Resumo: O estudo objetiva prescrutar a possibilidade de responsabilização do médico pela perda de uma chance quando houver erro de diagnóstico. À luz do método dedutivo, avalia-se os conceitos gerais da responsabilidade civil médica e do erro de diagnóstico, bem como da perda da chance para chegar à análise de aspectos entrecruzados sobre ambos os assuntos.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Médico. Erro de diagnóstico. Perda de uma chance.
Sumário: 1. Introdução. 2. Da atividade médica. 2.1. Da natureza jurídica da relação médico-paciente. 2.2. Dos direitos e deveres jurídicos dos sujeitos. 2.3 Da conduta ética profissional. 3. Da responsabilidade civil médica. 3.1. Origem histórica e evolução. 3.2. Espécies de responsabilidade civil médica. 3.2.1. Culpa médica e desdobramentos da atividade. 3.2.2. Da culpa médica, erro médico e erro profissional. 3.2.3. Do erro de diagnóstico. 3.3 Excludentes da responsabilização médica. 4. Da responsabilidade civil pela perda de uma chance. 4.1. Sobre a teoria da perda de uma chance. 4.2. Natureza jurídica da responsabilidade pela perda de uma chance. 4.3. A responsabilidade pela perda de uma chance no direito brasileiro. 5. Aplicabilidade da teoria da perda de uma chance na seara médica. 6. Considerações finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A aplicação da teoria da perda de uma chance em erro de diagnóstico médico – temática deste estudo – é bastante controversa, tendo em vista a necessidade de análise da sua compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio, bem como a falta de discussão sobre a sua natureza jurídica. Questionam-se doutrina e jurisprudência acerca do seu cabimento e também da sua diferenciação para com o dano hipotético.
Assim considerando, pertinente se faz averiguar quais os parâmetros lógicos para a aplicação de tal teoria, sem que se enverede para a seara da tão atualmente criticada “indústria do dano”.
Importante, ainda, a identificação do erro de diagnóstico e as hipóteses em que autorizam indenizações para que, então, possa ser analisada a possibilidade de aplicação da responsabilidade civil do médico pela perda de uma chance quando ocorrer este tipo de circunstância.
É certo que não seria possível fincar-se um norte extremamente seguro acerca do instituto da perda de uma chance, mas este estudo – que não tem o condão de exaurir o assunto, diga-se de passagem – pretende traçar alguns parâmetros da sua aplicação, de modo que, quando ela ocorra, tal se dê de modo adequado e pertinente.
Espera-se, deste modo, que este ensaio se perfaça em linhas de útil e agradável leitura.
2 DA ATIVIDADE MÉDICA
A atividade do médico tem por fim a prevenção de males que acometem o ser humano ou, ainda, a preservação do seu estado de saúde, sendo assim uma atividade socialmente imprescindível.
O caráter de fundamentalidade dessa profissão resta reconhecido por todos e se mostra destacado no próprio preâmbulo de seu Código de Ética:
“Enquanto profissão, a Medicina visa prevenir os males e à melhoria dos padrões de saúde e de vida da coletividade”.[1]
2.1 Da natureza jurídica da relação médico-paciente
Há certa divergência entre os doutrinadores quanto à natureza jurídica da relação médico paciente: para uns, é um contrato de prestação de serviços e, para outros, é um contrato sui generis, pois o médico não se limita a prestar serviços estritamente técnicos. Além disso, coloca-se numa posição de conselheiro, de guarda e protetor do enfermo e de seus familiares.[2]
No entanto, mesmo os que entendem ter natureza contratual, não desconsideram o fato de que, “[…] que poderá existir responsabilidade médica que não tenha origem no contrato: o médico que atende alguém desmaiado na rua, v.g.”[3]
Dentre os que negam a contratualidade pura da relação, está Hildegard Taggesell Giostri, que cita nove situações capazes de modificar a natureza da responsabilidade médica, transpondo-a para o campo da extracontratualidade[4].
No entanto, deve-se considerar que mesmo na extracontratualidade, com o atendimento, o médico passa, de imediato, a ter obrigação contratual com o paciente, em razão de seus deveres morais e ético-profissionais. Por isso o profissional médico necessita observar as regras que regem seu trabalho, seja por força de lei, do comportamento ético ou de contrato,[5] que inegavelmente impõem direitos e deveres aos atores desta relação.
2.2 Dos direitos e deveres jurídicos dos sujeitos
Como alhures afirmado, é inegável que da relação médico-paciente, resultam conseqüências de ordem social e profissional. No entanto, ao contrário do que o leigo poderia concluir, por tratar-se de relação, também, de cunho jurídico, vários são os direitos e deveres havidos entre ambos.
Fernanda Schaefer é quem traz de modo mais adequado a enumeração dos direitos e deveres do profissional médico, tendo esta cunho meramente didático e não exaustivo:
Dentre os deveres do profissional médico, pode-se citar: informar e aconselhar a fim de que o paciente esteja ciente e de acordo com as suas condições e o tratamento a ser realizado (artigo 59 do Código de Ética); assistência; perícia, prudência e diligência; ouvir o paciente e interrogá-lo sobre seus sintomas a fim de chegar a um diagnóstico preciso; recomendar o melhor tratamento, explicando, inclusive, a técnica a ser utilizada; manter-se informado sobre o quadro clínico do paciente; dever de vigilância; dever de sigilo (artigo 11 do Código de Ética); dever de guardar a vida humana (artigo 6° do Código de Ética); dever de aperfeiçoamento constante, principalmente na área do diagnóstico que passa por transformações constantes devido ao desenvolvimento de novas tecnologias.[6]
Quanto aos direitos dos médicos, eles restam elencados nos artigos 20 e seguintes do Código de Ética, podendo-se destacar os seguintes: tratar sem limitação da escolha dos meios de diagnósticos e de tratamento (artigo 16 do Código de Ética); direito de poder exercer sua profissão sem ser discriminado (artigo 35 do Código de Ética); indicar o procedimento que achar mais adequado, respeitando as normas reguladas pelos órgãos de fiscalização da profissão (artigo 21 do Código de Ética); direito de apontar as falhas nessas normas e demais regulamentos (artigo 22 do Código de Ética); direito de recusar exercer sua profissão em instituições que não lhe ofereçam as mínimas condições de trabalho (artigo 23 do Código de Ética); direito de suspender suas atividades por falta de pagamento dos salários, salvo no que diz respeito ao atendimento de casos de urgência e emergência (artigo 24 do Código de Ética); direito de internar o paciente em hospital que este escolheu, mesmo que não faça parte do corpo clínico (artigo 25 do Código de Ética); requerer desagravo público (artigo 26 do Código de Ética); recusar a realização de atos que, embora sejam permitidos, estejam em desacordo com sua consciência (artigo 28 do Código de Ética); dedicar o tempo que achar necessário ao atendimento de seu paciente (artigo 27 do Código de Ética); direito de, nos casos de iminente perigo de vida, contrariar a família do paciente ou seu responsável e direito de não continuar a prestar assistência se suas prescrições não estiverem sendo cumpridas pelo paciente.[7]
Do prisma dos pacientes, também é importante destacar que possuem na relação obrigações e benesses.
São seus deveres: remunerar o seu médico; cumprir as prescrições médicas, sob pena de perder a assistência do seu médico; fornecer dados corretos sobre seu histórico clínico e familiar para a condução de um diagnóstico correto e dever de informar seu médico sobre o cumprimento, ou não, de suas recomendações ou sobre reações adversas daquelas esperadas.[8]
Ter preferência sobre a pessoa sadia; ser tratado com dignidade e respeito; direito à assistência contínua, eficiente e qualificada; assistência religiosa; direito de manter relacionamento pessoal com o médico e seus auxiliares; direito à verdade e informação sobre seu estado de saúde e formas de tratamento; direito de acesso aos seus prontuários; direito ao segredo profissional quanto à sua doença; direito à justiça social e à igualdade de tratamento; escolher o médico e de ser informado sobre sua especialidade e qualificações; direito de recorrer ao Judiciário e aos Conselhos Regionais de Medicina sempre que se sentir lesado ou ameaçado; direito de gravar ou filmar atos médicos; solicitar à Junta Médica que se reúna para discutir sobre sua doença; recusar determinados tratamentos e direito de visita de seus parentes e de acompanhante durante sua internação[9], são os principais direitos dos assistidos pelo profissional da Medicina.
2.3 Da conduta ética profissional
Embora seja um dever de ordem geral, bem como inerente à atividade, deve-se destacar que a prática traz consigo a discussão sobre a ética, pois existem questões externas à ciência médica. As respostas às questões “que sentido dar ao trabalho”, “o que fazer”, ou “a quem servir” com os conhecimentos médicos adquiridos, não podem ser encontradas em nenhum manual de medicina.[10]
Alberto Moreira cita cinco objetivos éticos a serem buscados pelo médico, a saber: o bem do paciente em primeiro lugar; preservar a vida; não prejudicar o paciente por quaisquer meios; respeitar a dignidade e a liberdade da pessoa; ser digno da confiança nele depositada.[11]
Esses, por sua vez, dão origem aos princípios da ética médica, a saber: humanidade; autodeterminação e responsabilidade. O primeiro princípio diz respeito ao mínimo desejado no que se refere ao tratamento do indivíduo. O segundo está relacionado ao direito que o médico tem de decidir por si mesmo. Ressalta-se que há limites à sua autodeterminação, tendo em vista os direitos do paciente. O último consiste na obrigação de responder pelas ações empregadas pelo profissional, que são inúmeras, devido à avançada tecnologia.[12]
Além dos direitos e deveres já resumidamente trazidos acima, há também algumas vedações ao profissional da Medicina, estando as mesmas previstas nos artigos 46 a 55 e 122 a 140 do Código de Ética Médica.[13]
3 DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
“Do organismo humano, com suas particularidades ligadas às condições subjetivas e genéticas, à idade, ao sexo, aos fatores climáticos e topográficos, aos efeitos excepcionais da moderna farmacopéia e, também, à inteligência e capacidade do médico, extrai-se a ilação de que o absoluto no campo da medicina quase não existe. É extremamente difícil exarar juízo sobre a culpa profissional individual. A certeza, quase sempre, é substituída por avaliação probabilística”[14].
Por isso, há a imperiosa necessidade de avaliação do caso concreto, com a observação de suas peculiaridades, a fim de se aferir a existência ou não de responsabilidade por parte do médico, em se constatando eventual dano ou prejuízo a paciente que tenha atendido.
Algumas questões merecem, portanto, ser analisadas nesta seara, de modo que se chegue, quando necessário, a um adequado entendimento/posicionamento sobre a responsabilidade civil médica.
3.1 Origem histórica e evolução
Desde o começo da prática da Medicina o médico responde pelos seus atos. “A responsabilidade daquele profissional surgiu, historicamente, com as mais primitivas legislações.”[15]
É noção comum que na Antiguidade a atividade médica estava ligada à religião, pois o médico era considerado “um mago ou sacerdote, dotado de poderes curativos sobrenaturais.”[16] Mesmo nesta fase o médico já era considerado responsável pelos atos que não levavam à cura do enfermo.
Algumas codificações tratavam da responsabilidade do médico, sendo as principais: o Corpo de Leis do rei Urukagina, de Lagos, no terceiro milênio da era pré-cristã; a coleção de Leis do rei Ur-Namur (2111-2084 a.C.); o Código de Lipsit Isthar de Isin (1934-1924 a.C) e as Leis de Eshnumma, do Rei Dadusha (1875-1787 a.C.).[17]
O Código de Hammurabi, 1970-1770 a.C., já previa punições para os médicos[18]. Da leitura dos seus artigos[19], nota-se que o profissional da medicina era rigorosamente punido (sem averiguação de culpa) pelo mau êxito em alguma intervenção, sem o escopo de indenizar a vítima ou seus familiares e com a notória a confusão entre a responsabilidade civil e penal.
Importante mencionar que, no Egito, o médico possuía melhor posição social, pois lá também se confundia com os sacerdotes. Havia um livro com regras que deveriam ser respeitadas pelo profissional. Mesmo que o paciente viesse a morrer o médico não seria responsabilizado, desde que respeitasse as normas previstas.[20]
Em Roma, primeiramente, surgiu a vingança privada como forma de reparar o dano causado pelo médico. Após, o Estado passou a intervir nas relações entre médico e paciente, de forma a dizer quando a vingança poderia ser justificada. Com a Lei das XII Tábuas, a profissão do médico passou a ganhar maior prestígio social. Havia a possibilidade, ainda, de reparação com quantia em dinheiro. Quando do surgimento da Lex Aquilia (458 a.C) o médico poderia ser condenado à pena de morte ou mesmo deportado se considerado culpado.[21] Pode-se perceber, deste fato, que os médicos eram severamente punidos e isto desonrava a profissão.
Na Grécia, entre os séculos V e VI a.C. é que foi encontrado estudo no campo da Medicina, consistente em um conjunto de manuscritos, o Corpus Hippocraticum, que possui noções aristotélicas e foi escrito por Hipócrates e seus discípulos. Seguindo os fundamentos adotados no Egito, a culpa médica foi admitida na Grécia levando em conta a morte do paciente somado ao fato do médico desobedecer às prescrições fundamentais de sua atividade.[22]
A condição do médico começou a melhorar no século XII, quando surgiram as universidades e, empós, as corporações de médicos. Nesta época, eles começam a obter maior proteção legal.[23] Neste período, merece destaque uma sentença do Júri dos Burgueses de Jerusalém, determinando que um médico pagasse determinada quantia em dinheiro como forma de indenização pela morte de um enfermo.[24]
Gradativamente o exercício da Medicina, que estava relacionado à religião, foi conquistando seu lugar de destaque na sociedade até “em 1335, por edito do rei da França, Jean I, que o exercício da Medicina se restingiu aos diplomados em Universidades.”[25]
O Direito Canônico, nos séculos XIII a XVII, também exerceu forte influência no que toca à responsabilidade civil do médico, pois era imprescindível a apresentação de provas concretas e exames detalhados dos fatos para que o médico fosse condenado. No mesmo sentido, em 1532, foi promulgado o Código Criminal Carolino de Carlos V que requeria pareceres e exames de profissionais da Medicina para julgar e condenar o médico.[26]
No século XIX, a Academia de Medicina de Paris decidiu, em 1829, que os médicos apenas seriam moralmente responsáveis pelos seus atos, quase desaparecendo a responsabilidade jurídica deles.[27] Para a caracterização da responsabilidade médica, seria imprescindível provar a falta grave cometida, a imprudência e imperícia, doutrina “denominada por Iturraspe de responsabilidade eufemística”[28]. Sob esse ponto de vista, somente erros grosseiros levariam a responsabilização do médico.
O Direito francês foi inspiração para o Direito brasileiro e outros (até por isso mais veemente analisado neste estudo), trazendo mudanças significativas para o instituto da responsabilidade civil do médico. Na França, modernamente, é plena a reparabilidade do dano médico, devendo aquele indenizar o paciente todas as vezes que poderia prever um acidente, mesmo que raro e não o fez.[29]
No Brasil, apenas em 1932 os legisladores editaram o Decreto 20.931, que regulava e fiscalizava o exercício da Medicina, da Odontologia, da Medicina Veterinária e das profissões de Farmacêutico, parteira e enfermeira, além de estabelecer penas para práticas ilícitas ligadas a estas profissões.
Em 1945, o Decreto-Lei n. 7.955, instituiu os Conselhos de Medicina. Após, foi revogado, em 1957, pela Lei n. 3.268, que passou a dispor sobre eles.
Por último, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009, aprovou o atual Código de Ética Médica, que entrou em vigor em 13 de abril de 2010, sendo o sexto Código de Ética Médica reconhecido no Brasil.[30]
3.2 Espécies de responsabilidade civil médica
Fator de extrema importância na seara reparatória é a identificação da modalidade obrigacional a que pertence a responsabilidade: se se trata de obrigação de meio ou de resultado.[31]
Em regra[32], a obrigação assumida pelo médico é de meio, pois “não se compromete a curar, mas a prestar seus serviços de acordo com as regras e os métodos da profissão, incluindo aí cuidados e conselhos”[33], e por isso, responderá apenas se houver culpa provada em qualquer de suas modalidades.
Quando à natureza jurídica da responsabilidade médica, o Código de Defesa do Consumidor remata essa discussão ao dispor que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”, no parágrafo 4° do artigo 14.[34]
Disso implica dizer que também será uma obrigação de cunho subjetivo, devendo a sua culpa ser provada, embora possua natureza jurídica contratual[35], excetuando-se os casos de cirurgia estética, por ser obrigação de resultado e a responsabilidade fundada na culpa presumida.
A essa respeito Sérgio Cavalieri Filho comenta que “[…] o Código do Consumidor foi bem claro ao dizer que a exceção só abrange a responsabilidade pessoal do profissional liberal, não favorecendo, portanto, a pessoa jurídica na qual ele trabalhe como empregado ou faça parte da sociedade”.[36]
3.2.1 Culpa médica e desdobramentos da atividade
A responsabilização do médico está intrinsecamente ligada à culpa, visto a relação de pessoalidade estabelecida entre o médico e o paciente. E pode ser examinada sob três perspectivas: a primeira refere-se à responsabilidade pessoal do médico; a segunda diz respeito às instituições de prestação de serviços de saúde privados; e a última diz respeito ao Sistema Único de Saúde (SUS), serviço público custeado por recursos públicos.[37]
A responsabilidade do profissional médico está fundada no artigo 14, §4° do Código de Defesa do Consumidor, cujo teor é o seguinte: “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.” Em face disto, aplica-se aos profissionais liberais a responsabilidade subjetiva, embora haja relação contratual, conforme exposto anteriormente.
No mesmo sentido, dispõe do artigo 951 do Código Civil ao prescrever que:
“O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”.
Já a responsabilidade dos hospitais e clínicas de prestação de serviços privados, caracterizam-se como fornecedores de serviços de saúde, aplicando-se a regra do artigo 3°[38] do Código de Defesa do Consumidor. Assim, respondem por danos causados aos pacientes, com fundamento no caput do artigo 14 deste Código[39], ou seja, possuem responsabilidade objetiva, desde que o médico tenha agido com culpa.
Do que foi dito até agora é possível extrair que o médico que trabalhar em um hospital responderá por culpa, este, por sua vez, responderá objetivamente, visto que a responsabilidade do médico componente da equipe médica de determinado hospital é exceção à regra do artigo 14[40] do Código de Defesa do Consumidor.
Por último, em relação aos serviços prestados pelos estabelecimentos de saúde mantidos por recursos públicos não se aplica o Código de Defesa do Consumidor, uma vez que são serviços públicos uti universi, ou seja, são de acesso igualitário e universal sem necessidade de remuneração direta da população. Estes estão submetidos ao regime de responsabilidade objetiva extracontratual do Estado, com previsão do artigo 37, §6°[41] da Constituição de1988 e, da mesma forma, às normas do Código Civil, relativa à determinação da indenização.[42]
Feitas essas considerações, a dúvida paira sobre a necessidade de se saber quando a responsabilidade do médico e do hospital é solidária, quando é exclusiva do hospital e quando é exclusiva do médico.[43]
Ato contínuo, importa saber se o médico é contratado (empregado ou contrato de prestação de serviços) do hospital, sendo que em caso positivo, é considerado seu preposto. Assim, aplica-se prevista no artigo 932, III do Código Civil.
Portanto, o responsável primário será o hospital, assegurado o direito de regresso contra o empregado ou preposto se ele for o responsável imediato pelo dano. Salienta-se que a vítima pode propor ação contra qualquer um deles ou contra ambos.[44]
“No entanto, se o profissional apenas utiliza o hospital para internar seus pacientes particulares responde com exclusividade pelos seus erros, afastada a responsabilidade de estabelecimento”[45], pois o estabelecimento foi contratado apenas para hospedar o paciente, não lhe dispensando qualquer tratamento, realizando, o paciente, dois contratos distintos, sendo que o nosocômio somente será responsabilizado se causar dano em razão do contrato de hospedagem e da ação ou omissão de seus empregados, como enfermeiros, atendentes, cozinheiros, zeladores e demais auxiliares, responderá objetivamente, em razão da previsão contida no artigo 932, III, cumulado com o artigo 933, ambos do Código Civil.[46]
No mesmo sentido, “estão também sujeitos à disciplina do referido Código, com responsabilidade objetiva e de resultado, os laboratórios de análises clínicas, bancos de sangue e centros de exames radiológicos, como prestadores de serviços”[47]
E, por último, caso médico não contratatado pelo hospital tenha má conduta profissional, a responsabilidade será exclusivamente sua, ou, se for o caso, da equipe médica, mas não do hospedeiro.[48] E, ainda, no caso de ambos terem agido com culpa, ainda que o médico não seja preposto do hospital, responderão solidariamente.[49]
3.2.2 Da culpa médica, erro médico e erro profissional
Antes de abordar ainda mais detalhadamente a culpa médica, faz-se necessária a distinção entre culpa e erro profissional. E é Sérgio Cavalieri Filho quem aponta a diferença:
“Culpa e erro profissional são coisas distintas. Há erro profissional quando a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta; há imperícia quando a técnica é correta, mas a conduta médica é incorreta. A culpa médica supõe uma falta de diligência ou prudência em relação ao que era esperável de um bom profissional escolhido como padrão; o erro é a falha do homem normal, conseqüência inelutável da falibilidade humana. E, embora não se possa falar em um direito ao erro, será este escusável quando invencível à mediana cultura médica, tendo em vista circunstâncias do caso concreto”.[50]
Portanto, pode-se perceber que a diferença consiste no fato que de nos casos de erro profissional, o médico procede corretamente, sendo o mesmo imputado à limitação da profissão e da natureza humana.[51]
A culpa médica rege-se pelos mesmos fundamentos da responsabilidade em geral, de maneira que quem pratica um ato, com discernimento, liberdade ou intencionalidade, possuindo opção de escolha, é obrigado a indenizar a vítima pelas conseqüências danosas dos seus atos, aplicando-se os mesmos princípios relativos à individualização da culpa.[52]
Destaca-se que a prova da culpa é indispensável para a responsabilização do médico, devendo ser analisada em cada caso:
“Em suma, será preciso apurar em cada caso se, à luz da ciência e do avanço tecnológico que o médico tinha à sua disposição, era-lhe ou não possível chegar a um diagnóstico correto, ou a um tratamento satisfatório, resultado, esse, não obtido por imperícia, negligência ou imprudência injustificável”.[53]
Portanto, a análise da culpa do médico é realizada de acordo com o caso concreto, vez que é feita a verificação da sua conduta em relação aos procedimentos para com o paciente.
Por seu turno, e inserido no contexto culposo, reside o erro médico, que guarda subespécies, como o erro no diagnóstico, o erro na ministração de medicamentos, o erro na cirurgia, o erro nos cuidados prescritos, o erro na indicação de tratamento pós-operatório, entre outros possíveis.
O erro médico pode ser conceituado como “a falha no exercício da profissão. Com resultado diverso do pretendido, decorrente de ação ou omissão do médico ou demais profissionais da sua equipe.”[54]
Giostri ainda acrescenta que “se erro médico é o advento de um mau resultado para o paciente, por conta de um ato médico, deve-se entender que o insucesso é um mau resultado advindo para o paciente por conta de sua resposta orgânica.”[55]
O erro médico pode ser dividido em erro culposo e erro doloso. Erro culposo é aquele praticado pelo agente nas modalidades de imperícia, imprudência ou negligência, e o erro doloso, por sua vez, será aquele “no qual o agente quis o resultado (dolo direito) ou assumiu o risco de produzi-lo (dolo indireto).”[56]
Importa saber é que o médico poderá ser responsabilizado nestas duas modalidades, sendo que, no último caso, responderá penalmente, também. Ademais, impende destacar que isto influenciará no valor da indenização da responsabilidade.[57]
O erro médico também pode ser concebido como escusável e inescusável: “o erro escusável é aquele que era inevitável, ou seja, mesmo que o agente tivesse tomado todas as cautelas o dano ocorreria”[58] e o “erro inescusável é aquele que poderia ser evitado pelo agente se tivesse tomado todas as cautelas diversas e necessárias antes de agir é, portanto, evitável.”[59]
Quanto ao erro profissional, Schaefer acredita que ele é englobado pelo erro médico e não se pode concordar com a diferenciação feita pelos magistrados.[60] Contudo, Cavalieri, em sentido contrário justifica esta distinção:
“Há erro profissional quando a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta […] E, embora não se possa falar em um direito ao erro, será este escusável quando invencível à mediana cultura médica, tendo em vista circunstâncias do caso concreto.”[61]
Desta maneira, o erro profissional, também chamado de erro de técnica “advém da incerteza da arte médica, sendo ainda objeto de controvérsias científicas”[62]. O erro médico, ou profissional, pode, ainda, ser desdobrado em erro de diagnóstico, que em separado – e adiante – abordar-se-á.
3.2.3 Do erro de diagnóstico
Antônio Chaves classifica o erro médico como uma falha de técnica que, por sua vez, pode ser dividida em erro de diagnóstico; de tratamento; faltas em intervenções cirúrgicas; erro de prognóstico; falta de higiene e erros cometidos por outros profissionais pertencentes à equipe médica.[63]
Irany Novah Moraes destaca que o diagnóstico é complexo e, por isso, exige que seja considera sob quatro vertentes, são elas:
“O diagnóstico funcional é facilmente feito pelos dados da história clínica bem tomada é às até mesmo só pela queixa do paciente.
O diagnóstico sindrômico depende da competência do médico tirar bem a história clínica, interpretando sua evolução a cada alteração no quadro ou sintoma; é mis explicativo do que objetivo e indica como a função do órgão ou a estrutura afetada foi alterada pela doença.
O diagnóstico anatômico, o exame físico bem feito, é rico em sinais, e os exames complementares de imagem são modernamente cada vez menos invasivos, e mais exatos com maior precisão, melhor sensibilidade e sempre com progressiva exatidão.
O diagnóstico etiológico costuma ser o mais difícil, embora com todo progresso da biotecnologia, pois, de quase mil doenças oficialmente catalogadas pelas organizações internacionais, apenas se conhece a causa de um terço delas. Tudo ser torna difícil quando se procura juntar os dados oferecidos pelo paciente e os obtidos pelos exames físicos e complementares para enquadrá-los em um dos seguintes itens que relaciona todas as causas conhecidas das doenças: 1. inflamação; 2. infecção; 3. infestação; 4. degeneração; 5. neoplasia; 6. alteração metabólica; 7. problema imunológico; 8. envenenamento; 9. traumatismo (químico, elétrico, por radiação nuclear ou raios x); ou por exclusão dos demais resta a confissão da causa desconhecida; 10. idiopática.”[64]
Pode ser conceituado como “a arte de determinar a natureza de uma doença ou a conclusão a que se chega na identificação de uma doença”[65], ou, ainda “distinção entre moléstias de caráter similar mediante a comparação de seus sinais e sintomas.”[66]
Em suma, o ato de diagnosticar é “feito pelo médico considerando todos os sinais, manifestações e sintomas apresentados pelo paciente, bem como levando em consideração a ananmese sem, contudo, influenciar o enfermo na descrição da evolução da doença”.[67]
Além das subdivisões mencionadas no item anterior (tocantes ao erro médico lato sensu), o erro de diagnóstico pode ser dividido, ainda, em evitável e inevitável:
“Serão inevitáveis quando decorrente das próprias limitações da Medicina, ou seja, são inúmeras as doenças ainda não catalogadas e outras tantas das quais não se conhecem as causas, os avanços tecnológicos às vezes não se mostram suficientes para determinar um correto diagnóstico. Não constituem faltas graves, portanto, não são puníveis. […]
Maior atenção deve-se ser dar aos erros de diagnósticos evitáveis […] são erros que teriam sido evitados se todas as precauções necessárias (como realização de exames clínicos, laboratoriais, físicos etc.) tivessem sido tomadas.”[68]
Essa última espécie de erro de diagnóstico, qual seja, evitável, pode trazer sérios problemas ao paciente que de alguma forma é orientado de forma equivocada pelo médico, pois pode levar à realização de um tratamento que não condiz com a patologia apresentada.
Da mesma forma que o erro profissional,
“[…] se tem afirmado que o erro de diagnóstico, que consiste na determinação da doença do paciente e de suas causas, não gera responsabilidade, desde que escusável em face do estado atual da ciência médica e não lhe tenha acarretado danos. Porém, diante do avanço médico-tecnológico de hoje, que permite ao médico apoiar-se em exames de laboratório, ultrassom, ressonância magnética, tomografia computadorizada e outros, maior rigor deve existir na análise da responsabilidade dos referidos profissionais quando não atacaram o verdadeiro mal e o paciente, em razão de diagnóstico equivocado, submeteu-se a tratamento inócuo e teve a sua situação agravada, principalmente se se verificar que deveriam e poderiam ter submetido o seu cliente a esses exames e não o fizeram, optando por um diagnóstico precipitado e impreciso.”[69]
Ainda, muitas vezes, exames complementares podem influenciar a conduta médica de maneira a levar a um diagnóstico preciso. Neste ponto, há necessidade de averiguar se o médico dispunha do aparelho, bem como dos materiais necessários à execução dos exames.
A título de comparação, na Itália e França, o erro de diagnóstico não configura culpa capaz de justificar o ressarcimento, pois é considerado brando, uma vez que acreditam que é percebido muito cedo. Por outro lado, esse tipo de erro pode levar a perda da chance de cura ou sobrevivência de um paciente. Nesse sentido, o médico somente será responsável pelo erro de diagnóstico injustificável, evitável ou grosseiro.[70]
Para ilustrar e encerrar, Schaefer[71] traz os seguintes exemplos de erros de diagnósticos: operação de cesariana realizada em mulher com gravidez psicológica; acidente vascular cerebral diagnosticado como simples indisposição, enquanto paciente já sofria de problemas cardíacos graves e tinha colesterol altíssimo; tratar artrite química como se fosse fratura; pensando ser apendicite (sem realização de exames prévios básicos) precede à intervenção cirúrgica em caso de litíase ureteral; aplica tratamento de uma doença que o paciente não tinha e não tenta descobrir qual era a enfermidade que o acometia; diagnostica de forma leviana ou inexata, quando os exames indicam claramente a existência de outra moléstia; diagnostico da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA ou AIDS) quando, na realidade, as amostras de sangue foram trocadas e etc.
3.3 Excludentes da responsabilização médica
Observados os elementos que podem interferir na responsabilidade do médico, de modo mais veemente a culpa e o erro, imperioso trazer à lembrança as hipóteses de exclusão, uma vez que caracterizada uma delas, o profissional da medicina deixará de ser responsabilizado pelo dano experimentado pelo paciente.
A primeira excludente é a culpa exclusiva do paciente, que ocorre caso o dano se perpetre em razão de procedimento (omissivo ou comissivo) daquele. Neste caso, o médico não pode ser responsabilizado, uma vez que não obrou com culpa.
Importante estabelecer que, se de alguma forma o médico concorre na concretização de determinado resultado, não há que se falar mais em culpa exclusiva da vítima.[72]
A segunda excludente toca ao fato de terceiro capaz de isentar o médico da responsabilidade e consolida-se quando alguém ocasiona um dano. Esse alguém pode ser um parente do paciente, por exemplo.
Destaca-se que esse terceiro não pode fazer parte da equipe médica, sob pena de caracterizar fato de outrem, “já que o profissional é responsável por seus prepostos, tais quais, enfermeiros, auxiliares e instrumentadores […].” [73]
O fato das coisas é a terceira excludente, ocorrendo quando o dano é causado pelo próprio aparelho, independentemente do cuidado do profissional.[74] Assim, se o dano é verificado por defeito do aparelho, entra-se na seara da responsabilidade objetiva do fabricante[75], de acordo com a previsão contida no Código de Defesa Consumidor. Neste caso, se o médico for acionado, caberá ao mesmo direito de regresso[76].
O caso fortuito é a quarta excludente, que acontece quando “ocorrências extraordinárias e excepcionais, alheias à vontade e à ação do médico, e que guardam as características da imprevisibilidade e da inevitabilidade” causam dano ou prejuízo ao paciente[77][78].
A quinta excludente é a força maior, que Cunha Gonçalves entende dizer “[…] respeito ao fato que se prevê, ou que pode ser previsível, mas que, igualmente, não é possível evitar, visto ser, também, mais forte do que a vontade ou a ação do homem”[79], como, por exemplo, o raio, a chuva, a enchente, o terremoto, dentre outros acontecimentos que poderão ocorrer durante o atendimento médico.
Feitas considerações sobre a responsabilidade civil do médico, para a boa condução do tema e antes de verificar-se a responsabilidade civil do médico pela perda de uma chance quando do erro de diagnóstico, inicia-se breve explanação a respeito da teoria da perda de uma chance e sua compatibilidade com o ordenamento brasileiro.
4 DA RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE
Há muitos estudos sobre a responsabilidade civil, mas no Brasil pouco se tem sobre a responsabilidade civil pela perda de uma chance. Para tal estudo, muito se utiliza da doutrina, da jurisprudência e da sua previsão em legislação estrangeira, uma vez que carece o ordenamento jurídico nacional de disposição expressa acerca de sua aplicação.
4.1 Sobre a teoria da perda de uma chance
“Inúmeras são as situações na vida cotidiana em que, tendo em vista o ato ofensivo de uma pessoa, alguém se vê privado da oportunidade de obter uma determinada vantagem ou de evitar um prejuízo.”[80]
O fato de indenizar o dano decorrente desta oportunidade de obter vantagem ou evitar um prejuízo foi, durante muito tempo, deixado de lado pelo Direito, pois não se tinha uma certeza se sem o ato do agente a vantagem seria obtida.[81]
A expressão ethereal torts foi cunhada por Nancy Levit para designar danos indiretos e intangíveis causados em relação às pessoas ou ao seu patrimônio, como, por exemplo, a perda de uma chance, quebra de privacidade, expectativa ou confiança. Até então, historicamente, somente danos diretos e tangíveis eram reparados.[82]
O exemplo mais antigo que se tem sobre a aplicação do conceito de dano pela perda de uma chance pode ser encontrado na jurisprudência francesa em 1889, quando a Corte de Cassação determinou que a demandada fosse indenizada pela atuação culposa de um oficial ministerial, mediante normal procedimento, que extinguiu todas as possibilidades de a demanda lograr êxito.[83]
Assim, o acolhimento da teoria da perda de uma chance passa a visualizar um dano que independe do resultado final.
Modernamente, o campo de aplicação da perda de uma chance foi expandido, pois passou a ser observada tanto nos danos advindos do inadimplemento contratual, daqueles gerados pelos ilícitos absolutos, bem como nas hipóteses regidas pela responsabilidade subjetiva e objetiva.[84]
A teoria tem como característica a perda de uma vantagem que a vítima esperava auferir, tal qual se fosse uma aposta. A segunda característica, igualmente importante, consiste na falta de nexo causal entre a perda dessa aposta e o ato causador do dano, diferindo a perda de uma chance das outras espécies de dano (moral ou patrimonial, por exemplo). Nesse contexto a aposta pode ser denominada como dano final ou vantagem esperada pela vítima, podendo desaparecer em função de causas externas.[85]
Para melhor observação destas duas características, Rafael Peteffi traz três exemplos, nos quais é possível a observação das mesmas:
“[…] o caso de afamado peão que é impossibilitado de participar da fase final de um rodeio devido à falta de pagamento da respectiva inscrição, que deveria ter sido efetuado pelo seu agente. Aqui, não se observa o nexo de causalidade necessário entre a falha do agente e a perda da vantagem esperada pelo peão, representada esta pelo prêmio concedido ao vencedor do certame. Com efeito, o peão poderia restar sem qualquer premiação, mesmo que fosse autorizado a participar da fase final do rodeio, já que vários fatores aleatórios (acaso) poderiam ter sido a causa da perda da vantagem esperada, tais como: a dificuldade da prova ou a perícia dos outros competidores. Portanto, já que o dano poderia ter sido causada pelo acaso, o peão prejudicado deveria suportá-lo de maneira integral.
Entretanto, o já aludido progresso no estudo da probabilidade possibilitou a criação de algumas “leis do acaso”. Assim, estatisticamente, é lícito perquirir quais eram as chances de aprovação do referido peão e quais foram subtraídas de forma culposa pelo seu relapso agente. Este novo aspecto probabilístico da chance perdida foi terreno fértil para o advento de um instrumento dogmático utilíssimo, capaz de criar uma nova categoria de dano indenizável: as chances perdidas.
[…] atitude culposa de um advogado que perde o prazo do recurso de apelação e faz com que seu cliente não tenha a chance de ver o seu direito reconhecido nas instância superior.
[…] no caso Falcon v. Memorial Hospital, uma gestante adentrou o hospital para ter um bebê e logo após ter dado à luz acabou morrendo por embolia pelo fluído amniótico. A família ajuizou demanda indenizatória pela morte da gestante contra o médico e o hospital, pois, apesar de saber que os pacientes que sofrem esse tipo de embolia têm apenas trinta e sete por cento (37%) de chances de sobreviver, a negligencia do médico responsável havia subtraído todas as chances da paciente de sobrevier à referida embolia. A Suprema Corte do Estado de Michigan concedeu a reparação.”[86]
Nos três casos, nunca se poderá saber, com certeza, se foi o agente causador do dano que, necessariamente, fez com que a chance fosse perdida, visto que:
“[…] o prognóstico retrospectivo que se poderia fazer para saber se o demandante ganharia a causa, ou se o cavalo ganharia a corrida, ou se a gestante permaneceria viva, é bastante incerto, cercado de fatores exteriores múltiplos, como a qualidade dos outros cavalos, a jurisprudência oscilante na matéria da demanda judicial e as misteriosas características das enfermidades.”[87]
Embora não se possa ter certeza se a chance perdida foi diretamente decorrente do agente causador do dano, o prejuízo para a vítima é certo e é esse o prejuízo a ser indenizado pela perda de uma chance.[88]
Somado a isto, deve-se considerar a existência de uma elevada probabilidade de que o resultado fosse o normalmente esperado pela vítima e que ele somente não foi experimentado pela mesma em razão da ação ou omissão do ofensor (face à problemática deste estudo, pela conduta médica).
4.2 Natureza jurídica da responsabilidade pela perda de uma chance
Quanto à natureza jurídica da responsabilidade civil pela perda de uma chance, importa mencionar que é constantemente confundida com lucros cessantes. O que, de fato, não é. Esses são danos certos, cuja probabilidade apenas auxilia na sua quantificação.
Para tentar explicar a que categoria jurídica pertence a perda de uma chance, existem duas correntes antagônicas: a primeira defende ser uma concepção menos rígida do nexo causal e baseia-se na causalidade que a conduta do agente representa em relação ao dano final; a segunda tem como fundamento a ampliação do conceito de dano, sendo que, neste caso, as chances pedidas representam um dano autônomo.[89]
Para exemplificar, John Makdisi traz o seguinte caso: “Em Summers v. Tice a vítima teve seu olho direito atingido por um tiro disparado por um entre dois caçadores nas redondezas. A solução encontrada foi a responsabilidade solidária dos dois caçadores.”[90]
Os autores Jacques Boré e John Makdisi defendem que todos os casos de perda de uma chance se assentam sobre a idéia de causalidade parcial. Assim, as chances perdidas não são consideradas como um dano autônomo, mas como um meio de quantificar o nexo causal entre a ação do agente e o dano final. Se não assim consideradas, sempre que se está diante de um caso de perda de uma chance, de acordo com as mencionadas teorias tradicionais, a reparação do dano final não será possível, pois não se pode quantificar a conduta do agente como condição necessária para o surgimento da perda da vantagem esperada. Nesse sentido, se o prejuízo ocasionado não está totalmente relacionado com a conduta do ofensor, pode haver reparação de um dano parcial e relativo, consistente em perda de chances, devendo a reparação, neste caso, ser quantificada de acordo com a probabilidade de causalidade provada.[91]
Em suma:
“Toda a argumentação dos autores que não consideram as chances perdidas como nova modalidade de dano, autônomo e independente, tem como cerne a indissociabilidade deste com o dano final (vantagem esperada pela vítima), ou seja, as chances perdidas não subsistem de forma separada do prejuízo representado pela perda definitiva da vantagem esperada”.[92]
Rafael Peteffi traz o exemplo de um médico que não efetua procedimento recomendado pela boa técnica e retira 40% das chances de vida do paciente, que não sofre seqüelas, em vista do seu bom porte físico, e, por fim, indaga se existira a possibilidade de uma ação de indenização por parte do paciente. E, finalmente informa que a resposta é negativa.[93]
O fato de o paciente aguardar o resultado final do processo aleatório para saber se poderá ajuizar ação específica, macula a autonomia das chances perdidas, que se perdem no momento da falha médica, ficando aquele condicionado à perda definitiva da vantagem esperada, não fazendo jus à reparação.[94]
Em relação à causalidade concorrente, tem-se aplicado o critério da gravidade da culpa, que fica sem legitimidade quando trata da responsabilidade objetiva, que independe da culpa para gerar a reparação. Tendo em vista que o critério de divisão de responsabilidades possui controvérsias (se através da gravidade das culpas envolvidas ou por meio da proporção causal), há casos nos quais a responsabilidade do agente é diminuída, conforme a sua participação na ocorrência do dano.[95]
Já em relação à concorrência causal, “as predisposições são observadas quando existe um fato causador de certo dano à vítima, mas esta já apresentava potencialidade latente para a causação deste tipo de dano ou uma debilitação anterior.”[96]
Nesse sentido:
“A semelhança entre esta reparação equilibrada de acordo com a relação de causalidade entre ato do ofensor e dano final que ocorre no caso referido e a reparação moderada, que se observa nos casos de perda de uma chance, é inegável. Mormente, nos casos em que a noção de perda de uma chance é utilizada na área médica, pois o magistrado faz a relação das chances perdidas pela falha médica e aquelas perdidas pela predisposição mórbida do paciente”.[97]
A reflexão sobre a causalidade parcial difundida esbarra no requisito da condição necessária, que é indispensável para todas as teorias sobre o nexo de causalidade. Assim, a causalidade alternativa pode ser utilizada para resolver tal impasse, vez que flexibiliza o ônus da prova da condição necessária.[98]
Nesse contexto:
“[…] nos casos de perda de uma chance, a falha do agente, ou a falha médica ou do advogado, na constitui conditio sine qua non para o aparecimento do dano. A vantagem esperada pela vítima pode ser totalmente pedida, exclusivamente devido a outras causas, como o desenvolvimento da doença ou a jurisprudência vacilante em determinada matéria.”[99]
Conforme exposição acima, a adoção da causalidade parcial estaria proibida pelo fato de não existir possibilidade de gradação causal.
Contudo, Rafael Peteffi informa que já se sustentou que não “existe certeza em relação à prova do nexo causal, bastando uma carga probatória que forneça os elementos de convencimento do magistrado.”[100] Assim, mesmo de acordo com a teoria clássica da relação de causalidade, “o nexo é determinado por meio de probabilidades.”[101] Portanto, “a utilização da causalidade parcial não seria algo antinômico com a aplicação da teoria ortodoxa da causalidade.”[102]
Destarte, “com a utilização da causalidade parcial, o réu será condenado a pagar apenas pelo dano que, segunda as estatísticas, se espera que ele tenha causado.”[103]
Assim, verifica-se que a teoria da perda de uma chance foi considerada como integrante do conceito de nexo de causalidade, seja por meio da utilização da causalidade parcial, seja mediante presunções causais que levam à reparação integral do dano.[104]
Neste momento, passa-se a analisar a teoria da perda de uma chance como integrante da evolução do dano, também, um dos requisitos da responsabilidade civil. Aqui, amplia-se os danos suscetíveis de reparação, por meio da objetivação ou da coletivização. No primeiro caso, torna-se despicienda a prova da culpa e no outro, faz com que toda a sociedade arque com o ônus de reparar certas espécies de danos.[105]
Nesse sentido, Rafael Peteffi comenta que:
“Por intermédio dos argumentos expostos, grande parte da doutrina assevera que a teoria da responsabilidade pela perda de uma chance não necessita de noção de nexo de causalidade alternativa para ser validada. Apenas uma maior abertura conceitual em relação aos danos indenizáveis seria absolutamente suficiente para a aplicação da teoria da perda de uma chance nos diversos ordenamentos jurídicos”.[106]
A corrente doutrinária que entende a perda de uma chance como categoria de dano específico defende a autonomia das chances perdidas em relação ao dano final ou o prejuízo pela perda definitiva da vantagem esperada pela vítima, sendo que a simples interrupção do processo aleatório no qual se encontrava é suficiente para caracterizar um dano reparável.[107]
Possui mesmo entendimento, Giovanna Visintini:
“[…] considera que a perda de uma chance se trata de um tipo de dano projetado no futuro. Tal noção serviria para posicionar, no lugar do dano patrimonial ressarcível, um prejuízo freqüentemente incerto, ou seja, vinculado não de maneira clara, mas sim muito provável, ao evento danoso. Nessas condições exige que se recorra ao juízo de equidade – e por isso se distancia da reparação integral, que caracteriza o ressarcimento do dano patrimonial.”[108]
Diante disso, a responsabilidade civil por perda de uma chance pode ser considerada como categoria de dano específico, independente do dano final ou com recurso à causalidade parcial, modalidade por meio da qual será verificada a perda da vantagem esperada.
Destaque-se, ainda, que a perda de uma chance, se aplicada, não se soma a outras modalidades de responsabilidade civil, como o dano moral, por exemplo. Ela se perfaz em uma destas modalidades e exclui as demais, se levantada em eventual lide.
Assim, não pode a vítima ajuizar ação pedindo ressarcimento pelos danos morais, mais valores a título da perda da chance. A vítima terá de optar em requerer a indenização por perda de uma chance ou então comprovar a existência efetiva do dano moral e por ele ser reparado.
4.3 A responsabilidade pela perda de uma chance no direito brasileiro
Quanto a natureza jurídica da perda de uma chance, Sílvio Venosa afirma que estaria entre o dano emergente e o lucro cessante, sendo uma terceira classe de indenização.[109]
Saliente-se que a perda de uma chance não pode ser classificada como uma espécie de lucro cessante, posto que o agente causador do dano deverá indenizar tudo o que a vítima deixou de ganhar, não indenizando, desta maneira, a chance por si só considerada e esbarrando no requisito de certeza do dano para que possa ser indenizável.[110]
Ainda, há necessidade da existência de uma chance séria e real, entendendo os Tribunais em muitos casos que a frustração dessa chance serviria apenas como adicional do dano moral, gerando dano de natureza extrapatrimonial. Por outro lado, é certo que a perda de uma chance também pode acarretar danos patrimoniais, que pode ser considerado como um “agregador” do dano moral. O que não pode ocorrer é ser enquadrado como exclusivamente moral, uma vez que a oportunidade séria e real que reste frustrada de aumento do patrimônio pode causar prejuízos de natureza patrimonial, que se enquadra como subespécie de dano emergente.[111]
Como já mencionado, a chance perdida deve ser séria e real, não tendo relevância no ordenamento jurídico qualquer chance perdida, devendo haver elevada probabilidade de obtenção do resultado. Somente neste caso é que se poderá cogitar numa possível perda de uma chance caracterizada como dano material emergente.[112]
Os Tribunais Nacionais aplicam a teoria da perda de uma chance utilizando seus conceitos e aplicando os critérios para a verificação das sérias chances perdidas[113], sendo o chamado “Caso do Show do Milhão” o mais emblemático deles.[114]
Assim:
“A doutrina brasileira, da mesma forma, não obstante por vezes conceituar de forma equivocada o dano pela perda de uma chance, admite o valor patrimonial da chance por si só considerada e, com isso, contribui para o acolhimento da teoria em nosso país”.[115]
O fato é que essa teoria é compatível com o ordenamento pátrio.
Clóvis do Couto e Silva afirma que o motivo pelo qual a jurisprudência brasileira não aplicava a responsabilidade perda pela de uma chance residia no na previsão contida nos artigos 1.537 e 1.538 do Código Civil de 1916. [116]
Solucionando a celeuma, o novo Código Civil alterou os dispositivos, que atualmente correspondem aos artigos 948 e 949. De acordo com essa nova redação, não há limitação para a condenação em razão da responsabilidade civil pela perda de uma chance. No mesmo sentido, a Constituição Federal estabelece que a reparação deve ser justa, eficaz e plena, verificada, assim, a possibilidade de aplicação da perda de uma chance ou oportunidade.[117]
Ainda, poderia pairar dúvida em relação ao contido no artigo 944 do Código Civil, ao prescrever que “a indenização mede-se pela extensão do dano” e que “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.”
Porém, a leitura de tal artigo deve ser feita de maneira sistemática, vejamos:
“[…] ao se deparar com uma ação de responsabilidade civil, o julgador deverá procurar sempre atender ao princípio da reparação integral dos danos. Contudo, se em determinado caso concreto “houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano”, poderá reduzir equitativamente indenização, pois, neste caso, estará privilegiando outro princípio constitucional, que é o da justiça.”[118]
Em razão da evolução natural, o principal elemento de aceitação da teoria da perda de uma chance é a nova maneira de considerar as probabilidades.
Ainda, a evolução da responsabilidade civil permite-nos classificar a perda de uma chance como um dano injusto, devendo ser indenizado, pois anteriormente,
“[…] a vítima exercia papel secundário na responsabilidade civil. Contudo, a doutrina moderna vem modificando esse posicionamento, deixando de centrar o sistema na figura do comportamento do autor do dano, e passando a centrá-lo no evento dano em si. A responsabilidade civil vem sendo redefinida, assim, como uma reação contra o dano injusto”.[119]
De qualquer forma, a responsabilidade civil pela perda de uma chance, na maioria dos casos, será tida como um dano injusto e, por isso, caberá indenizá-la. Assim, a evolução da responsabilidade civil é mais um fundamento para a indenização desta nova espécie de dano.[120]
Sobre a aceitação da teoria da perde uma chance pelo como dano certo, Peteffi informa que:
“[…] a aceitação da perda de uma chance como uma espécie de dano certo aparece como o caminho que o direito nacional segue e continuará a seguir, eis que, no ordenamento brasileiro não se encontra qualquer dispositivo que possa tornar-se um óbice para a aplicação da teoria da perda de uma chance. Também se acredita que as propostas sobre a quantificação do dano, bem como as diferenciações em relação a modalidade de responsabilidade pela criação de riscos, estão em total conformidade com o nosso direito positivo e poderão enriquecer o modelo jurídico nacional da teoria da perda de uma chance.”[121]
Saliente-se que esse dano futuro certo não pode ser confundido com o dano hipotético ou eventual, o qual não é indenizável.
Ainda não há no ordenamento pátrio discussão sobre a natureza jurídica das chances perdidas, mas acredita-se que será admitida a hipótese em que a teoria da perda de uma chance depende de uma aplicação menos rígida do nexo de causalidade, que é a natureza aceita pelo autor acima mencionado. Ainda, constitui exceção ao modelo atual da responsabilidade civil do Brasil a aplicação da teoria da perda de uma chance na qual o processo aleatório foi até o final, necessitando da noção de causalidade parcial. Ademais, a maioria dos casos em que se utiliza esta noção estão na seara médica, situação tal defendida e debatida por Miguel Kfouri Neto, que, nesse sentido, se filia à corrente majoritária francesa e julga que nas demais áreas a perda de uma chance refere-se ao prejuízo.[122]
O mencionado autor refere que:
“[…] mesmo com os muitos perigos que podem advir da aceitação da teoria da perda de uma chance para os casos em que o processo aleatório chegou ao ponto derradeiro, normalmente verificado nas espécies referentes à área médico-hospitalar, existem hipóteses em que a negação absoluta da teoria geraria graves injustiças”.[123]
Por outro lado, a perda de uma chance, nesses casos, deveria ser aplicada subsidiariamente em relação à aplicação clássica do nexo causal, qual seja, aquela afeta à responsabilidade civil de maneira geral, concluindo-se que observado esse parâmetro, bem como o fato de verificar a seriedade da chance perdida, é possível afirmar que a perda de uma chance aplicada em hipóteses nas quais o processo aleatório chegou ao seu final, significa evolução do nexo causal e não desvirtuação.[124]
Com efeito, também não há obstáculos à aplicação da teoria da perda de uma chance nos casos em que o processo aleatório foi interrompido antes do final, eliminando todas as chances da vítima, pois apenas se adotaria um conceito alargado de dano, que deve ser indenizado.[125]
5 APLICABILIDADE DA TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE NA SEARA MÉDICA
Segundo Savi, a responsabilidade civil pela perda de uma chance de cura ou sobrevivência, no caso da atividade médica, normalmente, enquadra-se na modalidade da causalidade parcial.[126]
No direito brasileiro, é Miguel Kfouri Neto quem faz a análise sobre a responsabilidade pela perda de uma chance na seara médica, filiando-se à corrente francesa majoritária, qual seja, teoria da causalidade, sendo aplicado nos demais casos, a perda de uma chance considerada na modalidade de dano. Além disso, o referido autor entende adequada essa aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, embora tenha consciência da precariedade do sistema nacional de saúde, devendo a aplicação ser analisada com a máxima cautela, principalmente nos casos de culpa grave.[127]
Afirma ele:
“Já existem alguns julgados brasileiros que admitem a aplicação da teoria da perda de uma chance às questões médicas e hospitalares. Mesmo nos acórdãos em que a falha médica ou hospitalar é a causa para a perda das chances, não existe a preocupação de que a reparação das chances perdidas poderia caracterizar um desvirtuamento da noção clássica de nexo de causalidade.”[128]
De todos os julgados apresentados por Peteffi, não há qualquer menção ao fato de a responsabilidade pela perda de uma chance, quando aplicada à seara médica, utilizar-se da causalidade parcial, embora seja a teoria entendida como sendo a mais adequada nesses casos.[129]
Considerando que pode ser a responsabilidade civil pela perda de uma chance admitida no ordenamento pátrio, cabe apenas examinar com minúcia quando poderá ser aplicada em casos de erro de diagnóstico.
Na França, país paradigmático neste tema, o erro de diagnóstico não acarreta culpa médica, uma vez que defendem a dificuldade de estabelecer o liame entre o erro e o prejuízo. No entanto, tem considerado que o erro de diagnóstico que leva ao tratamento inadequado acarreta a perda de uma chance de cura ou sobrevivência.[130] Também é de lá o julgado que inaugurou a jurisprudência que trata da perda de uma chance em erro de diagnóstico, que tem o seguinte conteúdo:
“O primeiro julgado, em França, que inaugura a jurisprudência sobre a perda de uma chance, é da 1ª Câmara Civil da Corte de Cassação, reapreciando caso julgado pela Corte de Apelação de Paris, de 17.07.1964. O fato ocorreu em 1957. Houve um erro de diagnóstico, que redundou em tratamento inadequado. Entendeu-se em 1ª instância que, entre o erro do médico e as graves conseqüências (invalidez) do menor, não se podia estabelecer de modo preciso o nexo de causalidade. A Corte de Cassação assentou: “Presunções suficientemente graves, precisas e harmônicas podem conduzir à responsabilização”. Tal entendimento foi acatado a partir da avaliação de o médico haver perdido uma chance de agir de modo diverso, e condenou-o à indenização de 65.000 francos.”[131] (grifo nosso)
Em terras nacionais, há que se ressaltar que “só se demonstrando erro grosseiro no diagnóstico […] tem-se admitido a responsabilização do médico”[132], pois a aplicação sem limites da noção de perda de uma chance alteraria a jurisprudência relacionada ao erro de diagnóstico.[133]
Com o objetivo de que não reste dúvidas quanto ao trato jurisprudencial da aplicação da teoria da perda de uma chance em erro de diagnóstico, tem-se que entender que o erro de diagnóstico, em princípio, não caracteriza culpa médica, devendo a perda de uma chance de cura ou sobrevivência ser aplicada aos casos nos quais o erro de diagnóstico acarretar tratamento inadequado[134], lembrando que, conforme citado em seção anterior, emprega-se a teoria da perda de uma chance na modalidade causalidade parcial de maneira subsidiária, sendo utilizada somente após o esgotamento das possibilidades de aplicação da teoria ortodoxa do nexo de causalidade, que é capaz de eliminar a perda de uma chance.
Assim, reprise-se: tal aplicação somente terá espaço quando não for possível saber, com certeza, se a conduta do médico causador do dano fez com que, necessariamente, a chance fosse perdida, mas que em seu lugar haja alta probabilidade de tal ocorrência. Desta maneira, embora não se possa afirmar que a chance perdida foi diretamente decorrente da ação do agente, o prejuízo causado é certo e, portanto, deve ser indenizado pela perda de uma chance. Por outro lado, em havendo a certeza de que determinada ação repercutiu em um dano, o prejuízo a ser indenizado deve se dar através da aplicação da teoria ortodoxa do nexo de causalidade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem a pretensão de esgotar o tema, estudou-se nestas linhas a responsabilização do médico pela perda de uma chance ao incorrer em erro de diagnóstico.
Dessas pode-se extrair que a perda de uma chance tem como característica a perda de uma vantagem que a vítima esperava auferir, como se fosse uma aposta e a falta de nexo causal entre a perda dessa aposta e o ato causador do dano, diferindo a perda de uma chance das outras espécies de dano (moral ou patrimonial, por exemplo).
São duas as correntes que cuidam da natureza jurídica da responsabilidade civil pela perda de uma chance. Uma que defende ser aquela uma concepção menos rígida do nexo causal (baseando-se na causalidade que a conduta do agente representa em relação ao dano final) e outra que tem como fundamento a ampliação do conceito de dano, sendo que, neste caso, as chances pedidas representam um dano autônomo, teoria a qual, humildemente, entende-se mais coerente e aplicável ao ordenamento pátrio.
É que ao ser considerada como categoria de dano específico (independente do dano final), adotar-se-ia um conceito alargado de dano que deve ser indenizado. E, afinal de contas, é este o objetivo da vítima: ter o dano sofrido devidamente reparado.
Miguel Kfouri Neto é quem faz a análise sobre a responsabilidade pela perda de uma chance na seara médica e defende a corrente francesa majoritária, qual seja, teoria da causalidade, sendo aplicado nos demais casos, a perda de uma chance considerada na modalidade de dano.
Após a análise de ambas as teorias ainda pode-se concluir que não há obstáculos a aplicação da responsabilidade civil por perda de uma chance no Brasil.
De todos os julgados apresentados por Peteffi, não há qualquer menção ao fato de a responsabilidade pela perda de uma chance, quando aplicada à seara médica, utilizar-se da causalidade parcial, embora seja a teoria entendida como sendo a mais adequada nesses casos.
Podendo ser a responsabilidade civil pela perda de uma chance admitida no ordenamento pátrio, coube então examinar com minúcia quando poderá ser aplicada em casos de erro de diagnóstico.
No Brasil, tem-se considerado que o erro de diagnóstico que leva ao tratamento inadequado acarreta a perda de uma chance de cura ou sobrevivência, pois, em princípio, não caracteriza culpa médica.
Destarte, cabe a aplicação da teoria da perda de uma chance em erro de diagnóstico, devendo a perda de uma chance de cura ou sobrevivência ser aplicada aos casos nos quais o erro de diagnóstico acarretar tratamento inadequado e danos irreversíveis ao paciente.
Por fim, cabe lembrar que se emprega a teoria da perda de uma chance de maneira suplementar, devendo ser utilizada apenas após o esgotamento da possibilidade de utilização da teoria ortodoxa do nexo de causalidade, o que exclui, de imediato, a aplicação da teoria estudada.
Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa-Pr
Advogada. Professora de Direito Civil e Metodologia da Pesquisa Jurídica dos cursos de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Ponta Grossa-UEPG. Líder do Grupo de Pesquisa em Direito Obrigacional (http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=5471268018863867). Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina – PR.
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