legal


A origem do princípio do devido processo legal remonta ao direito medieval inglês. O princípio foi pela primeira vez consagrado em um documento escrito no limiar do século XIII. Trata-se da Magna Carta de 1215, assinada pelo rei João “Sem Terra” em favor dos barões feudais saxônicos.


No artigo 39 daquele documento, sob a designação law of the land[3], contemplou-se o princípio do devido processo legal que se consolidaria através dos séculos, inclusive, erigindo-se a dogma processual de ordenamentos jurídicos de tradição bastante distinta da anglo-saxã.


O artigo 39 da Magna Carta dispunha: “No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other way, nor wil we proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful judgement of his equals or by the law of the land”[4].


Observa-se que o dispositivo funcionava como garantia apenas dos direitos dos homens livres. Restava assegurada inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e, sobretudo, à propriedade, os quais só poderiam ser suprimidos por meio da law of the land, isto é, por meio do direito comum formulado e consolidados através dos precedentes judiciais.


É preciso ter em conta, contudo, que neste período o direito comum (common law) resultante da atividade judicial tem um peso maior do que terá após a Revolução Gloriosa. Ocorre que, após a Revolução Gloriosa (1688), afirma-se o princípio da soberania parlamentar[5] e, portanto, o Parlamento, diferentemente do que pretendiam os revolucionários ligados aos ideais de Sir Edward Coke[6], não necessitaria atuar apenas de forma subsidiária à atividade jurisdicional e, tampouco, estaria vinculado ao ponto de não contrariar o direito comum formado pelos precedentes judiciais; ao contrário, ao Parlamento foi reconhecida a soberania para editar as chamadas leis constitucionais[7]. Nesse sentido, merece destaque o fato da Constituição britânica ter duas faces: De um lado, a Constituição histórica, a qual abrange os costumes e os direitos criados pelos juízes; de outro, as leis constitucionais aprovadas pelo Parlamento. Observa-se, entretanto, que neste período, em decorrência de uma tradição histórica e de um forte consenso social construído através dos tempos sobre a distinção entre o domínio da Política e do Direito, afirmou-se um espaço próprio para atuação do Poder Legislativo e um espaço próprio para atuação do Poder Judiciário. Até os dias atuais, ao Poder Legislativo cabe às deliberações políticas e ao Poder Judiciário, às decisões jurídicas. Diante de tais peculiaridades, forma-se naquele país um sentido todo próprio de supremacia de Direito. O Estado constitucional de Direito britânico (Rule of Law), conforme lição de Canotilho, significa:


“Em primeiro lugar, na seqüência da Magna Charta de 1215, a obrigatoriedade da observância de um processo justo legalmente regulado, quando se tiver de julgar e punir os cidadãos, privando-os da sua liberdade e propriedade. Em segundo lugar, Rule of Law significa a proeminência das leis e costumes do “país” perante a discricionariedade do poder real. Em terceiro lugar, Rule of Law aponta para a sujeição de todos os actos do executivo à soberania do parlamento. Por fim, Rule of Law terá o sentido de igualdade de acesso aos tribunais por parte dos cidadãos a fim de estes aí defenderem os seus direitos segundo os princípios de direito comum dos ingleses (Common Law) e perante qualquer entidade (indivíduos ou poderes públicos)”.[8]


Destarte, conclui-se, que o princípio do devido processo legal vem a se constituir em peça fundamental para o modelo britânico de supremacia do Direito, afinal em uma tradição em que a fonte primária do direito é o precedente judicial, a legitimação do direito produzido necessariamente acaba por ser uma legitimação procedimental. Conforme ressalta Daniel Mitidiero, “o instrumento técnico para a construção do jurídico é o processo, operando o direito com o emprego da cláusula do due process of law”[9].


Merece especial atenção, contudo, o fato da cláusula do due process of law ter migrado para as colônias inglesas da America do Norte, sendo incorporada às declarações de direitos de diversas colônias como uma garantia contra o arbítrio do poder estatal. Foi o caso das declarações de direitos da Virgínia (16 de agosto de 1776), de Delaware (02 de setembro de 1776), de Maryland (03 de novembro de 1776), da Carolina do Norte (14 de dezembro de 1776), do Estado de Vermont (08 de julho de 1777), bem como da Constituição de Massachusetts (05 de outubro de 1780) e do Bill of rights que inaugurava a Constituição do Estado de New Hampshire (2 de junho de 1784). Note-se que em todas elas é feita referência expressa ao law of the land[10].


Em momento posterior, por ocasião da elaboração da Constituição norte-americana, a cláusula foi consagrada na 5ª e 14ª emendas à Constituição.


A consagração da cláusula do due process of law na experiência norte-americana, cujo modelo de supremacia do Direito, apesar de ser inspirado no modelo inglês, é deste bastante distinto, fortaleceu-a ainda mais.


Ocorre que nas colônias norte-americanas a doutrina de Lord Coke vingou, bem como o modelo vivenciado pela Inglaterra até a Revolução Gloriosa. Os Estados Unidos, de fato, construíram um modelo de supremacia do Direito baseado no Poder Judiciário. A existência de uma Constituição escrita[11] e da crença neste “pacto de fundação” permitiu o desenvolvimento do controle difuso de constitucionalidade das leis.


Esta assertiva não pretende contradizer o afirmado até o presente momento, sugerindo que na Inglaterra não haja supremacia do Direito ou que o seu Poder Judiciário é um poder fraco. Não seria essa a conclusão correta. Está-se aqui tentando demonstrar as conseqüências advindas da existência de uma Constituição escrita. Na Inglaterra por certo o poder também é limitado pelo Direito, sobretudo, pelos costumes e pelas práticas constitucionais. O que não há é um conceito de supralegalidade decorrente da noção de uma Constituição escrita cuja reforma só é viável por meio de um processo legislativo mais solene.


Maurice Hauriou distingue bem ambas situações. Segundo o autor, tanto os Estados Unidos da América, quanto à Inglaterra, caracterizam-se por ser um Estado de Direito em decorrência da submissão ao juiz. Nos dois países são dados os mesmos poderes aos juízes no que toca a aplicação do Direito – somente os juízes o aplicam –, todavia, não têm os mesmos poderes no que toca à criação do Direito. Na Inglaterra os juízes são encarregados da criação do Direito consuetudinário (commom law), mas, desde a afirmação do princípio da soberania do Parlamento, não gozam mais do poder de controle sobre a criação da lei escrita (statute law). Nos Estados Unidos, ao contrário, os juízes não apenas conservaram o poder de criação do Direito, como também adquiriram o controle sobre a criação da lei escrita[12].


O modelo de controle de constitucionalidade das leis nos Estados Unidos não poderia ser outro, portanto, senão o modelo difuso. Todo e qualquer juiz pode apreciar a constitucionalidade de uma norma, sempre que assim se faça necessário no caso concreto, afinal, é todo o Poder Judiciário – e não apenas um único órgão seu – que tem a competência de guardar a Constituição.


Para alguns doutrinadores a experiência norte-americana é a experiência do governo dos juízes, porém para outros ela é a experiência da afirmação do princípio da soberania popular, na medida em que é qualquer um do povo que desencadeará o controle de constitucionalidade da norma e não o juiz por si próprio. Deixadas de lado tais considerações, o que realmente é objeto de interesse no presente estudo é que:


“No Rule of Law não há lugar para o princípio da legalidade, o princípio rival do due process. Quem estuda a common law nada encontra sobre ele, especialmente até a primeira guerra mundial. Agora pode-se entender bem a razão. No common law, os statutes estão sujeitos ao judicial review e ao rule of exclusion. Em virtude desses poderes do juiz, a exigência de se obedecer ao ato legislativo (que n, no Continente, se aproxima do princípio da legalidade) resolve-se na esfera do due process. Com efeito, é o due process que vai definir os termos em que subsiste a obrigação de obedecer a um ato legislativo. Portanto, é o due process o princípio primeiro do Rule of Law. A legalidade – se é que existe no common law – subsume-se como um aspecto do princípio, amplo e configurador do processo devido[13].”


Tem-se, portanto que o devido processo legal traduz, na sua origem, um modelo de limitação do poder estatal, através de sua submissão ao Direito.


3. O direito fundamental ao devido processo legal


Retornando a indagação formulada no início do estudo, tomando em consideração a origem e desenvolvimento da cláusula do “due process of law”, podemos afirmar que o legislador constituinte ao consagrar este princípio processual no corpo do texto constitucional, especificamente no catálogo de direitos fundamentais, o quis explicitá-lo como um direito fundamental dos indivíduos[14], gozando de todas as características e prerrogativas atribuídas a tais direitos.


Vale ressalvar, contudo, que, independentemente da consagração explícita do princípio pelo poder constituinte no rol dos direitos fundamentais, ele já o seria assim considerado em virtude da cláusula de abertura do catálogo a outros direitos materialmente fundamentais (art. 5º, § 2º, da CF[15]). Todos aqueles direitos que dizem com os atributos da dignidade humana e que protegem a esfera particular dos indivíduos contra as arbitrariedades do Estado podem ser considerados materialmente constitucionais, ainda que não estejam explicitamente expressos na Constituição, passando a gozar de especial proteção.


Os direitos fundamentais, conforme assente na doutrina, possuem uma dupla dimensão: dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva.


Os direitos fundamentais, segundo a sua dimensão subjetiva, são pensados sob o ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são titulares em face do Estado, para dele se defenderem ou postulares atuações positivas [16].


Por outro lado, o reconhecimento de uma dimensão objetiva decorre da necessidade de se compreender os direitos fundamentais para além da perspectiva individual. Antes de serem direitos oponíveis ao Estado, valem do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a perseguir, seja através da atuação estatal, seja através das atividades dos particulares.


Note-se que, pois, conforme leciona Vieira de Andrade que:


“Por uma lado, no âmbito de cada um dos direitos fundamentais, em volta deles ou nas relações entre eles, os preceitos constitucionais determinam espaços normativos, preenchidos por valores ou interesses humanos afirmados como bases objectivas de ordenação da vida social. Por outro lado, a dimensão objetiva também é pensada como estrutura produtora de efeitos jurídicos, enquanto complemento e suplemento da dimensão subjetiva, na medida em que se retiram dos preceitos constitucionais efeitos que não se reconduzem totalmente às posições jurídicas subjectivas que reconhecem, ou se estabelecem deveres e obrigações, normalmente para o Estado, sem a correspondente atribuição de direitos aos indivíduos. A dimensão objetctiva reforçaria, assim, a imperatividade dos direitos individuais e alargaria a sua influência normativa no ordenamento jurídico e na vida da sociedade[17].”


A partir de ambas as dimensões reconhecidas ao direito fundamental ao devido processo legal, não haveria necessidade da consagração de nenhuma outra garantia processual na lei maior. Todas as demais normas principiológicas poderiam ser deste depreendidas. Contudo, a opção do legislador constituinte não foi esta e outros corolários do princípio foram previstos no texto constitucional de forma expressa. Este fato pode ser compreendido como a forma encontrada pelo constituinte de enfatizar a importância destas garantias, frente ao Judiciário e a Administração Pública, conforme sugere Cristina Reindolff da Motta[18].


Certo é que se pode afirmar que existe no direito processual brasileiro, pois, um sistema constitucional principiológico de garantias processuais que ilumina todo o sistema processual infraconstitucional. E, mais, estas garantias processuais fazem parte da essência daquilo que é o Estado Democrático de Direito, não havendo possibilidade de se pensar o direito processual como um direito meramente instrumental.


É preciso ter mente que muitos dos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, sejam eles negativos ou positivos, só se concretizam e são exercitados por seus titulares por meio de um processo e, portanto, o direito fundamental ao devido processo legal recobra uma importância ainda maior em um Estado Democrático de Direito.


Vieira de Andrade identifica, para além da existência de um direito fundamental ao processo (como, por exemplo, o são o direito de acesso aos tribunais, o direito de habeas corpus, entre outros), direitos dependentes de um processo ou procedimento, cujo exercício individual do direito só é possível através de uma organização e segundo um processo ou procedimento (como, por exemplo, o direito de sufrágio e a necessidade de um procedimento eleitoral mais ou menos complexo). O autor aponta, ainda, a existência de direitos, que embora o exercício não fosse, em rigor, impossível, sem um procedimento ou um processo, a Constituição ou a lei entendem estes necessários, seja para determinar se o direito existe no caso concreto, seja para permitir a resolução de problemas de colisão com outros direitos ou de conflito com valores comunitários, situação a que o doutrinador denomina direitos sujeitos a um procedimento ou processo. Finalmente, o autor identifica a existência de direitos fundamentais de cunho procedimental, que seriam “aqueles direitos ou faculdades cujo exercício ou cumprimento impliquem a participação de outrem, em especial quando sejam direitos a prestações, que não são pensáveis sem uma organização e um procedimento, ainda que estes possam ser de dimensão e intensidade muito diversas”, e direitos afetados por um procedimento ou processo como é o caso do direito de propriedade perante um processo de expropriação.


De tal sorte, observa-se que o processo sofre intensa irradiação normativa dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que, apenas ele, observando o direito fundamental ao devido processo, irá garantir, em muitas situações, a efetividade de outros direitos fundamentais inerentes à dignidade humana.


4. Conclusão


Diante do exposto, o direito fundamental ao devido processo legal recobra um sentido próprio e unívoco. Não há que se falar em princípio do devido processo legal em sua vertente substancial e adjetiva. A acepção adjetiva do princípio está integralmente abrigada pela sua compreensão substancial. Note-se que a preocupação em definir previamente o conteúdo exato e delimitado do devido processo legal não deve se colocar mais a partir da perspectiva de compreensão de tal princípio enquanto direito fundamental.


No que toca aos direitos fundamentais o esforço da doutrina deve ser apenas de identificar o núcleo essencial de tal direito, o qual não poderá ser violado. Como qualquer outro direito fundamental, o direito fundamental ao devido processo legal, além de admitir uma intervenção restritiva por parte do legislador, estará sob reserva de ponderação, podendo ser balanceado com outros direitos igualmente fundamentais diante do caso concreto, sempre observado o postulado da proporcionalidade e sem que nunca seja anulado na sua intregalidade.


Nesse sentido, é suficiente concluir que o núcleo essencial do direito fundamental ao devido processo legal diz com a exigência de um processo que atente para as garantias fundamentais estabelecidas porque decorrentes da dignidade humana e inerentes a um Estado Democrático de Direito. Não se ignora que a afirmação formulada seja um tanto quanto vaga, mas não poderia ser diferente. Aquilo que são as exigência e garantias constitucionalmente estabelecidas porque decorrentes da dignidade humana, por certo, não variam no tempo. Por outro lado, aquilo que são as exigências e garantias inerentes a um Estado Democrático de Direito pode variar através dos tempos, cabendo ao intérprete, sobretudo, ao constitucional, orientado pelo ethos jurídico dominante, determinar quais garantias que em um dado momento histórico se revelam essenciais ao Estado Democrático de Direito, sob pena de, se violadas, o Estado de Direito se descaracterizar, deixando emergir o arbítrio.


Isto significa que a atividade jurisdicional, aquela que pretende dizer o Direito, não deve atenção apenas ao procedimento previsto em lei para tanto – normas instrumentais –, mas, sobretudo, aos valores cristalizados em normas constitucionais de cunho substancial, tais quais as garantias processuais decorrentes do direito fundamental ao devido processo legal.


Note-se que o próprio direito processual só merece ser compreendido a partir desta perspectiva. O processo deixa, destarte, de ser um processo instrumental e passa a ser um processo fundamental, tal qual o direito fundamental que o informa.


 


Referências bibliográficas

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007.

BIDAR, Adolfo Gelsi. Incidência constitucional sobre el processo. Revista de Processo, v. 30, São Paulo: RT, 1983, p. 137-165.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ªed. 4ª reimp.Coimbra: Almedina, 2003.

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984.

CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6ª ed., Salvador: JusPODVM, 2006.

HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Granada: Editorial Comares, 2003.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 7ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.

MITIDIERO, Daniel. O processo civil e o Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

MOTTA, Cristina Reindolff da Motta. Due Process of Law. In:As garantias do cidadão no processo civil: as relações entre o processo e a Constituição. PORTO, Sérgio Gilberto Porto (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

TUCCI, Rogério Lauria; CRUZ E TUCCI, José Rogério. Constituição de 1988 e Processo. São Paulo: Saraiva, 1989.


Notas:

[1] Afirma-se que na seara do direito privado a transformação em virtude do fenômeno da constitucionalização foi radical, na medida em que, no âmbito das relações privadas, o paradigma anterior era o da codificação. Até então se acreditava que as normas destinadas a disciplinar as relações privadas deveriam estar previstas em sua integralidade em extensos códigos. O direito era pensado como um sistema fechado, que, em nome da segurança jurídica, deveria prever todas as possibilidades fáticas em enunciados normativos reduzidos a uma codificação. O melhor expoente deste paradigma foi o Código Civil de Napoleão baseado nas doutrinas individualistas e voluntaristas. Nesta época, a esfera privada estava totalmente apartada da esfera pública e o direito constitucional era nada mais do que um ramo do direito público, destinando-se a Constituição apenas a limitar e disciplinar o poder estatal, através da consagração de direitos em favor dos indivíduos. Desta forma, os indivíduos poderiam exercer toda a sua liberdade – sobretudo econômica –, gozando de previsibilidade e segurança, sem que houvesse qualquer interferência estatal. Certo é que, simultaneamente ao processo que levou à constitucionalização do direito, em virtude das conseqüências nefastas desta não-ingerência do Estado em certas áreas, identificou-se um fenômeno de publicização do direito, no qual o Estado passou a legislar sobre matérias antes deixadas à liberdade das partes, visando proteger, sobretudo, aqueles identificados como hiposuficientes em certas relações privadas. O rompimento do paradigma, contudo, deu-se como o fenômeno da constitucionalização do direito, quando então se superou a idéia de que eram os códigos que ocupavam posição central no sistema jurídico, passando a Constituição ocupar não só a posição central, mas o ápice do ordenamento. Enquanto consagradora dos valores supremos da sociedade, a Constituição passou a ser a peça-chave do ordenamento, iluminando todos os ramos do direito. No âmbito civil, uma das principais conseqüências deste processo foi o fato de seus institutos, antes tidos como absolutos, passarem a responder por sua função social, sendo, portanto, relativizados frente a valores identificados constitucionalmente como superiores.

[2] Segundo lição de José Rogério Cruz e Tucci, “derivam do devido processo legal outros princípios tais quais o da isonomia, do juiz natural, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório, da proibição de prova ilícita, da publicidade dos atos processuais, do duplo grau de jurisdição e da motivação das decisões judiciais”. (TUCCI, Rogério Lauria; CRUZ E TUCCI, José Rogério. Constituição de 1988 e Processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 23).

[3] A cláusula inglesa do due process of law surgiu designada pela expressão law of the land (per legem terrae). Contudo, já em meados 1350, durante o reinado de Eduardo III, foi editada uma lei pelo Parlamento inglês em que o termo empregado em substituição a law of the land foi o due process of law. São, portanto, neste momento histórico expressões sinônimas: law of the land, due course of law e o due process of law. (CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 10).

[4] Conforme se extraí da lição de Carlos Roberto de Siqueira Castro, a Magna Carta foi escrita originariamente em latim e sua redação neste idioma tinha como objetivo deliberado não permitir que o povo a compreendesse. Ocorre que, ainda que a Magna Carta seja invocada hoje como um dos antecedentes remotos dos direitos fundamentais, em sua origem não passou de um pacto de concessões feita pela Coroa em favor da nobreza inglesa. O instrumento não tinha nenhuma pretensão de universalidade e nenhuma força maior de vinculação da Coroa, na medida em que cada novo Rei deveria ratificar o documento, não estando à partida a ele vinculado. (CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 9).

[5] Jorge Miranda concorda que o princípio da soberania parlamentar é um princípio fundamental da organização política britânica. Contudo, assevera que o sistema de governo a ele relacionado não é fruto exclusivamente da Revolução Gloriosa. Ao contrário é fruto em grande parte da tradição e também de outros três eventos decisivos: “Em primeiro lugar, o relevo assumido na primeira metade do século XVIII pelo Gabinete (que remontava a cerca de 100 anos antes, como grupo de individualidades mais influentes do Conselho Privado, reunidas à margem deste para se ocuparem de questões políticas de maior vulto), tornado órgão autónomo de colaboração entre o Rei e o Parlamento; em segundo lugar, o subseqüente aparecimento da figura do Primeiro-Ministro, para, por seu turno, estabelecer a ligação do Rei com o Gabinete; e em terceiro lugar, mais tarde, a transformação da responsabilidade dos Ministros perante o Parlamento de criminal em política por, para evitar o impeachment, os Ministros preferirem demitir-se, quando objecto de votos desfavoráveis”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 7ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 135.

[6] Conforme lição de CAPPELLETTI, no século XVIII, “a tradição jurídica inglesa, uma tradição velha já de quatro séculos, de que, na primeira metade do século XVII, grande teórico e defensor foi Edward Coke (falecido em 1634), era no sentido de que a lei não fosse criada, mas somente afirmada ou declarada, pela vontade do Soberano. A common law, em síntese, lei fundamental e prevalente em relação à statutory law, podia, porém, ser completada pelo legislador, mas não, ser por violada, pelo que o direito era, em grande parte, subtraído às intervenções do legislador”. CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, p. 58.

[7] CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, p. 57-59.

[8] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ªed. 4ª reimp.Coimbra: Almedina, 2003, p. 93-94)

[9] MITIDIERO, Daniel. O processo civil e o Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 17.

[10] CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 12-14.

[11] Não se pretende com esta afirmação sugerir que a Constituição inglesa é uma Constituição não escrita no sentido em que a qualificam muitos autores. Nos termos em que ensina Jorge Miranda, “no Direito constitucional de qualquer país aparecem sempre normas provindas de lei, de costume e de jurisprudência. O que varia é a predominância de uns e de outros elementos e o modo como se articulam entre si. No Direito constitucional da Grã-Bretanha, essa predominância cabe ao costume, o que constitui, nos tempos actuais, uma caso único, sem paralelo em qualquer outro país”. Ainda conforme leciona o mesmo autor afirmar que a Constituição britânica é uma Constituição escrita só o é correto em certo sentido: “no sentido de que uma grande parte das regras sobre organização do poder político é consuetudinária; e, sobretudo, no sentido de que a unidade fundamental da Constituição não repousa em nenhum texto ou documento, mas em princípios não escritos, assentes na organização social e política dos Britânicos”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. 7ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 130.

[12] HAURIOU, Maurice. Principios de Derecho Público y Constitucional. Granada: Editorial Comares, 2003, p. 312. A título de cautela é preciso advertir que o autor não sugere que este seja o “modelo ideal” de submissão ao Direito, ao contrário, aponta, inclusive, os malefícios de tal prática em virtude da criação de um governo dos juízes.

[13] SOUZA JÚNIOR, Cezar Saldanha apud MITIDIERO, Daniel. Processo civil e Estado Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 18.

[14] No mesmo sentido, posiciona-se o processualista Fredie Didier Jr. (DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6ª ed., Salvador: JusPODVM, 2006, p. 34).

[15] Art. 5º, § 2º, CRFB – “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

[16] ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007, 115.

[17] ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007, p. 115.

[18] Concordamos com a autora no tocante a explicação dada para justificar a posição adotada pelo constituinte quando este optou por prever explicitamente no texto constitucional as garantias decorrentes do direito fundamental ao devido processo legal, contudo, discordamos de sua afirmação, quando esta se refere à Constituição de 1988, no sentido de que “bastaria falar em due process que poderia ser deixado quase que a totalidade dos incisos do art. 5º de lado”. Ora tal afirmação justifica-se apenas no tocante aos incisos que consagram garantias fundamentais do indivíduo no processo, na medida em que estas podem ser depreendidas do direito fundamental ao devido processo legal, mas seria impensável que tal direito fundamental abarcasse outros relacionados a outras esferas da dignidade humana, tal qual o direito à vida, a intimidade privada, entre outros. (MOTTA, Cristina Reindolff da Motta. Due Process of Law. In:As garantias do cidadão no processo civil: as relações entre o processo e a Constituição. PORTO, Sérgio Gilberto Porto (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 261-278).

Informações Sobre o Autor

Elisa Ustárroz

Advogada no Rio Grande do Sul, especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.


Equipe Âmbito Jurídico

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