Resumo: Este artigo tem por finalidade analisar o impasse entre a objetividade do Direito e a subjetividade dos casos abarcados pela Lei Maria Penha. Para isso, far-se-á uma discussão acerca do caso de Leoneide Ferreira, uma mulher vítima de violência doméstica e ameaça por parte do ex-companheiro, chegando a óbito após inúmeras denúncias. Nossa análise terá como base a Teoria Sistêmica do Direito de Niklas Luhmann, bem como as ideias trazidas por Luís Alberto Warat e Lacan no âmbito da relação entre Direito e Psicanálise, a fim de mostrar que o Direito nem sempre está apto a solucionar conflitos de ordem subjetiva. Este trabalho foi orientado pela Professora Doutora Maria Sueli.
Palavras-chave: Violência doméstica; Mulher; Objetividade; Subjetividade; Direito; Psicanálise; Castração.
Abstract: The intention of this article is analyzing the deadlock between Law´s objectivity and the subjectivity of the cases that can be placed in Maria da Penha´s law. For that, a discussion will be done about the case of Leoneide Ferreira, a woman victim of domestic violence and threat by the ex-partner, died after getting numerous complaints. Our analysis will be based on the Law´s Systemic Theory of Niklas Luhmann, and Luís Alberto Warat and Lacan´s ideas about Law and Psychoanalysis´s relationship, to show that Law not always is able to give solutions for subjectivity’s deadlocks.
Keywords: Domestic Violence; Woman; Objectivity; Subjectivity; Law; Psychoanalysis; Castration.
Sumário: 1. Introdução. 2. O caso de Leoneide Ferreira e Edilson Rodrigues dos Santos. 3. O caso visto sob a óptica da Teoria Sistêmica de Luhmann. 4. Paralelo com Direito e Psicanálise. 5. A ideia de castração proposta por Warat. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar o conflito existente entre a objetividade do Direito e a subjetividade de determinados casos que, ao serem levados à Justiça, nem sempre apresentam uma decisão satisfatória. Para isso, utilizar-se-ão as teorias de alguns pensadores, tais como Niklas Luhmann e Luís Alberto Warat, a fim de suscitar-se uma importante relação aparentemente inconciliável entre Direito e Psicanálise.
Deste modo, estudar-se-á a caso de Leoneide Ferreira dos Santos, a qual foi morbidamente assassinada por seu então marido, Edílson Rodrigues, a golpes de faca que foram deferidos contra seu corpo em um número total de 10 vezes.
De acordo com o apurado, Leoneide estava sendo vítima da obsessão e dos ciúmes provindos de seu marido, fatores esses bastante frequentes em crimes passionais. Após longo período de ameaças, de perseguição, de cárcere privado e de danos psicológicos, Leoneide decide recorrer à Justiça, a fim de obter amparo na lei Maria da Penha.
A vítima recorre, então, à Delegacia da Mulher, onde faz a denúncia para a delegada titular Vilma Alves. Esta, com o escopo de garantir a integridade de Leoneide, e pautada pela lei Maria da Penha (11.340/2006), decidiu pedir, em juízo, a prisão preventiva do acusado, utilizando-se do direito que lhe foi concedido pela já citada lei.
Em seguida, foi expedido o mandato de prisão a Edílson o qual, posteriormente, foi detido. No entanto, assegura a delegada Vilma Neves que a juíza da 5º Vara Criminal teria expedido um mandato de soltura do acusado, o qual, depois de solto, teria cometido o crime.
O crime objeto deste artigo pode ser caracterizado como crime passional, o qual acontece, muitas vezes, pelo ódio, ciúme patológico, possessividade, busca de vingança, prova de poder, não tolerância à frustração, entre outros. (TUNDIS, 2008) Edílson, movido por um ou por todos esses sentimentos, sentiu-se dono de Leoneide a ponto de interferir no seu direito máximo à vida.
Após a análise desse caso, várias questões merecem ser levantadas, com a finalidade de entendê-lo à luz das teorias que aqui serão trabalhadas. Primeiramente, deve-se levar em consideração um aumento significativo do número de mulheres que, atualmente, recorrem à justiça, após terem sido vítimas de violência doméstica e familiar. Tal aumento será explicado pela Teoria dos Sistemas de Luhmann, a qual aponta a complexidade social como fator preponderante para o surgimento de novas demandas para o Direito. A ideia da frustração proposta por Luhmann também pode ser estudada no caso citado. O autor contrasta a frustração normativa com a cognitiva. Enquanto as expectativas normativas resistem às frustrações, as expectativas cognitivas se modificam ao serem contrariadas. (TORRES, 2005) Ou seja, a sociedade, o ser, deve-se adaptar às novas demandas sociais, sob a pena de sofrer contingência.
Em seguida, explicar-se-á a procura de Leoneide pelo Direito a partir da ideia de gozo, desenvolvida, principalmente, na relação entre Direito e Psicanálise. A “não-relação sexual” e o deslocamento de seu gozo na vida conjugal de Leoneide seriam os fatores propulsores para a denúncia contra Edílson. O gozo, segundo Freud e Lacan, é tudo aquilo que se deseja fazer. Assim sendo, todos temos a parcela de gozo que se quer externar. Esse gozo, contudo, não pode ser pleno, uma vez que isso acarretaria num excesso de gozo, o qual acabaria por interferir no gozo do outro, fato que geraria o caos. Foi isso que ocorreu no caso que move a produção deste artigo: Edílson excedeu o limite do seu gozo e acabou por castrar o gozo de Leoneide sob diversos aspectos, uma vez que a vítima viu-se privada pelo marido de agir conforme suas próprias convicções.
Por fim, utilizar-se-ão as idéias incutidas na obra “A Ciência Jurídica e seus dois maridos” de Luís Alberto Warat para mostrar o papel que teria sido assumido pelo marido homicida Edílson Santos: o de castrador dos anseios e dos direitos pertencentes a sua mulher. Leoneide sofreu uma série de castrações por parte de Edílson, o qual a impedia de ter uma vida de acordo com os anseios a que ela almejava.Neste sentido, pode-se fazer uma analogia entre Edílson e o personagem Teodoro da obra “Dona For e seus dois maridos”, sob a perspectiva dada à obra por Warat.
2. O caso de Leoneide Ferreira e Edilson Rodrigues dos Santos
O caso utilizado como objeto de estudo deste artigo teve início em agosto de 2008, quando Leoneide Ferreira deu parte do seu então companheiro Edilson Rodrigues dos Santos, com quem teve dois filhos durante os 15 anos em que viveram maritalmente. Desde os três primeiros anos do relacionamento, Leoneide já vinha notando o comportamento agressivo de Edilson. No momento da denúncia, a vítima relatou sofrer violência física e moral com ameaça de morte, além de ter sua família e seus filhos ameaçados.
Em 2005, a vítima já havia feito seis denúncias contra Edilson. Em setembro de 2008, a situação se agravou. Sob a justificativa de sentir ciúmes da esposa, o acusado a manteve em cárcere privado e ameaçava-a, constantemente, de morte, caso ela saísse para algum lugar. Edilson foi preso em flagrante, e teve seu mandato de prisão preventiva decretado pela juíza Dra. Rosa de Sousa Leal.
Quando intimado a depor pelo fato ocorrido, Edilson negou as acusações de ameaça. Segundo consta no depoimento, o próprio era contra qualquer tipo de violência contra a mulher e, jamais, agrediu Leoneide. No máximo, de acordo com o pronunciamento de Edilson, ele descontava o seu ciúme doentio e descontrolado em objetos, tais como celulares, móveis ou o que tivesse a seu alcance. O motivo, segundo Edilson, que o levou a manter Leoneide presa dentro de casa por um dia (e não por uma semana, como relata a vítima) foi o ciúme que ele sentiu da companheira ao ver outro homem, do qual não gostava, olhando-a na academia onde ela frequentava. O acusado negou, também, as ameaças à família da vítima e afirmou ter havido, nos 15 anos em que viveram juntos, apenas duas grandes discussões.
Enquanto Edilson estava preso, foi feito seu pedido de Liberdade Provisória, visto que a pena mínima não ultrapassava dois anos, ele era réu primário, não possuía antecedentes criminais e tinha um trabalho que supria seu sustento. A juíza, contudo, não decretou de imediato a sua Liberdade Provisória e marcou para novembro de 2008 uma audiência para que houvesse uma possível conciliação. Na audiência, houve a conciliação e, diante disso, a Dr. Rosa Leal concedeu a Liberdade a Edilson e despachou uma Medida Protetiva, a fim de resguardar a integridade de Leoneide e de sua família.
Em menos de um mês do ocorrido, entretanto, devido ao mau comportamento de Edilson e ao descumprimento de suas obrigações perante o acordo firmado, a juíza Rosa Leal revogou o pedido de Liberdade Provisória e pediu que fossem realizados a perícia médica e um exame de sanidade mental, o qual detectou, no laudo, o sintoma de hipomania em Edilson, que foi submetido a tratamento. Em meio à tamanha conturbação, Leoneide, em dezembro de 2008, decidiu se ausentar da comarca de Teresina por medo das ameaças do ex-companheiro.
No ano de 2009, novas denúncias de violência doméstica e de ameaça foram feitas por Leoneide junto à Delegacia Especializada da Mulher, totalizando mais de 11 denúncias. Leoneide chegou, inclusive, a mudar de endereço.
Em junho de 2009, foi marcada uma audiência para que houvesse, novamente, outra tentativa de conciliação, o que não se concretizou devido à ausência da juíza. Outra audiência com o mesmo fim foi marcada para julho do mesmo ano, mas também não foi obtido êxito. Uma última audiência, agendada para agosto de 2009, também não foi concretizada. Até que em 10 de setembro de 2009, foi expedido o mandato de prisão preventiva, busca e apreensão de Edilson Rodrigues sob a acusação de tentativa de homicídio.
Edilson Rodrigues dos Santos é acusado de atentar contra a vida de sua ex-companheira após deferir-lhe 10 facadas. Após inúmeras ameaças e infortúnios, no dia 1ª de setembro de 2009, o crime se concretizou. No momento em que Leoneide chegava à casa de uma amiga, o acusado a surpreendeu com uma primeira facada pelas costas. Depois de atingi-la com as 10 facadas, achando que Leoneide já estava morta, Edilson se evadiu do local e encontra-se foragido. A vítima foi socorrida pelo SAMU e foi levada para o HUT (Hospital de Urgência de Teresina), vindo a óbito três meses depois do incidente, no dia 1ª de dezembro de 2009.
O atestado de óbito de Leoneide descreve a morte por “meio biológico consequente a processo infeccioso subseqaente a múltiplas agressões por instrumento pérfuro-cortante”, o que mostra o nexo de causalidade entre a conduta do autor do crime e o resultado da morte da vítima.
O crime pelo qual Edilson é acusado é tipificado legalmente no art. 121, § 2º, incisos I, III e IV do Código Penal. É caracterizado pela torpeza do motivo (o autor não se conformava com o fim do relacionamento e ameaçava a vítima e sua família, visto que não admitia perder a posse de Leoneide.), pela crueldade do crime (foram deferidas 10 facadas) e pelo recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima (Leoneide foi atacada pelas costas).
O processo que envolve o drama de Leoneide se encontra na 2ª Vara do Tribunal do Júri de Teresina e é identificado pelo número 1992322009, tendo por objeto da ação tentativa de homicídio e violência doméstica. Além deste processo, há outros dois feitos por Leoneide contra Edilson, enumerados como segue: 209412008 e 245922009. Para ter acesso aos autos do processo, deve-se dirigir à 2ª Vara do Tribunal do Júri. Tendo em mãos o número do processo ou o nome das partes, algumas informações também podem ser obtidas por meio do site do Tribunal de Justiça do Piauí.
3. O caso visto sob a óptica da Teoria Sistêmica de Luhmann
O caso acima relatado revela o intenso processo complexificação por que passa a sociedade atual, na qual, cada vez mais, surgem novas demandas que devem ser endereçadas ao Direito, a fim de satisfazer as expectativas dos indivíduos. Niklas Luhmann, em sua obra “Sociologia do Direito I”, já tratava do assunto, criando, dessa forma, uma teoria dos sistemas. Luhmann reconhecia o caráter complexo do sistema, o qual seria regulado por meio de sua própria estrutura, através de uma seletividade. (Luhmann, 1983.p 168). Essa seletividade, portanto, deveria captar a alta complexidade social, reduzindo-a e produzindo um meio domesticado. Assim, caberia ao Direito rejeitar expectativas, saber selecionar, dentre várias demandas, aquelas que realmente viriam a se tornar socialmente aplicáveis.
Aplicando a teoria de Luhmann ao caso estudado, vê-se que a demanda pela normatização dos direitos concedidos às mulheres nada mais é que o resultado de grande contingente de expectativas, por parte das mulheres, amplamente disseminadas na sociedade. Destarte, as mulheres ambicionavam a satisfação de suas expectativas, que seria, de fato, a criação de leis que responsabilizassem e punissem os agressores, bem como concedessem apoio e resguardo para as vítimas da violência, tanto em âmbito doméstico quanto familiar.
4. Paralelo com Direito e Psicanálise
O caso estudado pode ser entendido também por um viés não tão corriqueiro e, aparentemente inconciliável, que seria por meio de uma associação entre Direito e Psicanálise. Sem dúvida alguma, estas duas áreas do conhecimento dedicam-se a estudos bastante distintos e, por conseguinte, muitas vezes controversos. Enquanto que o Direito ocupa-se de regras exteriores que regem a relação entre os homens, a Psicanálise detém-se ao sujeito, entendendo-o de acordo com sua singularidade. No entanto, o que se observa é a real possibilidade de se estreitar os laços entre as áreas já citadas.
Aqueles que correlacionaram Direito e Psicanálise, basearam-se, de um modo geral, nas contribuições de Freud. Ele, que na juventude desistiu da carreira jurídica para dedicar-se exclusivamente à Psicanálise, utiliza-se, ao longo de seus escritos, de expressões jurídicas, bem como faz a definição de noções psicanalíticas também baseadas no Direito, quais sejam: defesa, conflito, juízo de condenação e necessidade de punição. (CHRISTOPOULOU, 2007)
A interlocução com o Direito, entretanto, não para por aqui, uma vez que, assegura Marie-Dominique Trapet que até mesmo na definição de “superego” dada por Freud há um quê de jurídico. (TRAPET, 2002, p.477) O superego freudiano seria, pois, na visão da autora, uma espécie de tribunal, o qual assumiria sozinho um conjunto de funções jurídicas, tais como legislador, advogado, procurador, juiz, dentre outras funções.
Uma grande contribuição de Freud que pode ser direcionada para o Direito e que, no presente artigo, faz-se de vital importância é a idéia de gozo. Fernanda Otoni de Barros Brisset, em seu artigo “A substância da tragédia: Literatura, Direito e Psicanálise”, além de evidenciar o que aqui já foi proposto, recorre às tragédias gregas, identificando-as como representantes da pluralidade do pensamento social daquela época, marcado por conflitos entre as leis dos homens e as leis divinas.
Barros Brisset vai mais longe e, talvez, o conceito freudiano de gozo e, por extensão, lacaniano, seja central em seu artigo. Para ela, os indivíduos direcionar-se-íam aos tribunais pela busca de uma solução para seus conflitos pessoais. O mal motivador da busca pela Justiça seria a “não relação sexual” que pode estar presente nas diversas relações jurídicas. Nesse sentido, afirma a autora que
“A presença dessa substância sem igual, singular, desalojada do sentido e da ordem do mundo, de modo geral, é sinal desse mal que leva o sujeito para o buraco, se este não encontrar uma corda para se segurar.” (BARROS-BRISSET, 2009,p.24)
O Direito, com seu caráter neutro e pacificador, seria, pois, essa corda a qual se seguraria o indivíduo na busca da satisfação de seu gozo e na superação do mal que tanto o aflinge.
No caso de Leoneide, a “não relação sexual” estaria presente em sua relação conjugal com o marido Edílson, a qual não mais estaria contribuindo para a satisfação pessoal da mulher. O cônjuge constantemente proferia insultos à esposa, agredia-a fisicamente, além de mantê-la em cárcere privado e fazer-lhe ameaças. A delegada Vilma Alves, após colher depoimento da vítima, informou ao site Acesse Piauí, quanto ao fato de Leoneide ter sido mantida em cárcere privado, que “Ele já a mantinha há muito tempo. Ele colocava a ponta de uma faca no umbigo dela e ameaçava. Não deixava ela sair, trancava-a em casa, é uma obsessão, um ciúme exagerado, a ponto de dizer que queria matá-la. Se ela ia para o banheiro, para a cozinha, ele ficava perseguindo.”(DINO, 2008)
Desse modo, com o objetivo de livrar-se do mal que a aflingia, Leoneide recorreu à Justiça, a fim de encontrar resguardo na Lei Maria da Penha, a qual corresponde à lei de nº 11.340, datada de agosto de 2006. A Lei Maria da Penha foi assim intitulada em homenagem a uma mulher de nome homônimo, que, após ter sofrido várias tentativas seguidas de assassinato por parte do marido, sem que o cônjuge tenha sido devidamente punido pela antiga legislação brasileira, decidiu recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington.
O resultado dessa iniciativa foi a abertura do Relatório nº 54, que apontava as falhas do Estado Brasileiro quanto a proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar. Nesse sentido, a Lei Maria da Penha destaca-se por dirigir instituições e mecanismos legais exclusivos para a proteção das mulheres, descriminando, em seu art. 5º, que tipo de violência deseja coibir: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Ademais, no mesmo art.5º, há a inclusão dos ambientes doméstico e familiar como espaços aos quais chegará a força da lei caso ocorra a violação da mesma.
Antes da Lei Maria da Penha, os crimes de lesão corporal leve e de ameaça eram considerados de menor potencial ofensivo, fazendo-se bastante recorrentes decisões judiciais que apenas impunham, ao agressor, o afastamento em relação à vítima. Todavia, com o advento da nova lei, os crimes de violência doméstica e familiar passaram a ser investigados por meio de um inquérito policial, sendo possível, atualmente, a prisão em flagrante e a prisão preventiva. Ademais, a nova lei também previu a criação de delegacias especializadas para o atendimento à mulher vítima de violência.
A grande inovação dessa lei, no entanto, seria a possibilidade da própria autoridade policial ser competente para pedir, em juízo, medidas protetivas de caráter urgente, sem a necessidade de intermediação judicial. Tal fato, sem dúvida alguma, é de grande valia, uma vez que dribla a morosidade dos processos judiciais, morosidade essa que poderia contribuir para eventuais crimes mais extremos e que poriam, mais ainda, a vida da mulher em perigo. (NASCIMENTO, 2007)
Segundo consta, Leoneide teria ido à delegacia da mulher fazer a denúncia contra o marido e, de acordo com a lei na qual se enquadra, ela poderia ter se utilizado de medidas protetivas, cujo cunho é nitidamente cautelar e se dividem em medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e medidas protetivas de urgência à ofendida, as quais são aplicadas de acordo com o julgamento do magistrado.
A já citada delegada Vilma Alves, em entrevista ao site Portal AZ, afirma desolada, “Fizemos de tudo para impedir essa tragédia. Quando ele a mantinha em cárcere privado e a ameaçava de morte e foi denunciado pela própria irmã, nós o prendemos. Mas inexplicavelmente a juíza da 5ª vara mandou soltá-lo.” (Após três meses internada, artesã que levou facadas do ex-marido morre no HGV, 2009).
5. A ideia de castração proposta por Warat
O caso de Leoneide Ferreira é um exemplo de como o Direito ainda está em fase de mutação em busca de adaptação aos dilemas da sociedade. Diante deste caso, é plausível analisar as ideias de Luís Alberto Warat, autor surrealista que por muitas vezes interelaciona, em seus estudos, Direito e Psicanáise. Assim, a sua corrente chamada Surrealismo Jurídico reflete a projeção da psicanálise nas artes (ABREU, p.10).
Um dos pontos-chave da teoria de Warat é a diferenciação entre lei jurídica e lei dos desejos. Enquanto a lei dos desejos reflete a inexistência dos limites, a lei jurídica mostra-se autossuficiente e completa a ponto de ditar o repertório de condutas por ela proibidas. É aqui que se enquadra uma das questões fundamentais do estudo de Warat: o Direito enquanto Ciência Jurídica castradora.
Segundo Luís Alberto Warat,
“A castração é, sobretudo, a poda de um desejo. (…) É a cultura do imobilismo. (…) Em sentido mais amplo, diria que tudo o que limita castra.” (WARAT, 2004, p.63)
Em sua obra intitulada “A Ciência Jurídica e seus dois maridos”, Warat vai discorrer sobre a ideia de castração, partindo da intertextualidade com a obra “Dona Flor e seus dois maridos”, de Jorge Amado. Segundo o autor surrealista, D. Flor representa a Ciência Jurídica, Vadinho representa os anseios da sociedade em toda a sua complexidade, e Teodoro representa o Estado como mero aplicador da norma positiva (PEREIRA, 2009).
Diante da evolução por que passa a sociedade, o Direito deve passar por um processo de adaptação aos novos anseios de modo a equilibrar as tensões que podem advir da quebra de modelos e de paradigmas antes sustentados pela sociedade e, agora, insuficientes para suprir as necessidades desta. Para Warat, a castração representa uma ideologia imposta no meio em que se vive e que sustenta falsas moralidades, aprisionando desejos. Isso tudo, porque sempre houve, em cada momento histórico, modelos engessados de instituições: família, casamento, educação. Quando se foge dos padrões, o Direito entra em ação com o seu papel limitador das condutas discrepantes.
Associando-se as ideias de Warat ao caso estudado pelo presente artigo, percebe-se que Edílson, movido por sentimentos de ciúme e de obsessão, acaba adquirindo e extrapolando a figura de um pai castrador. Tais sentimentos que movem as ações de Edílson são justamente aqueles que se desenvolvem dentro de uma sociedade machista e atrasada quanto à aceitação dos espaços conquistados pela mulher dentro do novo modelo paradigmático.
O papel castrador de Edílson assemelha-se metafórica e parcialmente à figura de Teodoro, personagem que, ao interiorizar exacerbadamente a ideia de que seguir padrões normativos e sociais é o fundamento maior da vida,
“(…) conseguiu transformar o amor em dever, conseguir simular a vida, perdendo a oportunidade de viver e vivendo envolto a um emaranhado de infinitos rituais burocratizantes.” (WARAT, 2004, p.63).
(…) Um homem que nunca sai de suas gavetas, tedioso, que pede permissão e hora para amar, exteriorizador contido de seus desejos, anestesiador legalista da alta voltagem erótica de (Dona) Flor (…) (WARAT, 2004, p.68)”
Esta definição de Teodoro feita por Luís Alberto Warat reflete não só a personalidade de um homem que perde a capacidade de enxergar a mulher como sendo um sujeito de Direitos tanto quanto ele, mas o caráter de um homem que perde a capacidade de amar na real concepção que este sentimento deva ter. Por isso, Warat denuncia a existência de diversos Teodoros castradores machistas das ações femininas a ponto de reduzir o relacionamento à obediência das convenções sociais e morais.
Edílson, assumindo, em alguns momentos, o papel de Teodoro castra as atitudes de sua então esposa Leoneide Ferreira, uma mulher que foi vítima de ameaças, perseguições, cárcere privado, enfim, que foi vítima de agressões não só físicas, mas psicológicas e morais. Leoneide é mais um caso que entra para as estatísticas acerca das mulheres vítimas de violência doméstica por parte de seus maridos.
Uma questão relevante neste ponto é a submissão que invade os sentimentos não só de Leoneide, mas de tantas outras mulheres que passam muito tempo caladas diante das castrações impostas por seus cônjuges. O castrado tem uma mente abarrotada de pensamentos que impedem de escutar o coração (WARAT, 2004, p. 67). É por isso que muitas mulheres se tornam dependentes e submissas aos seus consortes.
Segundo Warat, fugir das castrações representa correr riscos, porque é sabido que punições serão aplicadas por aquele que assume o papel de impor os limites. Essas punições vêm sob as mais atrozes formas, as quais culminam, por diversas vezes, como no caso estudado, na morte da vítima. Corre-se também o risco de indagar e mover-se no desconhecido, deixar tudo o que é familiar, seguro e confortável (WARAT, 2004, p.66). Isso, porque a mulher perde a autoestima que a faz sentir-se capaz de se reerguer sem a figura daquele homem que a castra.
A força motriz dos homens castradores encontra-se, pois, na própria dinâmica da sociedade, a qual serve de parâmetro para a construção do Direito. Este, por sua vez, não está completamente apto a solucionar questões de ordem subjetiva como a do caso proposto. Ordem subjetiva, porque envolve mais do que leis. O Direito está mais apto a resolver questões de ordem objetiva, as quais são limitadas pela associação imediata Sujeito-Caso sem mais delongas. Ao passo que questões de ordem subjetiva, como o caso de Leoneide, envolvem muito mais cultura e sentimentos do que a normatividade em si.
6. Conclusão
O caso de Leoneide nos remete a uma realidade que há muito tempo já estava presente na sociedade, mas que só recentemente vem adquirindo mais espaço e atenção por parte do sistema judiciário.
Apesar dos esforços do Direito para a criminalização da violência contra a mulher e para a proteção desta, o que se observa é que nem sempre há, de fato, eficiência na aplicação da lei Maria da Penha. Isso se dá devido a uma pluralidade de fatores, seja pela dificuldade que muitas mulheres têm de optar pela denúncia, seja por falhas do próprio sistema judiciário.
Warat já advertia isso. Para ele, a sociedade atual estaria doente, marcada pelo excesso de racionalidade e destituída das emoções. Assim, o Direito impunha ao indivíduo um modo monolítico de se enxergar o mundo, que se estendia ao indivíduo em si, castrando-o. Quando não se é capaz de enxergar o outro em sua singularidade, não se é capaz de amá-lo. Isso foi, pois, o que aconteceu com Edílson: tornou-se castrador, impôs limites autoritários a esposa, esquecendo-se de enxergá-la como ser humano, como um sujeito de direitos.
Mais do que de ordem objetiva, a questão sucinta reflexões no âmbito subjetivo, na medida em que se devem analisar os fatores que levam um homem aparentemente saudável a cometer um crime tão horrendo como este. Devem-se analisar quais os fatores sociais e morais que incutiram a ideia de propriedade entre as pessoas a ponto de uma se sentir dona da outra. O Direito está aí para tentar dar respostas a muitas questões objetivas, quando na verdade a solução primordial se encontra na subjetividade. Seja por isso, talvez, que o Direito se mostra tão ineficaz diante de casos como este apresentado. Seja por isso, talvez, que tantas Leoneides ainda aparecerão em busca de ajuda. A violência contra a mulher, infelizmente, não para por aqui.
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