Resumo: O presente artigo tem por finalidade a analise da categoria da representação argumentativa exercida pelo poder Judiciário, a partir da teoria de Robert Alexy. Utiliza-se como objeto de estudo a decisão do Supremo Tribunal Federal a cerca da ADI que versa sobre a lei de biosegurança, para examinar esse instituto, levando em consideração a força argumentativa e a participação da sociedade no âmbito da decisão da jurisdição constitucional. Este trabalho foi orientado pela Dra. Deborah Dettmam Maia. Este trabalho foi orientado pela Profª Dra. Deborah Dettmam Maia.
Palavra-Chave: jurisdição constitucional; supremacia constitucional; representação argumentativa; Tribunal Constitucional
Abstract: This article aims to analyze the category of argumentative representation exercised by the judiciary, from the theory of Robert Alexy. It is used as a study object the decision of the Supreme Court about the ADI which deals with the Biosecurity Act, to examine this institution, taking into account the argumentative force and the participation of society in the decision of the constitutional jurisdiction. This work was directed by Dr. Deborah Maia Dettmer.
Keyword: constitutional jurisdiction, constitutional supremacy, argumentative representation; Constitutional Court
Sumário: 1. Introdução. 2. Supremacia judicial e Representação argumentativa em Alexy. 3. A jurisdição constitucional no Brasil. 4.Atuação do Supremo Tribunal Federal e a representatividade argumentativa: uma análise a partir da decisão da ADI 3510. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O funcionamento das cortes judiciais tem se mostrado como elemento imprescindível do processo político de redemocratização brasileira. A mobilização social judicializada tem provocado grandes resultados para a consolidação das instituições públicas e privadas pós ditaduras, como também para a formulação e implementação de políticas públicas, promoção da igualdade e a definição de identidades sociais.
Esse fenômeno colocado pela primeira vez é conhecido pelo termo de judicialização política que é uma nova disposição dos tribunais judiciais no sentido de expandir o escopo das questões sobre as quais eles devem formar juízos jurisprudenciais, atingindo questões que antes eram reservadas ao tratamento dado pelo Legislativo ou pelo Executivo. Neste cenário, o protagonismo do Supremo Tribunal Federal do Brasil provocou uma mudança no padrão institucional democrático brasileiro, trazendo para si, o poder de dar a última palavra. Em contrapartida, essa mudança paradigmática permitiu que o órgão de cúpula do judiciário brasileiro tomasse para si também o ônus da argumentação, na tentativa de legitimar seu poder e suas decisões.
No entanto, essa pretensão de legitimidade ainda não se encontra de forma clara fazendo com que surjam indagações a cerca dos limites do Tribunal Constitucional para proferir a última palavra e o comprometimento da carga argumentativa deste órgão, analisado frente à sociedade democrática.
2. Supremacia judicial e Representação argumentativa em Alexy
O posicionamento constitucional contemporâneo tem evoluído com grande velocidade, graças à superação de um legalismo simplificador e à adoção de diretrizes principiológicas de um regime democrático. O que se pode perceber com a jurisdição constitucional é o reforço da idéia de uma Constituição dinâmica que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Dentro dessa perspectiva, o Poder Judiciário vem sendo reconhecidamente adotado como o representante fiscalizador da compatibilidade dos atos normativos infraconstitucionais com a lei fundamental. Uma das questões basilares que se encontra no raciocínio teórico da atualidade é a relação entre democracia e direitos fundamentais. Para o desvendamento desse problema paradigmático, Robert Alexy, um dos principais jusfilosofos da atualidade, se dedica ao estudo e análise da forma e dos contornos da interpretação constitucional e da validade dos Tribunais Constitucionais no desenvolvimento dos ideais de representação argumentativa.
Todavia, existe uma intensa crítica à supremacia judicial e à atuação das Cortes Constitucionais, principalmente com relação a sua origem não democrática e, consequentemente, da falta de legitimidade para representar a sociedade.
Contudo, Robert Alexy propõe a representação não somente pela via política, como também pela via argumentativa, desempenhada pelas Cortes Constitucionais.
“O princípio fundamental: “Todo poder estatal origina-se do povo” exige compreender não só o parlamento, mas também o tribunal constitucional como representação do povo. A representação ocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidadão politicamente, o tribunal argumentativamente” (ALEXY,1999, p. 55):
Isso porque o delineamento do cenário democrático pressupõe um sistema deliberativo combinado não somente por interesses majoritários, mas abrange também os argumentos dos participantes que lutam por uma solução justa.
Quando as leis respeitam e promovem os direitos fundamentais, a maioria parlamentar, detentora da representação política, satisfaz os requisitos de uma democracia. Todavia, os agentes políticos, aqueles devidamente escolhidos pelo eleitorado, costumam proferir disposições que mesmo involuntariamente atingem os valores e princípios fundamentais. Quando a pressão por resultados imediatos é aguda e de alto teor emocional, esses agentes normalmente optam por atuar de acordo com os seus próprios interesses e não em harmonia com um espectro mais amplo e abrangente.
Esse problema seria resolvido de forma satisfatória pela instauração de uma jurisdição constitucional fornecedora da última palavra, capaz de respeitar o espaço legislativo e executivo, mas que também promovesse uma instância deliberativa através da argumentação jurídica que tivesse anuência não só dos indivíduos diretamente ou indiretamente alcançados pela decisão, como também da população em geral.
A instauração de uma jurisdição constitucional se dá justamente na seriedade e na força do argumento que o Tribunal Constitucional emprega na decisão da lide, no intento de conseguir a aderência da população; processo totalmente diferente daquele executado pelo agente legitimado via mandato popular, visto que este pode simplesmente escolher ou não a aceitação de projetos de lei, sem fornecer qualquer fundamentação de sua escolha.
Alexy coloca que é justamente na força e na validade do argumento que são dados os pressupostos para a legitimidade da representação argumentativa. Para que a ordem se estabeleça e seja mantida, é imprescindível dotar de força uma decisão. Todavia, a legitimidade da ordem só pode se estabelecer uma vez que as pessoas que compõem a sociedade tenham aceitado a decisão. Dessa maneira, a função dos Tribunais Constitucionais é persuadir a sociedade de que as suas escolhas valorativas são adequadas.
“Ele (Tribunal Constitucional) não só faz valer negativamente que o processo político, segundo critérios jurídico-humanos e jurídico-fundamentais, fracassou, mas também exige positivamente que os cidadãos aprovem os argumentos do tribunal se eles aceitarem um discurso jurídico-constitucional racional”. (ALEXY,1999, p. 57)
Não só isso, a Corte Constitucional precisa ser um espaço democrático, um espaço aberto à reflexão e à argumentação jurídica e moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições democráticas.
“A representação argumentativa dá certo quando o tribunal constitucional é aceito como instância de reflexão do processo político. Isso é o caso, quando os argumentos do tribunal encontram eco na coletividade e nas instituições políticas, conduzem a reflexões e discussões que resultam em convencimentos examinados.” (ALEXY,1999, p. 58)
Dessa maneira, a legitimidade democrática da Corte Constitucional decorre da aceitabilidade social, advinda a partir da construção de uma argumentação que procure convencer os membros da comunidade jurídica. Assim, as decisões judiciais podem ser consideradas como propostas privilegiadas nas quais a sociedade define as suas normas jurídicas.
3. A jurisdição constitucional no Brasil
A concretização da estrutura da jurisdição constitucional coincidiu com o lento e gradual processo de redemocratização brasileira, fruto do fim da ditadura militar, impulsionado pela promulgação da constituição de 1988, que congregou um intenso rol taxativo de direitos e garantias fundamentais, no qual cabia ao poder judiciário a proteção e consolidação dos seus efeitos, garantindo proteção de grupos não representados politicamente ou de temas relacionados ao interesse publico difuso.
Essa “virtuosa ascensão institucional do poder judiciário brasileiro”, expressão cunhada pelo professor Luís Roberto Barroso, deve-se em grande parte ao processo de judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instancia decisória. Dessa forma, o Judiciário, e complementarmente a Corte Constitucional passaram a ser não só os garantidores da legalidade, mas os complementadores das normas constitucionais, proporcionando-lhes efetividade.
É interessante avaliar que esse processo de judicialização da política aconteceu em virtude do próprio legislador, que percebendo a fragilidade da sociedade perante instituições poderosas, promoveu uma mudança processual no direito, como a criação da ação civil publica e a institucionalização do código de defesa do consumidor, que passava a admitir ações por partes de entes coletivos.
Outra confirmação do legislativo perante essa judicialização da política é a aprovação da lei n° 9.868/99, em seu art. 7º, § 2º, que consente que a Corte admita a intervenção no processo de outros órgãos ou entidades, denominados amici curiae, para que estes possam se manifestar sobre a questão constitucional em debate. Esse modelo implica não só a possibilidade de o Tribunal utilizar todos os elementos técnicos para o exame da legitimidade da lide em questão, como também de um amplo direito de participação por parte de terceiros interessados. Como coloca o jurista Constitucional Peter Härbele a respeito da ampliação do debate:
“Povo não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional”. (HABELE,1997, p. 37):
É mister mencionar que esses mecanismos de abertura procedimental argumentativa têm sido amplamente utilizados pelo STF, com destaque para as audiências públicas realizadas no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.510/DF, na qual se discutiu o polêmico tema da pesquisa científica com embriões humanos; na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 54, na qual cuida do tema do aborto de fetos anencéfalos; e por fim a mais recente delas, o julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, em que se discute a equiparação da união estável entre pessoas do mesmo sexo à entidade familiar.
Destarte, é razoável colocar que a Jurisdição Constitucional no Brasil abraça atualmente um modelo procedimental e argumentativo, que proporciona condições para a participação de uma pluralidade de sujeitos, como também argumentos convincentes e verdadeiros no processo.
4. Atuação do Supremo Tribunal Federal e a representatividade argumentativa: uma análise a partir da decisão da ADI 3510
A discussão democrática produzida no Congresso Nacional em virtude da votação e aprovação da Lei n° 11.105/2005, não se concluiu naquela casa parlamentar. Ajuizada Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Ministério Público, por parte do procurador geral da república, o debate sobre a utilização de células-tronco se revigorou com maior intensidade que houvera obtido no Congresso.
Em maio de 2005, onde foi proposta inicialmente, a ação chamou a atenção de variados setores da sociedade civil conjuntamente com a mídia em virtude da concessão da liminar que suspendia os efeitos dos dispositivos questionados. Essa atenção pública se tornou mais visível quando o Supremo Tribunal Federal iniciou os debates
Essa decisão se tornou marco histórico na jurisdição constitucional brasileira, tendo em vista que a mesma inovou pelo caráter pluralista ao debate, na realização da primeira audiência pública na contestação de constitucionalidade.
Esse instrumento se realizou a pedido do ministro relator Carlos Aires Britto, que ressaltou em seu despacho a grande importância do tema em debate, que era não só subsidiar os ministros que iriam julgar a ação, como também a possibilidade que a audiência iria oferecer para uma maior participação da sociedade civil.
“Ante a saliente importância da matéria que subjaz a esta ação direta de inconstitucionalidade, designei audiência pública para o depoimento de pessoas com reconhecida autoridade e experiência no tema (§ 1º do art. 9º da Lei n. 9.868/99). Na mesma oportunidade, determinei a intimação do autor, dos requeridos e dos interessados para que apresentassem a relação e a qualificação dos especialistas a ser pessoalmente ouvidos. Pois bem, como fiz questão de realçar na decisão de fls. 448/449, ‘a audiência pública, além de subsidiar os Ministros deste Supremo Tribunal Federal, também possibilitará uma maior participação da sociedade civil no enfrentamento da controvérsia constitucional, o que certamente legitimará ainda mais a decisão a ser tomada pelo Plenário desta nossa colenda Corte”. (BRITTO, p.1)
Além da audiência publica, foram ainda convidados dezessete especialistas na área para apresentar seus conhecimentos e esclarecer aspectos sobre a matéria e a figura de vários amicus curiae . A participação desses Amigos da Corte confere maior legitimidade às decisões do Supremo, na medida em que essa figura processual valoriza o ambiente democrático que é enriquecido por elementos de informação e experiências sociais, culturais, econômicas, políticas e jurídicas que são de vital importância para a resolução da lide.
Dessa maneira, pode-se perceber que esses terceiro interventores atuaram com uma função clara e específica: para estabelecer, de modo simples e eficaz, pontos do litígio, oferecendo uma contribuição relevante para a causa e permitindo ao Tribunal conhecimento pleno de todas as posições jurídicas e reflexamente o que atingirá direta e indiretamente o objeto da ação.
Assim, a realização pelo STF da primeira audiência pública para a consulta de profissionais na matéria, bem como aceitando as indicações fornecidas pelos amici curiae, demonstra uma abertura de procedimento no tocante a interpretação constitucional, assegurando então a participação mais efetiva da sociedade organizada. Ambos os procedimentos aumentam o leque de informações disponíveis aos julgadores garantindo novas formas participativas de potências públicas pluralistas, concedendo sentido amplo aos intérpretes da Constituição.
Ao julgar a inconstitucionalidade do art. 5º da lei de biosegurança, o ministro Gilmar Mendes, em caso que pode ser considerado paradigmático para a jurisprudência, declara:
“Chamado a se pronunciar sobre um tema tão delicado, o da constitucionalidade das pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, um assunto que é ético, jurídico e moralmente conflituoso em qualquer sociedade construída culturalmente com lastro nos valores fundamentais da vida e da dignidade humana, o Supremo Tribunal Federal profere uma decisão que demonstra seu austero compromisso com a defesa dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito. O julgamento desta ADI n° 3.510, dedicadamente conduzido pelo Ministro Carlos Britto, constitui uma eloqüente demonstração de que a Jurisdição Constitucional não pode tergiversar diante de assuntos polêmicos envolvidos pelo debate entre religião e ciência.É em momentos como este que podemos perceber, despidos de qualquer dúvida relevante, que a aparente onipotência ou o caráter contra-majoritário do Tribunal Constitucional em face do legislador democrático não pode configurar subterfúgio para restringir as competências da Jurisdição na resolução de questões socialmente relevantes e axiologicamente carregadas de valores fundamentalmente contrapostos.(…) O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este julgamento, que pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o parlamento. Um lugar onde os diversos anseios sociais e o pluralismo político, ético e religioso encontram guarida nos debates procedimental e argumentativamente organizados em normas previamente estabelecidas. As audiências públicas, nas quais são ouvidos os expertos sobre a matéria em debate, a intervenção dos amici curiae, com suas contribuições jurídica e socialmente relevantes, assim como a intervenção do Ministério Público, como representante de toda a sociedade perante o Tribunal, e das advocacias pública e privada, na defesa de seus interesses, fazem desta Corte também um espaço democrático.” (MENDES, p. 1 a 3)
Proferindo tal voto, o ministro presidente Gilmar Mendes, indica de forma clara a adoção da representação argumentativa alexyana, através da afirmação de que o Supremo Tribunal Federal é um espaço democrático aberto à reflexão e à argumentação jurídica e moral, com ampla repercussão na coletividade e nas instituições democráticas. Vale ressaltar também que o ministro coloca que a argumentação empregada na decisão não é somente voltada para a pretensão de validade, mas também para a de eficácia, visto que as decisões dos tribunais, em especial as do Supremo Tribunal Federal, só ganham peso se conseguem convencer.
Neste processo o STF apresentou-se publicamente como uma instância hábil e competente para definir racionalmente acerca de questões moralmente controversas. A participação do corpo social nas ações de controle concentrado em assuntos de essencial importância social, tornam o processo mais democrático, enriquecendo a discussão em torno do tema, e legitimando das decisões tomadas pelo STF em controle concentrado.
Estudante de Direito.
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