O direito transindividual à moradia e o estatuto da cidade enquanto norma ambiental

Resumo: Artigo desenvolvido sobre a questão do direito constitucional à moradia e sua relevância destacada com a criação do Estatuto da Cidade

Sumário: Introdução. A Evolução dos direitos até a criação dos direitos da coletividade transindividuais. Direitos Transindividuais Um acesso à justiça para todos. Direitos difusos e direitos coletivos enquanto espécies dos direitos transindividuais. A moradia enquanto direito transindividual. O Estatuto da Cidade como norma de regulamentação do meio ambiente urbano. O conceito de propriedade e sua acepção no Estatuto da Cidade. O Estatuto da Cidade e a possibilidade de um meio ambiente sustentável a partir da democratização da moradia. Conclusão.

INTRODUÇÃO

Desde os tempos da faculdade, aprendemos ainda no primeiro semestre da Faculdade de Direito que o Direito em si foi uma criação humana. Nasceu da sociedade a fim de regulamentar e tentar conciliar as relações sociais e os interesses e direitos de toda a sociedade como um todo.

O Direito, na tentativa de buscar acompanhar o desenvolvimento das sociedades, e principalmente a evolução das relações sociais, alcança agora a sua quarta geração de direitos.

Atualmente, vivenciamos na nossa sociedade uma conjuntura na qual existem muitas desigualdades sociais e o povo brasileiro sofre a cada dia para ter a garantia dos seus direitos.

Se efetivamente temos problemas sociais dentro do Estado Brasileiro, isto se dá por dois motivos gerais: o Direito não vem acompanhando o desenvolvimento e as necessidades da sociedade e as relações sociais, no contexto da luta de classes sociais, vem fazendo com que os direitos do cidadão não seja estendido para toda a sociedade.

Tal fato se dá seja por ausência de política pública para implementar e regular tais direitos, seja porque a sociedade capitalista efetivamente não tem interesse que determinados direitos sejam estendidos a todos os cidadãos.

Embora o Brasil tenha se tornado um Estado republicano lá em 1889, apenas em 1988, 99 anos após, é que tivemos uma Constituição Federal que determinou a criação de uma política urbana. Doravante, tivemos ainda que esperar mais 12 anos, da aludida norma constitucional, para que fosse aprovada uma lei, o Estatuto da Cidade, que regulamentasse tal política urbana.

Isto posto, tratamos aqui de expor a relevância do Estatuto da Cidade enquanto norma ambiental e a relevância de alguns institutos jurídicos que tal norma trás para a garantia de direitos metaindividuais e coletivos que os cidadãos por anos ansiavam que fossem garantidos.

No caso em comento, vamos privilegiar a moradia, pois acreditamos que ela seja o cerne do meio ambiente urbano, objeto do Estatuto da Cidade. Isto se dá porque a moradia envolve não apenas a propriedade urbana, mas todo o seu entorno, quais sejam as condições sanitárias desta propriedade, a situação urbana do bairro no qual ela está inserido e quais instituições e elementos participam deste território, tais como hospitais, escolas e transporte público, que efetivam assim direitos transindividuais à saúde, educação e transporte, respectivamente.

Ademais, a situação da moradia envolve ainda um problema jurídico de confirmação deste direito social, qual seja a regularização fundiária a fim de efetivar o direito do cidadão sobre a propriedade.

A Evolução dos direitos até a criação dos direitos da coletividade, transindividuais.

Os direitos de primeira geração compreendem as liberdades negativas clássicas, que realçam o princípio da liberdade. São os direitos civis e políticos. Surgiram no final do século XVIII e representam uma resposta do Estado liberal ao Estado absoluto. São exemplos o direito à vida, à propriedade, à liberdade, à participação política e religiosa, entre outros.

Os direitos de segunda geração identificam-se com as liberdades positivas, reais e concretas e acentuam o princípio da igualdade entre os homens. São os direitos sociais, econômicos e culturais. Surgiram das inovações trazidas pela Revolução Industrial, que provocou uma profunda e radical mudança na sociedade.

Os direitos de terceira geração consagram os princípios da fraternidade e da solidariedade. São direitos que transcendem o indivíduo, que não se restringem à relação individual, sendo designados como transindividuais. Incluem o direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente sadio, dentre outros.

Paulo Bonavides reconhece ainda direitos de quarta geração como, por exemplo, o direito à democracia, à informação e ao pluralismo. Segundo ele, “deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar no plano de todas as relações de convivência.”[1]

O escopo legal e normativo no Brasil, a partir da Constituição Federal de 88 celebra o princípio do desenvolvimento sustentável, o qual vem expostos nos artigos 3º, 170 e 225 da CF/88. Para a integração do desenvolvimento socioeconômico com a preservação da natureza, a CF/88 relaciona uma série de artigos constitucionais que conclamam a existência digna e o bem de todos com o respeito à capacidade de sustentação, defesa e proteção do meio ambiente e da sadia qualidade de vida, inclusive no meio ambiente urbano.

Em face do quanto exposto acima, a Lei 10.257/2001, no seu art. 1º, parágrafo único, e no art. 2º, incisos I, IV, VI, f e g, XII, XIII, e XIV, menciona os aspectos gerais e específicos da qualidade ambiental.

Direitos Transindividuais – Um acesso à justiça para todos.

O Código de Defesa do Consumidor[2], aprovado em 1990, veio inovar quanto aos direitos da terceira geração, quais sejam os direitos transindividuais ou meta individuais, vez que os classificou de acordo com a sua divisibilidade.

De acordo com os artigos 81 e seguintes do CDC, os direitos tranindividuais são classificados como:

“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.(…)”

Necessário salientar que apesar de estarmos mencionando uma lei de natureza consumerista, em si civil, a mesma foi fundamental para garantir uma nova ordem jurídica no tocante ao acesso á justiça[3] que já havia sido garantido na Constituição Federal.

Este conceito e aplicação de direitos transindividuais foram aplicados às demandas ambientalistas, pois tanto as relações de consumo quanto as questões ambientais, entre outras temáticas, abarcam um universo de indivíduos muito grande, e a depender até indeterminado. Ademais, dado o contexto da sociedade capitalista em que estamos inseridos, tanto o consumidor quanto o meio ambiente devem ser protegidos e terem mecanismos para tanto pois são alvos da lógica capitalista que quer cada vez mais incitar o consumo desordenado e explora de forma degenerativa o meio ambiente para atingir seus objetivos econômicos.

Como se trata de direitos de uma coletividade, o qual vai além do indivíduo em si, estamos falando ainda em mais um mecanismo de facilitar o acesso à justiça a fim de garantir a efetividade do direito tutelado e para evitar um dano iminente.

Neste caso, é fundamental que lembremos do instrumento processual da Lei 7347/85, a Ação Civil Pública, que é um instrumento processual para a proteção dos direitos relativos ao consumidor, meio ambiente, e outros direitos transindividuais, como o da ordem urbanística. Tal lei deve ser ressaltada porque ele instrumentaliza que terceiro, via ação coletiva, litigue a fim de defender danos patrimoniais ou morais que tenham ocorridos contra toda uma coletividade.

Senão vejamos a possibilidade de tutela definida pela referida lei:

“(…)Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Leu nº 12.529, de 2011).

l – ao meio-ambiente;

ll – ao consumidor;

III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. (Incluído pela Lei nº 8.078 de 1990)

V – por infração da ordem econômica; (Redação dada pela Leu nº 12.529, de 2011).

VI – à ordem urbanística. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001) (…)”

Direitos difusos e direitos coletivos enquanto espécies dos direitos transindividuais.

Embora o CDC aprovado em 1990 não deixe dúvidas sobre o fato de que os direitos difusos e os direitos coletivos sejam categorias do direito transindividual, necessário se faz exterminar tal dúvida a fim de seguirmos adiante com os objetivos deste texto.

A essência do direito difuso é sua natureza indivisível, vez que só é considerado como um todo, não sendo possível individualizar a pessoa atingida pela lesão gerada da violação desse direito, o qual nasce de uma circunstância de fato, comum a toda comunidade. A impossibilidade de determinar os titulares é marca singular dessa espécie de direitos coletivos.

A indeterminabilidade não necessita ser absoluta, mas apenas que seja difícil ou irrazoável. Assim, os moradores de uma pequena cidade, diante de um problema ambiental local, serão, para fins de enquadramento no sistema brasileiro, considerados como titulares indeterminados.

São exemplos de tutela judicial de direitos difusos as ações coletivas que visam impedir a divulgação de propaganda enganosa e lesiva ao consumidor, veiculada na mídia em geral; garantir um ambiente sadio para as presentes e futuras gerações; evitar e reparar o dano decorrente da contaminação da água de um determinado rio por detritos químicos; evitar e reparar a destruição do patrimônio artístico, histórico, turístico e paisagístico, defender o erário público, dentre outras.

Os direitos coletivos se assemelham aos difusos quanto à indivisibilidade, mas se diferenciam quanto à origem da lesão e abrangência do grupo. Isso porque os difusos supõem titulares indetermináveis, ligados por uma circunstância de fato, enquanto os coletivos dizem respeito a grupo, classe ou categoria de pessoas determinadas ou determináveis, ligadas pela mesma relação jurídica base.

A moradia enquanto direito transindividual.

O termo moradia[4] origina-se da palavra latina morari que significa demorar, ficar, contudo, o alcance que devemos dar ao espectro deste direito social fundamental vai além da faculdade de ocupar uma habitação com animus definitivo, exige-se também que essa habitação tenha dimensões razoáveis para acomodar a família e condições de infraestrutura que permita a mesma viver com dignidade.

A questão na moradia no Brasil, e também em grande parte do mundo a fora, tem-se tornado uma demanda global em virtude das demandas do sistema capitalista. O solo urbano e a propriedade imobiliária, que desde o período da colonização do Brasil ficaram sob o império das classes dominantes, no período da industrialização brasileira ocorrida a partir de 50 geraram enorme problema social em virtude do déficit urbano e do aprofundamento dos problemas sociais e econômicos da nossa nação.

Como veremos a seguir, tentou-se resolver estes problemas através da criação de instrumentos jurídicos postos na Constituição cidadã, a CF/88.

Na ordem jurídica brasileira, esse sentido mais abrangente surge quando o direito à moradia é inserido no contexto dos direitos sociais, a partir da EC n.º 26/00, que o introduziu ao artigo 6º da CRFB/88. Anteriormente, havia apenas uma alusão no artigo 23, inciso IX, da CRFB/88, à competência comum[5] da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para criar e fomentar programas sobre moradia, habitação e saneamento básico.

Desta feita, o caráter transindividual do direito social à moradia se configura quando o colocamos no contexto da política urbana enquanto parte do meio ambiente artificial. A moradia como posta na Constituição de 88, e posteriormente no Estatuto das Cidades, está relacionada a um meio ambiente urbano equilibrado e sustentável, tanto quanto a utilização do solo urbano e da propriedade a fim de atender aos interesses sociais. Assim, todos tem direito à moradia digna e que esta se dê a partir da democratização do solo urbano e da propriedade a fim de que esta cumpra a sua função e sirva como instrumento de desenvolvimento urbano para todos da cidade.

O Estatuto da Cidade como norma de regulamentação do meio ambiente urbano.

Inicialmente, cabe lembrarmos que o meio ambiente artificial, urbano, é o meio ambiente construído. Mesmo não sendo do tipo natural, tal meio ambiente também constitui como patrimônio ambiental de uso comum do povo.

Muito embora o meio ambiente urbano tenha uma marca muito forte no tocante a propriedade, a cidade, o solo urbano, o território é de uso de todos, e portanto, merece a tutela de ser devidamente protegido e conservado. Como o solo urbano pertence à cidade, ao Município, cabe a este de forma direta a tutela sobre patrimônio ambiental que está imediatamente sob a sua alçada, sob a sua responsabilidade.

Com o advento dos arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 88, o Estado brasileiro inicia a pautar efetivamente uma política urbana para a nação, criando a partir de então instrumentos jurídicos e técnicos para que os municípios elaborassem uma gestão urbana de forma democrática e sustentável.

Ressalte-se que não são apenas tais ordenamentos jurídicos que servem como diretrizes para a política urbana no país, vez que é necessário aliá-los a outras normas que também regulam mesmo que tangencialmente ou transversalmente esta matéria.

O art. 225 da CF/88, por exemplo, leciona que é direito de todos um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso do povo, e essencial à sadia qualidade de vida. Desta forma, uma vez que a cidade é por natureza um meio ambiente artificial, urbano, a sua gestão deverá adotar tal garantia constitucional.

A Carta Magna determina que é de competência privativa da União as diretrizes de desenvolvimento urbano no país, como preceitua o art. 21, XIX. Entretanto, no art. 24, I, do mesmo texto constitucional é determinada a competência concorrente, ou seja, de todos os entes, quanto as normas gerais sobre desenvolvimento urbano, sendo que o desenvolvimento urbano e regional se pautará a partir de lei federal que trará as diretrizes para tanto.

Contudo, foi vontade do legislador constituinte que no tocante a política de desenvolvimento urbano, esta fosse realizada pelo Poder Municipal. Senão vejamos:

“(…)Art. 182 – A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana(…).

Portanto, a Constituição Federal não apenas determina que a política de desenvolvimento urbano fosse executada pelo Governo Municipal, como inclusive determinou que uma lei municipal, qual seja o Plano Diretor, seria o instrumento para tal fim.

O Município, de acordo com o artigo 182 da Constituição Federal e no princípio da preponderância de interesse é o ente federado principal na execução da política urbana, de modo a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, conforme os critérios estabelecidos no Plano Diretor, definido este como o instrumento básico da política urbana.

Neste diapasão, a qualidade das normas do Estatuto da Cidade como normas gerais, tem como base a adequação destas normas aos princípios da Constituição Federal, pois estas normas são, especialmente em relação aos municípios, indutoras da aplicação dos instrumentos constitucionais da política urbana. A efetivação pelos Municípios de instrumentos como o Plano Diretor, dentre outros previstos no Estatuto da Cidade, tem como objetivo a efetivação de princípios constitucionais como os da gestão democrática da cidade, da participação popular, da função social da propriedade, do direito a moradia, a saúde e a regularização. Acrescenta-se agora ao ordenamento jurídico a obrigação ao administrador público de dar efetividade a estes princípios e diretrizes.

O conceito de propriedade e sua acepção no Estatuto da Cidade.

O Estatuto da cidade como norma reguladora da política urbana determinada na Constituição Federal criou uma nova ordem jurídica a partir de um novo conceito de propriedade. O próprio art. 182, §2º da CF/88 já preceituava que a propriedade precisa atender a sua função social e efetiva isto quando atende “às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”[6].

A necessidade de atender a tal critério, fez com que o não atendimento a esta norma viesse a possibilitar medidas extremas, como por exemplo, a expropriação da propriedade[7].

O Código Civil de 1916, conjunto de normas que estabelece as relações majoritariamente de direito privado, possuía uma definição individualista sobre propriedade. A propriedade, de acordo com tal lei, concede ao seu titular, o direito de usá-la, dispô-la, gozá-la e reavê-la sobre quem de forma injusta a possuísse.

O direito de propriedade é definido como direito real, ou seja, o direito do proprietário sobre determinada coisa, oponível a todos os demais. Tal direito congrega três elementos: usar os bens, gozar e dispor do bem.

O direito de usar a coisa se dá dentro das restrições legais, a fim de evitar o abuso de direito, limitando-se, portanto, o bem-estar da coletividade. O direito de gozar se dá quando possibilita ao proprietário a exploração do bem a fim de utilizá-lo economicamente. Já o direito de dispor se configura quando o seu titular pode vender, alugar ou doar o seu bem, podendo ainda consumi-la ou submetê-la a serviço de outrem.

Posteriormente, o Código Civil de 1916 foi expurgado do nosso ordenamento jurídico e substituído pelo atual Código Civil, datado de 2003, ou seja dois anos após a publicação do Estatuto da Cidade, quando este veio a regulamentar a função social da propriedade. Desta forma, no tocante a propriedade, o novo Código Civil, atualmente vigente, ficou com a seguinte redação:

“(…)Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.(…)”

Destarte, é clarividente a evolução do conceito de propriedade, se compararmos os códigos civis de 1916 e de 2003, o que de certo ocorreu pela nova ordem jurídica sobre a política urbana que se iniciou com a Constituição Federal e foi regulamentada pelo Estatuto das Cidades.

Passado a explicação sobre o conceito individualista e privatista de propriedade posto no Código Civil de 1916 e sua evolução com o aludido Código de 2003, vejamos agora o conceito de propriedade desenvolvido no Estatuto da Cidade.

O Estatuto da Cidade, já no seu artigo primeiro, determina no parágrafo único que o uso da propriedade se dará em consonância ao bem coletivo, ao bem estar dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. A partir da norma deste artigo, podemos ter três conclusões: a primeira é a quebra do paradigma sobre a tríade (usar, gozar e dispor) de elementos da propriedade que foi asseverada no Código Civil; a segunda é que a forma de uso da propriedade determinada na aludida lei demonstra o caráter transindividual do direito à propriedade; a terceira é que revela expressamente a mencionada lei enquanto norma específica de direito ambiental.

Revela-se portanto que a partir do Estatuto da Cidade o instituto jurídico da propriedade recebe uma nova acepção, qual seja aquela determinada no art. 225 da CF/88 e utilizando-se ainda dos parâmetros postos no art. 182 da supra citada norma constitucional.

O Estatuto da Cidade e a possibilidade de um meio ambiente sustentável a partir da democratização da moradia.

Como já dito anteriormente, o Estatuto da Cidade enquanto lei federal veio no intuito de instituir uma nova ordem urbanística no sistema jurídico brasileiro. Como ordem urbanística, entendemos que esta significa uma série de normas, com conteúdo de interesse social e de ordem pública, as quais versam sobre uso da propriedade urbana em prol da coletividade, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar de todos os cidadãos.

A fim de instituir uma nova ordem jurídica, o Estatuto da Cidade enquanto lei ambiental que regula o espaço urbano, necessitava intervir no conceito e na destinação de propriedade.

O Estatuto da Cidade, por sua natureza, não é uma lei autoaplicável. Ela é um instrumento dado ao Município para que este dê aplicabilidade e efetividade ao instituto da função social da propriedade. Todavia, sua implementação depende de aprovação, por lei, do Plano Diretor ou do zoneamento e de demais leis correlatas que tenham como objeto áreas com imóveis passíveis á reforma urbana.

Não podemos olvidar que a função social enquanto princípio atributivo à propriedade seja novidade instituída no Estatuto da Cidade, pois aquele já vinha sido mencionado desde a Constituição de 88. Todavia, foi o Estatuto da Cidade que veio a regulamentar o uso da propriedade já enriquecida com tal atributo, a qual inclusive veio a alterar o conceito de propriedade no Código Civil que foi aprovado no ano seguinte, em 2002.

A questão da moradia no Brasil, enquanto direito social garantido a todos os cidadãos, passou por enorme colapso desde a metade do século XX, quando foi iniciado o processo de industrialização no Brasil.

Devido a má estrutura das cidades e da ausência de uma efetiva política urbana no Brasil, os centros urbanos naquela época passaram por processos de crescimento desordenado, o que gerou enormes problemas socioeconômicos, tais como desemprego, déficit de habitação, transporte, saneamento básico e saúde.

Quase 50 anos após o início deste processo, o Brasil veio a aprovar uma efetiva norma de política urbana no país, a qual regulou sobre este tema que já havia sido trazido na Constituição Federal de 88.

Não objetivamos aqui elencar e explicar todos os institutos jurídicos de política urbana trazido pelo Estatuto da Cidade, mas sim alguns daqueles que evidenciam a democratização do conceito de propriedade a fim de atender o direito social à moradia.

Para elencarmos tal instituto, faz-se necessários trazermos um primeiro, qual seja o Plano Diretor. Este torna-se relevante na medida que o legislador constituinte deu ao município o dever de instituir uma política urbana e que o instrumento para tanto fosse através do Plano Diretor, enquanto norma, para aqueles municípios com população acima de 20.000 habitantes.

Nesta esteira, é patente que uma vez que foi atribuído ao Município a competência de instituir localmente uma política urbana, tal ente tornou-se fundamental para a garantia do direito transindividual da moradia.

De acordo com Paulo Affonso Machado, Plano Diretor é um “conjunto de normas obrigatórias, elaborado por lei municipal específica, integrando o processo de planejamento municipal, que regula as atividades e os empreendimentos do próprio Poder Público Municipal  e das pessoas físicas ou jurídicas, de Direito Privado ou Público, a serem levados a efeito no território municipal.”[8]

Conclusão

No trabalho em espeque, podemos vislumbrar e analisar que o Estatuto da Cidade enquanto norma de direito ambiental foi resultado de um avanço que se deu no sistema jurídico brasileiro a fim de atender as novas necessidades e demandas dos cidadãos.

O Estatuto da Cidade adveio como uma normatização anteriormente preconizada na Constituição Federal, que lá na década de 80, mais exatamente em 1988, admitiu a existência dos direitos transindividuais. Tais direitos apontam como uma inovação aos direitos individuais, pois são destinados para toda a coletividade, para grupos de cidadãos até indeterminados, conforme preceitua por exemplo os arts. 182, 183 e 225 da Constituição Federal de 1988.

Pudemos concluir ainda que o meio ambiente urbano, sendo aquele meio ambiente construído, é composto majoritamente pela cidade, aonde existem propriedades, as quais são majoritariamente ocupadas para fins de moradia. Assim, o Estatuto da Cidade, enquanto norma ambiental, foi fundamental para apresentar instrumentos a fim de efetivar os direitos transindividuais para obtermos uma cidade sustentável, com bem estar para todos, conforme proposto pela CF/88.

Neste ínterim, é de clareza solar que no Brasil existe um enorme problema sobre a moradia, não apenas no tocante a formação histórica das cidades e metrópoles brasileiras, que passaram por crescimentos desordenados sem que isto significasse um efetivo desenvolvimento econômico.

Assim, o Estatuto da Cidade, enquanto norma de caráter ambiental, trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro ferramentas a fim de que seja possível efetivarmos a democratização das terras, através de uma política fundiária, de regularização urbana, tudo isto através de um novo conceito de propriedade.

Por fim, esta lei federal também busca, através do plano diretor e demais instrumentos de planejamento urbano, instrumentos e ferramentas a fim de efetivar direitos transindividuais, como um meio ambiente sadio, bem estar para todos e moradia digna para todos os setores e classes que compõem o espaço urbano da cidade.

 

Referências bibliográficas
Constituição Federal de 1988.
Lei 10. 257/2001.
Lei da ação civil pública.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. Paulo Bonavides.
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009
CARVALHO Filho. José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2006.
DALLARI e FERRAZ, Adilson Abreu e Sérgio (Coord.). Estatuto da cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). São Paulo. Malheiros, 2003.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12ª Ed. Rio de Janeiro, 2004.
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz(org) e CARDOSO, Adauto Lucio(org). Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto das cidades. Rio de Janeiro: Reavan FASE, 2003.
ROLNIK, Raquel(org), CYMBALISTA, Renato(org). Instrumentos urbanísticos contra a exclusão. Polis, 1997.
Notas:
[1] BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 571.
[2] Lei 8078/90
[3] Art.5º, XXXV da Constituição Federal do Brasil promulgada em 1988
[4] A moradia enquanto direito transindividual significa que o imóvel, além de servir como habitação, necessita estar inserida dentro de um contexto em que haja serviços públicos como saneamento, transporte e segurança devidamente prestados aos cidadãos.
[5] Competência comum é aquela que não é restrita a apenas uma única esfera de poder. Ou seja, competências que podem ser desenvolvida tanto pela União quanto pelos Municípios e pelos Estados Federativos.
[6] Art. 182, § 2º da CF/88
[7]  O Estatuto da Cidade prevê, dentre os diversos instrumentos para a política urbana, a desapropriação.
[8] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12ª Ed. Rio de Janeiro, 2004. Pag. 413

Informações Sobre o Autor

Humberto Gustavo Drummond da Silva Teixeira

Advogado, Direito-UCSAL. Pós-Graduação em Direito Tributário – IBET Mestrado – Planejamento Territorial e Desenvolvimento – UCSAL


Equipe Âmbito Jurídico

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