Resumo: As competências legislativas ambientais foram distribuídas, em grande parte, verticalmente, imputando às três esferas de poder o dever de legislar simultaneamente para salvaguardar o meio ambiente. As competências legislativas concorrentes só se exercem plenamente na atuação conjunta e harmônica das pessoas políticas, a qual deve ser balizada pelos critérios da especialidade e do in dubio pro natura. Daí a importância do federalismo cooperativo para a proteção ambiental, visto que apenas a atuação conjunta e coordenada dos entes federados é capaz de concretizar a tutela do meio ambiente preconizada pela Constituição de 1988.
Palavras-chave: Direito Ambiental. Competências constitucionais ambientais concorrentes. Federalismo cooperativo. Critérios da especialidade e do in dubio pro natura.
Sumário: 1. Introdução. 2. As competências ambientais legislativas concorrentes na Constituição de 1988. 3. O federalismo cooperativo e o exercício das competências ambientais legislativas concorrentes. 4. Critérios para solução dos conflitos normativos ambientais.
1. Introdução
A competência para legislar consiste na possibilidade de normatização conferida aos entes federados. Nessa medida, a repartição das competências legislativas delimita a seara de atuação de cada ente e, por conseguinte, o âmbito de validade das suas normas.
Tal como ocorre com a competência material, a repartição das competências legislativas emana tanto da técnica horizontal, donde advêm as competências privativas, quanto da técnica vertical, da qual nasce a competência concorrente.
A distinção entre competência legislativa privativa e concorrente baseia-se em critério de extensão. A competência é “privativa quando enumerada como própria de uma entidade, com possibilidade, no entanto, de delegação (art. 22 e seu parágrafo único)” e, concorrente, quando compreender dois elementos: a “[…] possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa [e a] primazia da União no que tange à fixação de normas gerais”. (SILVA, 2002, p. 479).
Inegavelmente, “uma das formas de se atingir o fortalecimento do federalismo é a competência legislativa concorrente, que poderá ser o fator de equilíbrio entre as esferas de poder autônomas (não mais soberanas, como a tradição indicava)”. (LOBO, 1989, p.89).
Contudo, o que se percebe é a existência de uma “[…] parafernália legislativa [de onde] exsurgem problemas jurídicos de não fácil solução, em face das possibilidades de conflitos interordamentais de legislações, em todos os âmbitos de validez das respectivas normas jurídicas”. (COELHO, 1992, p. 64).
2. As competências ambientais legislativas concorrentes na Constituição de 1988
A competência legislativa concorrente está prevista no artigo 24 do texto constitucional. Tal competência advém de uma técnica vertical de repartição de competências. Nessa medida, é espécie de competência que permite a participação de todos os entes federados.
A repartição vertical é típica do “federalismo cooperativo” e caracteriza-se por “dividir uma mesma ‘matéria’, em diferentes níveis, entre diversos entes federativos. Assim, uma mesma ‘matéria’ é atribuída concorrentemente a entes federativos diversos, sempre, porém em níveis diferentes: a um atribuí-se o estabelecimento de normas gerais; a outro, das normas particulares ou específicas”. (FERREIRA, 1990, p. 7).
“A estruturação da competência concorrente foi idealizada, no artigo 24 da Constituição, com o objetivo de buscar alternativas para a descentralização do federalismo brasileiro, atenuando a supremacia da União, aumentando o grau de autonomia dos Estados-membros, sem, contudo, causar prejuízos à previsão de diretivas nacionais homogêneas, necessárias para integração do país. Procurou desenvolver um modelo que, em tese, alcançasse o equilíbrio dos entes federativos, especialmente da União com os Estados-membros, mas também entre estes.
A idéia da competência concorrente, que parte da matriz alemã, consagra o modelo vertical de repartição de competências, no qual a mesma matéria, expressamente prevista na Constituição, pode ser subdividida entre dois níveis, normas gerais e normas especiais, entre a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e, eventualmente, os Municípios”. (CAMBI, 2000, pp. 250/251).
Os parágrafos do aludido artigo 24 delineiam a competência concorrente na estrutura federativa brasileira. À União compete a edição de normas gerais, aos Estados-membros cabe a suplementação das normas gerais outrora editadas. Salienta-se que a inércia da União permite o pleno exercício da competência pelos Estados-membros, os quais poderão, no âmbito de seus territórios, produzir normas gerais.
A competência dos Estados para legislar, quando a União já editou uma norma geral, pressupõe obediência à norma federal, se editada de acordo com a Constituição Federal. Situa-se no campo da hierarquia das normas e faz parte de um sistema chamado “fidelidade federal”. (MACHADO, 1996, p.170).
Tendo um Estado-membro exercido de forma plena a competência concorrente, a superveniência de norma geral publicada pela União acarretará na suspensão de eficácia das normas gerais estaduais. Salienta-se que não se trata de revogação, já que as normas editadas pela União e pelo estado não concorrem entre si.
Importante registrar também a competência supletiva municipal, prevista no artigo 30, a qual consiste nas “atribuições que se enquadrarem no seu “interesse local”, mas para o qual existam normas gerais da União e suplementares dos Estados. Nessa hipótese o Município ‘suplementará a legislação federal e estadual’ respectivas, em sua própria legislação, não podendo contrariá-las (inc. II do art. 30 da C.F)”. (FARIAS, 1999, p. 291).
Assim, através da competência supletiva legislativa, os municípios exercem a competência concorrente, participando da repartição vertical legislativa.
3. O federalismo cooperativo e o exercício das competências ambientais legislativas concorrentes
As competências verticalmente repartidas possuem relevante papel na implementação das políticas ambientais. É de se notar que o federalismo moderno prega a cooperação entre os entes federados, exigindo uma atuação coordenada capaz de alcançar a realização da proteção ambiental.
“Na medida em que há coordenação na Federação, temos várias formas de interdependência entre os agentes nos diversos âmbitos e nos diferentes planos de ação. Assim, o moderno conceito de ‘federalismo cooperativo’ mostrar-se-ia de certo modo redundante, pois, está implícito no conceito de federalismo”. (FARIAS, 1999, p. 305).
A atribuição de competências legislativas simultâneas é forma de estruturação de um federalismo que busca, no exercício conjunto e coordenado das competências constitucionais, a concreção mais eficaz de certos bens e valores que interessam a todos os entes federados.
Contudo, a estrutura política brasileira ainda sofre influência da filosofia do federalismo clássico, o qual “procurava separar, de forma plena e exaustiva, as atividades das diferentes órbitas de governo, esquecendo-se da necessidade de estabelecimento de políticas gerais comuns, que racionalizassem a máquina estatal”. (FARIAS, 1999, p. 305).
De fato, a atribuição de competência legislativa a mais de uma esfera de poder gera uma inevitável discussão acerca do âmbito de validade espacial e material das normas editadas. Isto porque, no campo legislativo, a competência simultânea pode significar a edição conjunta de normas que versem sobre uma mesma matéria. Surge, então, a necessidade de fixar critérios que delimitem a competência legislativa de cada ente.
A Constituição de 1988, a fim de evitar conflitos normativos, traçou, nos parágrafos do artigo 24, regras que delimitam a competência legislativa dos entes federados. O critério primordialmente eleito foi o da especialidade, segundo o qual cabe à União editar normas gerais e, aos Estados e Distrito Federal, normas especiais.
“[…] a Constituição prevê dois níveis de exercício dessa competência legislativa: um primeiro nível, reservado à União, que pode legislar sobre normas gerais, e um segundo nível, aos Estados-membros e ao Distrito Federal que ditam normas especiais de complementação às normas gerais ou – na ausência destas ou em nelas havendo lacunas não intencionais – de suplementação. Além dessas regras, contidas no art. 24 da CF, deve-se mencionar a regra do art. 30, inciso II, que permite que os Municípios suplementem a legislação federal e estadual, ‘no que couber’”. (CAMBI, 2000, p. 251).
Salienta-se que no artigo 24 não foi mencionada a competência municipal, o que, como dito, não exclui o Município da repartição vertical legislativa. O Município compõe a Federação brasileira como ente político autônomo, podendo legislar sobre assuntos de interesse local em complementação à legislação federal e estadual.
“Quer isso dizer que não se recusa aos Municípios competência para ordenar a proteção do meio ambiente, natural e cultural. Logo, é plausível reconhecer, igualmente que na norma do artigo 30, II, entra também a competência para suplementar a legislação federal e estadual”. (SILVA, 1997, p. 53).
4. Critérios para solução dos conflitos normativos ambientais
Do critério da especialidade, eleito pelo texto constitucional, exsurge a dicotomia entre normas gerais e normas especiais. Norma geral é aquela que, dispondo acerca de determinada matéria, não esgota seu conteúdo, mas tão-somente traça linhas mestras. É norma, então, que carece de complementação para sua aplicação específica a uma hipótese concreta.
A norma geral, assim, não possui caráter ilimitado, pressupondo sempre uma norma especial que arremate seu sentido, especificando, regionalmente, a sua aplicação.
A fixação de normas gerais busca trazer a uniformização legislativa mínima de matérias que interessam a toda a nação, ao mesmo tempo que a possibilidade de edição de normas especiais busca amoldar as disposições às diferentes realidades regionais.
É de se frisar que a norma geral editada pela União prevalecerá não porque existe uma hierarquia, mas porque a Constituição reconhece a necessidade de uniformização de certas matérias para a preservação do interesse nacional. “Com efeito, as normas gerais devem atender às necessidades mínimas exigidas para a integração dos Estados-membros a uma política nacional unificada a ser ditada pelo Congresso Nacional através de legislação nacional e, por isso, válida em todo o território nacional”. (CAMBI, 2000, p. 252/253).
Contudo, “como se pode facilmente perceber, o conceito de normas gerais e a sua limitação em casos práticos é dificultado pela ausência de uma proposta legislativa bem definida”. (CAMBI, 2000, p. 251).
“A distinção entre normas gerais e especiais, ou específicas, portanto, não tem um referencial semântico definido, isto é, não radica num conjunto definido de relações jurídicas, mas tão-somente num referencial pragmático relacionado com a maior ou menor abrangência das normas, segundo a intenção do legislador, quiçá do intérprete ou aplicador da lei; isto é, trata-se de um critério puramente lógico-formal, que possibilita considerar geral uma regra em relação à especial que lhe constitui fundamento de validade. Pode-se assim dizer que uma norma especial é somente a que pode ser derivada de outra, considerada geral. Assim sendo, quaisquer normas, salvo a Constituição que é a norma geral por excelência, pode ser considerada geral ou especial, ou específica”. (COELHO, 1992, p. 68).
Diante da dificuldade de se determinar com clareza a tênue linha que separa uma normatização geral de uma especial, deve ser buscado um novo critério capaz de indicar com mais precisão o âmbito de atuação legislativa dos entes federados.
A concorrência entre normas ambientais editadas pela União, Estados, Distrito Federal ou Municípios deve ser enfrentada, primeiramente, pelo já explicitado critério da especialidade.
Ocorre que uma determinada hipótese concreta pode estar situada em zona cinzenta, na qual a perquirição acerca da generalidade ou da especialidade do regramento é tarefa árdua e tormentosa, senão impossível. Nesses casos, impõe-se a adoção de um critério secundário capaz de solver o conflito.
O tratamento especial e robusto dispensado pelo texto constitucional à questão ambiental aponta para o critério que o intérprete deverá utilizar em caso de conflito normativo no âmbito da competência concorrente, não solvido pela regra da especialidade: o critério do in dubio pro natura.
Por este critério secundário, caso não seja possível precisar com certeza qual a norma válida, deve-se aplicar a norma que garanta a maior proteção ambiental.
Note-se que se trata de critério razoável, uma vez que não contraria o critério primordialmente eleito pela Constituição, já que possui aplicação subsidiária, e, ao mesmo tempo, privilegia a tutela ambiental. “Assim, o princípio in dúbio pro natura deve constituir um princípio inspirador da interpretação. Isto significa que, nos caso em que não for possível uma interpretação unívoca, a escolha deve recair sobre a interpretação mais favorável à proteção ambiental”. (FARIAS, 1999, p. 356).
Destarte, a título de exemplo, se a União e um Estado tiverem editado normas com diferentes regramentos acerca de determinada matéria, e não for possível apontar com certeza se a norma federal é de fato geral ou se a norma estadual é realmente específica, deverá ser aplicada a norma que promova o resguardo mais ostensivo do meio ambiente.
“Fica assim solucionado o conflito em função da maior restritividade da legislação federal ou estadual, caso não se possa distinguir com clareza que se trata de normas específicas ou gerais. Exemplificando, a proibição regional ou local da pesca de determinadas espécies deve prevalecer sobre norma federal que não preveja tal situação.
Assim, teleologicamente, assegura-se a possibilidade de norma estadual estabelecer proibições, onde a lei federal permita, bem como que a lei federal estabeleça patamares mínimos de proteção ambiental a serem observados em todo o País, dando-se efetividade à proteção ambiental e ao desenvolvimento auto-sustentável”. (FARIAS, 1999, p. 356).
Deste ponto, exsurge a importância do federalismo cooperativo e, também, a relevância da aplicação dos critérios da especialidade e do in dúbio pro natura para a solução de conflitos normativos advindos do exercício das competências legislativas ambientais concorrentes, uma vez que apenas a atuação conjunta e coordenada dos entes federados é capaz de concretizar a almejada tutela constitucional do meio ambiente.
O federalismo cooperativo é, então, uma opção constitucional que deve ser vislumbrada não apenas como um mecanismo mais equânime de distribuição de competências, mas, principalmente, como um instrumento de realização e salvaguarda dos bens jurídicos eleitos como de interesse nacional, como é o meio ambiente.
Procuradora da Fazenda Nacional. Pós-graduada em Direito Ambiental pela Universidade Gama Filho.
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