Resumo: O presente artigo investiga a aplicação da Teoria das Esferas Concêntricas de Intimidade, desenvolvida por Heinrich Henkel, no campo da Administração Pública, analisando-se o art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal.
Sumário: 1 – Introdução; 2 – Princípio da Publicidade e Direito à informação; 3 – Aplicação da Teoria das Esferas ao Direito ao Sigilo da Administração Pública; 4 – Conclusão; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS; NOTAS.
1. Introdução
É sabido que o direito à informação é fundamental, consagrado na Carta Constitucional no art. 5º, XXXIII. Conforme o § 1º, do mesmo dispositivo, referido direito possui aplicabilidade imediata.
Ocorre, porém, que no texto do inciso XXXIII há uma disposição limitadora do direito à informação: “ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Tal exigência concede abertura para análise do conteúdo eficacial do direito à informação.
Este, quando voltado à Administração Pública, torna-se um dever de exigir que esta torne públicos os seus atos, propiciando ao administrado, inclusive, conhecimento claro do conteúdo daqueles, como já explicitado em ocasião oportuna[1]. No entanto, o texto constitucional ressalva o direito de sigilo, como já deparado. Nasce então o conflito: o direito ao sigilo versus o direito à informação.
Observa-se que nessa situação não há necessariamente um choque entre direitos, mas uma condição de excepcionado. Portanto, neste artigo, sugerir-se-á a aplicação da Teoria das Esferas Concêntricas da Intimidade, de Henkel, trazido ao Brasil por Paulo José da Costa Jr[2].
Inicialmente, será analisada a relação entre o princípio da publicidade e o direito fundamental à informação. Após, tomar-se-á o conflito acima exposto para tentar analisá-lo à luz da Teoria das Esferas. Tarefa árdua, pois se trata de teoria desenvolvida para o direito privado.
2. Princípio da Publicidade e Direito à informação
Na atualidade, os estudos sobre os direitos fundamentais avançaram, na medida em que se adotou a Constituição como norma a ser seguida e não somente como carta política. A este passo, os direitos fundamentais tornaram-se as normas principais de todo o sistema jurídico, fundamentabilizando-o.
Passou-se a adotar um sistema jurídico tomado pelos princípios, relevando-lhes a função de nortear o ordenamento. Houve, pois, uma forte influência dos princípios do Direito Constitucional sobre os demais ramos. E aí se insere a influência sobre o Direito Administrativo. Antes tomado como um meio de submeter o Estado ao Direito, hoje passa a ser estudado em sua função de proteção dos direitos fundamentais dos administrados.
Observa-se que dentre estes direitos encontra-se o acesso à informação, classificado como sendo de quarta geração, conforme estabeleceu Paulo Bonavides[3]. Decorrente deste direito, o art. 37 da Carta Maior estabeleceu a publicidade como um dos princípios norteadores da Administração Pública.
Este ponto de contato é apreendido pelo art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal:
“XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”
Luiz Alberto David Araújo já ensinou que há uma bilateralidade do direito de ser informado. Isso porque o direito de ser informado somente pode ser afirmado quando o ordenamento estabeleça o dever de informar. Tal dever é restrito aos órgãos públicos, cujo dever constitucional é o de apresentar aos administrados informações sobre atividades públicas[4].
Conforme já dito por Ricardo Coelho, o direito à informação é sinônimo de liberdade, discussões, questionamentos e críticas aos líderes e governantes[5]. Serve, portanto, ao controle da Administração Pública pelos cidadãos[6].
No entanto, observa-se que o mencionado dispositivo, além de estabelecer o dever de informação por parte dos órgãos públicos, restringe sua eficácia aos imperativos de segurança social e estatal. Há uma sobreposição do direito ao sigilo ao direito à informação. E é na tentativa de superar este embate que se irá propor a aplicação da Teoria das Esferas.
3. Aplicação da Teoria das Esferas ao Direito ao Sigilo da Administração Pública
A Teoria das Esferas Concêntricas de Intimidade foi desenvolvida na Alemanha por Heinrich Henkel, em 1958, voltando sua aplicação para o Direito das Personalidades. Observou-se, por meio desta, que a liberdade de informação e o direito à privacidade compõem círculos concêntricos de proteção e conhecimento.
O maior expoente e grande importador da teoria no Brasil foi Paulo José da Costa Jr. Explicou este autor que subsistem diferenças entre a “‘esfera individual’ (proteção à honra) e a ‘esfera privada’ (proteção contra a indiscrição)”[7].
Para ele, as condutas mais encobertas e secretas de uma pessoa correspondem à esfera privada, enquanto as mais abertas pertencem à esfera individual. São exemplos desta esfera o direito ao nome e à reputação[8].
A esfera privada é notadamente mais interessante aos estudos do autor. Conforme ele mesmo expõe:
“Aqui, não se trata mais do cidadão no mundo, relacionado com os semelhantes, como na esfera individual. Trata-se, pelo contrário, do cidadão na intimidade ou no recato, em seu isolamento moral, convivendo com a própria individualidade”[9].
A esfera privada estabelece delimitações ao acesso de terceiros à vida íntima das pessoas. Para o autor, fundamentado em Henkel, há três círculos concêntricos pelos quais a intimidade pode ser preservada: a esfera da vida privada em sentido estrito (Privatesphäre) em que se compreende tudo aquilo que diz respeito ao indivíduo e que este não deseja divulgação; inserida nesta, encontra-se a esfera da intimidade (Vertrauensphäre), cujo conhecimento de seu conteúdo pertence somente a algumas pessoas mais íntimas e; a esfera do segredo (Geheimsphäre), da qual pessoas muito próximas, tais como alguns parentes, tem ciência[10]. Segue abaixo, o esquema ilustrativo contido na obra de Paulo José da Costa Jr. que demonstra como as esferas estão posicionadas:
Estas esferas poderiam, ainda, ser subdividas em outras progressivamente menores, de acordo com o grau de restrição à intimidade[11]. Sugere Paulo José da Costa Jr., que em caso de redução, deveriam subsistir as esferas da intimidade e do segredo[12]. Fala-se em possibilidade de redução, porque as barreiras limítrofes das esferas da vida privada não são rígidas e sim flexíveis, devido ao grau de publicidade da vida do titular do direito à intimidade[13].
Assim, em se tratando um agente político, por óbvio que sua esfera de intimidade será de menor amplitude, vez que seus atos estarão sendo observados pelos meios de comunicação e pelos administrados. O mesmo não se poderá dizer a uma pessoa comum, que não ostenta uma vida social e política de grande relevância.
Em que pese esta teoria ter-se desenvolvido para a pessoa física, não se poderá afastar seu entendimento às pessoas jurídicas de direito público e de direito privado. No caso das pessoas jurídicas de direito privado, a sua honra compõe seu fundo de comércio (azzienda ou hacienda), sendo qualquer invasão indevida à intimidade da sociedade empresária uma atendo à sua honra.
O mesmo pode ser dito quanto às pessoas jurídicas de direito público. Em que pese o dever de publicidade de seus atos, o direito de sigilo surge como exceção em determinadas ocasiões. É o caso, por exemplo, do segredo de justiça.
Como aqui o foco do estudo é a análise do princípio da publicidade na Administração Pública, não se constituirá o objeto pelo estudo da Teoria das Esferas no âmbito das pessoas jurídicas de direito privado, mas somente com relação às de direito público.
Observa-se que o princípio da publicidade encontra óbice no direito ao sigilo de determinados atos que possam atentar contra a segurança da sociedade e do Estado (art. 5º, XXXIII, da CF). É com este limite que se pode observar a aplicação da Teoria das Esferas que, com respeito à Administração Pública serão somente duas esferas, e não três, como sugeriu Henkel quanto às pessoas físicas. Isso porque, conforme ensina Paulo da Costa Jr., as barreiras divisórias dos níveis de informação e sigilo não deverão ser rígidas, mas sim, flexíveis[14].
Aplicando-se esta teoria ao campo da Administração Pública, o direito à informação (ou dever de informação, do ponto de vista dos órgãos públicos) exige que os conteúdos de todos os atos sejam de conhecimento da sociedade, por meio de publicação em órgãos oficiais. Destarte, pode-se afirmar que no maior círculo estariam contidos todos os atos administrativos cujo conhecimento pela sociedade seria um dever do Estado. O conteúdo dos atos contidos nesta zona tem plena publicidade, sendo vedado qualquer tipo de sigilo.
No núcleo, por sua vez, encontram-se todos os atos que possam provocar insegurança da sociedade e do Estado. Eles estão, portanto, acobertados por um mínimo de sigilo, necessário à manutenção da ordem institucional. Segue, pois, um diagrama com conteúdo meramente ilustrativo:
No diagrama acima, pontilhou-se o círculo que contém o direito de informação para simbolizar que se trata de direito fundamental de acesso a todos os administrados. Já o círculo menor, o qual somente permite o acesso a informação por alguns agentes públicos, não é penetrável pelos particulares, razão pela qual sua barreira é mais espessa.
Pode-se tomar como exemplo o art. 2º, da Lei 11.111/05. Nele residem duas disposições: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade” e “ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Nota-se que o inciso constitucional declara o direito de todos os administrados a saberem do conteúdo dos atos administrativos. Concomitantemente, protege o direito ao sigilo do Estado, na hipótese de segurança do próprio Estado e da sociedade[15].
Situando este dispositivo na Teoria das Esferas, pode-se afirmar que a primeira hipótese normativa estará fora do núcleo, concedendo o direito à informação dos atos administrativos. Já a ressalva que o mesmo texto faz, possibilita o direito ao sigilo de determinados atos, que possam prejudicar a ordem estatal e social, estando, à toda evidência, no núcleo de proteção do sigilo Estatal.
Outro exemplo que pode ser tomado à luz da referida teoria é a ressalva contida no § 2º, do art. 8º, da Lei 7.347/85. Nele, há a disposição de que somente nos casos em que a lei impuser sigilo, poderá ser negada certidão ou informação, hipótese em que a ação poderá ser proposta desacompanhada daqueles documentos, cabendo ao juiz requisitá-los. Sendo assim, os casos expressos em lei situam-se em esfera menor, que circundeia somente estes requisitos legais tratados pelo §2º, do art. 8º, da Lei 7.347/85.
Maria Zanella Di Pietro, observa outra hipótese em que haverá a separação do conhecimento dos atos. A autora relembra que o inciso LX, do art. 5º, da Carta Magna, determina que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. Poderão ocorrer situações em que o interesse público deverá prevalecer sobre o direito à intimidade, pela aplicação do princípio da supremacia do interesse público sobre o individual[16].
Por fim, Thomas Wlassak atenta que no caso de proteção do direito à intimidade, o conteúdo prepondera sobre a forma. Isto porque o “constituinte preocupa-se em resguardar o conteúdo de determinadas informações, que somente aos particulares envolvidos interessa, e que, se a público vierem, podem causar consideráveis danos à pessoa, tanto morais como materiais”[17]. Neste caso, observa-se que há a obediência a disposição normativa expressa no art. 5º, XXXIII, da CF, em que há uma zona de total ciência dos atos proferidos pelo administrador público e também a proteção do direito ao sigilo da administração, necessário à manutenção da ordem estatal.
4. Conclusão
Os novos estudos acerca da Administração Pública provocam reformulação no pensamento do Direito Administrativo. Princípios anteriormente engessados pelo tempo e pelo limite cognoscitível, hoje são alvo de releituras. E foi isto o que se propôs ainda que em breves linhas.
Admite-se que utilizar no direito público uma teoria desenvolvida para o direito privado não é tarefa das mais fáceis. Tanto que, o que se tentou fazer com este artigo foi apontar os estudos sobre o princípio da publicidade administrativa.
Sempre se estudou referido primado como o dever de publicação dos atos. Hoje, contudo, o princípio não se limita a isso. Deve-se proporcionar ao administrado, também, claroconhecimento sobre o que o ato publicado quer estabelecer ou informar.
Este artigo voltou-se a uma análise de uma norma fundamental excepcionada no próprio texto constitucional. No entanto, ainda não foi visto na doutrina hodierna, um estudo sobre o direito de sigilo da administração. Antes, e pelo contrário, o sigilo sempre foi tratado como repúdio, sendo combatido pelos administrativistas.
Ao revés da doutrina majoritária, defendeu-se aqui o direito de sigilo da administração. Mas não o sigilo desarrazoado, que provoca improbidade, imoralidade e ilegalidade. Sustenta-se a possibilidade de um sigilo “limpo”, fundamentado em bases legais e constitucionais.
Para tanto, apanhou-se o conteúdo normativo contido no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal. Observou-se que os direitos à informação e ao sigilo não estão em conflito, mas em esferas de acesso diversas. Tais esferas são necessárias para delimitar o acesso ao conteúdo das informações.
Poder-se-ia conjecturar que a Teoria das Esferas legitimaria o retorno dos “atos secretos” pelo governo. No entanto, não é o que se vislumbra. Isso porque, além de o núcleo de sigilo da Administração Pública estar pautado pela hipótese descrita na segunda parte do inciso XXXIII, do artigo 5º, da Magna Carta, o administrado pode-se valer de instrumentos garantidores do seu direito à informação, quando observar que os atos em sigilo são inconstitucionais.
A evolução constitucional e da ciência do direito como um todo conduz o ordenamento e a doutrina no sentido do equilíbrio: um primeiro momento elevou-se o Estado ao cidadão. Num segundo momento, o qual se vivencia, o cidadão está à frente do Estado, em face de sua dignidade humana. Por fim, o terceiro momento, do novo milênio, direciona para o equilíbrio normativo e constitucional. O cidadão tem direitos e também deveres perante o Estado, enquanto este possui deveres e também direitos ante o cidadão.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
COELHO, Ricardo. O direito à informação no espaço virtual. Maceió: Edições Catavento, 2002.
COSTA JR., Paulo José da. O Direito de Estar Só: Tutela Penal da Intimidade. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
DI PIETRO, Maria Zanella. Direito Administrativo. 18ª Ed. São Paulo: Atlas, 2005.
MIRAGEM, Bruno. A nova Administração Pública e o Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 311-312.
MONTEIRO, Leandro. Vertente material do princípio da publicidade administrativa. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 89, 01/06/2011 [Internet]. Disponível em https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9680. Acesso em 02/11/2011.
WLASSAK, Thomas. O princípio da publicidade. Considerações sobre forma e conteúdo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3425>. Acesso em: 16 mar. 2010.
Notas:
[1] MONTEIRO, Leandro. Vertente material do princípio da publicidade administrativa. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 89, 01/06/2011 [Internet]. Disponível em https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9680. Acesso em 02/11/2011.
[2] COSTA JR., Paulo José da. O Direito de Estar Só: Tutela Penal da Intimidade. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
[3] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 570-571.
[4] ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 138.
[5] COELHO, Ricardo. O direito à informação no espaço virtual. Maceió: Edições Catavento, 2002, p. 47
[6] MIRAGEM, Bruno. A nova Administração Pública e o Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 311-312.
[7] COSTA JR., Paulo José da. O Direito de Estar Só: Tutela Penal da Intimidade. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 23.
[8] Idem, p. 24.
[9] Idem, ibidem.
[10] Op. Cit, p. 30.
[11] Idem, p. 29.
[12] Idem, p. 30.
[13] Idem, p. 31.
[14] COSTA JR., Paulo José. O Direito de Estar Só: tutela penal da intimidade. 4ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.31.
[15] Como se sabe, “a publicidade e o direito à informação não podem ser restritos discricionariamente, salvo quando justificados, em casos excepcionais, para a defesa da honra, da imagem e da intimidade de terceiros ou quando a medida for essencial para a proteção do interesse público”. (ROCMS 23061/RJ)
[16] DI PIETRO, Maria Zanella. Direito Administrativo. 18ª Ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 75.
[17] WLASSAK, Thomas. O princípio da publicidade. Considerações sobre forma e conteúdo. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3425>. Acesso em: 16 mar. 2010.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas
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