O direito sem condições: Ou seu esquecimento por si mesmo

Resumo: o presente trabalho propõe uma reanálise da essencialidade do direito. Para tanto, indaga-se sobre a atual aplicabilidade do direito. Bem como, indaga-se sobre as funções jurídicas no contexto do direito como instrumento de transformação social. Por fim, busca-se contribuir com o pensar do direito de forma efetiva e que atenda as necessidades atuais da sociedade brasileira.  

Palavras-chave: essencialidade do direito. Operadores de direito. Transformação social.     

Abstract: this paper proposes a reanalysis of the essentiality of law. To do so, we look into the current applicability of the law. And where inquires about legal functions in the context of the law as an instrument of social transformation. Finally, we seek to contribute to the thinking of the right effectively and meets the current needs of Brazilian society.

Keywords: essentiality of law. Operators of law. Social transformation.

Sumário: Introdução. 1. Essencialidade do Direito. Conclusão. Referências.

Introdução

São muitos os direitos tutelados pela Constituição Federal de 1988. O Título II, Capítulo I, da Carta Magna, relaciona Direitos Fundamentais individuais e coletivos que possuem a garantia de aplicabilidade imediata conforme disposto no §1º do art. 5º. São tutelas que envolvem vários âmbitos, como o social, educacional, político, cultural, penal, econômico, ambiental, entre outros.

Observa-se que tais âmbitos dizem respeito à existência digna de todo e qualquer ser humano. O que significa que todos os indivíduos brasileiros e estrangeiros residentes ou transeuntes em terras brasileiras são portadores de direitos que garantem suas existências dignas. Bem como, pelas novas concepções biocentristas que se firmam de maneira ampliativa, todo e qualquer ser vivo possui a proteção constitucional. Mas, a pessoa humana é inserida como referência, assim, constata-se que o direito é voltado ao ser humano e, consequentemente, à sociedade na qual está inserido. Nesse sentido, não há condições ao direito, pois, trata-se de respeito incondicional da pessoa humana (o direito pensado através da pessoa e para a pessoa).

Para ser compreendida a incondicionalidade do direito é fundamental a compreensão de sua essencialidade, assim, discorrem-se alguns apontamentos críticos sobre a questão. 

1 Essencialidade do Direito

Tanto a pessoa humana como a sociedade vive em constante evolução, o que exige do direito uma permanente reestruturação e adequação às realidades sociais e humanas. O direito, assim, é construído, não se trata de um direito estático, mas sim evolutivo a cada instante. E esta construção não se revela de forma isolada, ao contrário, todos e tudo contribuem de maneira significativa.

Neste desenrolar evolutivo e construtivo, a história foi marcada por lutas, perdas e conquistas. O conhecimento deste processo evolutivo faz com que a atualidade seja, pelo menos, mais compreendida e, ainda, possibilita a construção de perspectivas de um futuro próximo e, até mesmo, de um futuro distante.

Por esta evolução histórica, constatou-se que a sobrevivência nas sociedades depende diretamente do direito. Onde há seres humanos, há interesses e conflitos. O direito se torna um alicerce e uma bússola que conduz o homem dentro da sociedade. Os conjuntos de regras e princípios jurídicos são basilares para orientar e disciplinar as condutas humanas, evitando a desordem social e a insegurança jurídica.

O direito vai além ao ser um instrumento de transformação da realidade social. Compreende-se por um direito que concretiza o próprio direito ou um direito que representa o próprio problema a ser solucionado. Um direito imbuído de valores que se relacionam de forma harmônica e efetiva.

Em tal contexto, não há que se falar, apenas, em um direito retórico e utópico, mas, em um direito que atenda às necessidades humanas e sociais. Impõe-se, desta forma, uma revisão no sentido do direito, ou seja, o direito passa a ter sentido a partir do momento que se adequa a realidade social.

Neste repensar do direito, as atuações dos operadores do direito são fundamentais para a concretização do direito, sejam eles os legisladores, os juízes, os promotores, os defensores públicos, os advogados, as associações, a sociedade e todos àqueles que participam da construção, da hermenêutica e da aplicação do direito. Salientando-se que todos estão comprometidos com os resultados alcançados no “mundo do direito”. Para tanto, faz-se necessário um pensamento crítico sobre a essência do direito e sua concretização, passando-se a entender o direito como transformador da realidade social.  

No caso específico do juiz, por esta visão essencial do direito, o mesmo deixa de ter a postura de “perito de técnica jurídica” e passa a servir o próprio povo como mediador da comunidade, orientando-o no presente, mas, criando perspectivas não apenas normativas, mas também, axiológicas para o futuro, pois, o direito cria e defende valores fundamentais à existência humana e, por consequência, proporciona o equilíbrio e a harmonia social.

A interpretação jurídica é determinante na aplicação do direito que se efetiva no caso concreto e não, simplesmente, através da norma jurídica. Assim, a lei é enriquecida, ou seja, decisões juridicamente adequadas ao caso concreto, isto porque a normatividade, geralmente, não acompanha a evolução da sociedade, ou mais especificamente, a evolução das necessidades humanas e sociais. A interpretação jurídica deve se efetivar a serviço da aplicação do direito e a favor da comunidade (povo).

Bem como, nas funções dos operadores do direito, impõe-se o papel (e a essência) do direito como protetor diante dos excessos do governo que colocam o povo em posição de sujeição. Entende-se que o direito é, também, uma medida de poder.

Mas no mundo aplicativo do direito, indaga-se: o direito deve ser interpretado e compreendido sem condições? Isto por ser um instrumento de efetivações e garantias que representam a própria existência humana? E, ao contrário, havendo condições, poderia o direito se perder e seria, por consequência, inevitável o seu esquecimento? Ou melhor, seriam esquecidos os seus verdadeiros valores e finalidades?

Para serem respondidas tais indagações, é salutar, inicialmente, a observação de que a pessoa humana possui direitos, mas também, deveres, obrigações e, acima de tudo, responsabilidades sociais. Há a necessidade de se enxergar o “todo” e não, apenas, o sujeito individual. O homem deve transcender o individual. Pois, pela essência do direito é possível buscar a humanização.

A necessidade de se valorizar o coletivo é evidente nas modernas sociedades da atualidade, onde o fenômeno da mundialização influencia cada vez mais as formas de existir. Portanto, o direito deixou de ter, principalmente após a Constituição Federal de 1988, um direcionamento exclusivamente individualista, focado no “credor e no devedor”. Não é difícil a identificação dessas novas realidades, principalmente ao serem verificados os aumentos significativos das demandas coletivas que buscam a tutela constitucional através do Poder Judiciário.

Mas, sendo o direito individual ou coletivo, tem-se um direito que é construído por pessoas e para pessoas, assim, tem-se uma comunidade de pessoas, que deve ser prioritariamente uma “comunidade ética”. Uma comunidade onde as pessoas se respeitam e se responsabilizam entre si. Sendo essa a verdadeira ideia de direito, pois, o direito é essencial para a comunidade ética.

A partir dessa estruturação comunitária, parte-se para a efetivação de um direito voltado à pessoa humana que compõe esta comunidade ética. Um direito incondicionado quando se refere à garantia de Direitos Fundamentais, mas, condicionado, em sua aplicabilidade, ao caso concreto, ao caso real, social ou relacional.

Não se espera que a essência do direito seja perdida ou alterada por interferências políticas que visam manipular o direito em prol de interesses extras-sociais ou inclusivamente partidários e individuais, espera-se, por outro lado, um direito voltado, como já dito, à transformação da realidade social, em prol da sociedade e, consequentemente, em prol da dignidade da pessoa humana e que atenda as atuais necessidades sociais, mas, que seja vislumbrado o futuro, ou seja, as futuras comunidades éticas.

Não se tratam de ideias utópicas ou impossíveis de serem alcançadas, pois, as ferramentas para tais construções estão em mãos da sociedade atual, é o povo que escolhe seus governantes, àqueles que criam as leis, ou seja, que criam o próprio direito. Por tanta responsabilidade, o povo precisa despertar.

O que deve ser assegurado, inicialmente, é que a essência do direito não seja perdida.  De forma prática, àqueles que atuam com o direito atual (interpretando-o e aplicando-o) devem saber que possuem em suas mãos um instrumento fundamental para a efetivação de Direitos Fundamentais, para a concretização da ordem social, mas, acima de tudo, para a transformação da realidade social e do ser humano. Impõe-se a consciência de que o direito vai além da normatividade ou do positivismo, sendo que possui a força axiológica da existência de todos os seres vivos, ou seja, da vida independentemente da forma de existência.

Conclusão

Mas para concluir, faz-se necessário a repetição de alguns pontos importantes que foram abordados brevemente. Na atualidade, torna-se urgente uma reanálise sobre a essência do direito. Isto pela possibilidade do direito se tornar, em futuro próximo, apenas, um instrumento político em mãos daqueles que não visam o real bem-estar social. Portanto, é crucial a valorização (e valoração) da verdadeira essência do direito.

A finalidade do direito, bem como, as funções dos operadores do direito, devem ter como ponto de partida a pessoa humana, mas, não em um sentido individualista, mas, em um conceito que transcende o individual e atinja o ser como um todo.

Ao se pensar no todo, entende-se a finalidade do direito como garantidor de valores e Direitos Fundamentais que equilibram a existência humana. Um direito que se adequa a realidade social e atende às necessidades sociais e, por consequência, um direito que transforma a realidade social tanto no âmbito individual como coletivo.

Afasta-se o direito de concepções apenas retóricas e políticas, àquele direito que não realiza. O que deve ser conquistado é um direito concretizador, ainda, pode-se observar que leis existem (e são muitas), a prioridade é suas efetivações, que os Direitos Fundamentais consagrados pela Constituição Federal sejam concretizados, pois, a lei somente no papel é, realmente, uma “letra morta”.

Para tanto, faz-se necessário que a comunidade comum passe a ser uma comunidade ética, onde seus integrantes se respeitam e assumam suas responsabilidades. Uma comunidade ciente de seus direitos, mas também, de seus deveres e obrigações, e que saiba enxergar o todo, ao transcender o individualismo. Salientando-se que, entende-se por comunidade ética àquela que abrange tanto a sociedade civil como seus governantes e órgãos correspondentes, bem como, todos os poderes estatais (melhor seria dizer funções do Estado).

Para a comunidade ética progredir, os operadores de direito devem assumir, de maneira crítica, a essência do direito e buscar, com eficiência, sua aplicabilidade imediata. Operadores conscientes de que, tal efetivação, não se refere a uma ideia utópica, mas, totalmente possível. Ressaltando que, não se trata de um pensamento apenas positivo ou extremamente otimista, pois, as riquezas humanas e territoriais existentes no Estado brasileiro não podem ser esquecidas ou ignoradas.

Por fim, não há condições ao direito, ou seja, não há condições a sua essência de garantidor de Direitos Fundamentais dos seres humanos, bem como, não há condições a sua essência de transformar a realidade social, principalmente, em seu caráter axiológico. Poderá haver condições em sua aplicabilidade por depender do caso concreto, do caso real, mas, mesmo assim, a sua essência é incondicional.

Importante salientar que o direito não é instrumento político, não se trata de um instrumento que pode ser manipulado por vaidades e interesses restritos. O direito pertence ao povo, ao cidadão, a pessoa humana e para estes e por estes é construído. Possuindo o direito, além de suas regras e princípios (sua normatividade), valores essenciais à existência humana, bem como, valores que equilibram toda forma de vida, como o respeito ao meio ambiente.

Em suma, é este direito que não possui condições e que deve ser preservado no hoje e para o amanhã, pois, ao contrário, poderá sucumbir e ser esquecido por si mesmo, o que afetará, indubitavelmente, a dignidade da existência humana.

 

Referências:
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Informações Sobre o Autor

Mary Mansoldo

Mestranda em Direito pela Universidade de Itaúna. Especialista em Direito Processual e Ciências Penais. Professora Universitária. Advogada


Equipe Âmbito Jurídico

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