O controle normativo protagonizado pelo Judiciário contemporâneo se analisado pelo viés psicanalítico traz evidenciada a paternalização da função da moralidade pública que é exercida através da decisão judicial.
Ingerborg Maus[1] apontou lucidamente que a tradição jurisprudencial alemã demonstrou que por detrás de generosas garantias judiciais de liberdade e dos princípios de interpretação constitucional pode realmente haver a vontade de domínio e arbítrio cerceador da autonomia dos indivíduos e da soberania popular.
Nos anos sessenta Herbert Marcuse assinalava o envelhecimento da psicanálise, e mais particularmente, o envelhecimento de seu objeto. Seja na família ou na sociedade, a figura do pai vinha perdendo importância na definição do ego (na construção da consciência individual).
Começam as diretrizes sociais terem maior influência do que a intermediação da figura dominante do pai, onde a sociedade se vê cada vez menos integrada por meio de um âmbito pessoal, no qual se pudesse aplicar aos seus atores o clássico modelo do superego.
Sem a figura decisiva e modeladora do pai a sociedade órfã reafirma o infantilismo dos sujeitos, uma vez que a consciência de suas relações sociais diminui. Então, os indivíduos e a coletividade são transformados em meros objetos administrados (ou administráveis), podendo ser facilmente conduzidos por meio da reificação[2] e dos mecanismos funcionais da sociedade industrial moderna.
O crescimento do Judiciário tido como o terceiro poder no século XX revela as tradicionais características da imagem do pai e, tal crescimento não reflete apenas a ampliação objetiva de suas funções, com a majoração do poder de interpretação em face da crescente disposição de litigar, ou ainda, em especial, a consolidação do controle jurisdicional do legislador, principalmente no cenário europeu do pós-guerra mundial.
Somando ainda que a representação da Justiça por parte da população venha a galgar contornos, de veneração religiosa. Há até um adágio popular que expressa: “O juiz pensa que é Deus, mas o desembargador tem certeza!”.
Apenas em poucos países, verifica-se que é possível identificar se a discussão envolve posições de esquerda e de direita entre os juristas. É perceptível que os países da ala direita, há articulação do processo político que se dá sem o controle jurisdicional da constitucionalidade (embora existam países da direita que estejam tentando introduzir esse controle), enquanto que os da ala esquerda investem todos os esforços argumentativos para obstaculizá-lo.
É fato que qualquer crítica feita ao Judiciário e, particularmente, em face da jurisdição constitucional, atrai para si a suspeita de localizar-se fora da democracia e do Estado de Direito. E, as demais funções do Judiciário encontram pronto acatamento numa versão Stzblockade (literalmente “bloquear sentado”) apesar de haver críticas à valoração principiológica da liberdade e a obsessão do domínio tecnocrático por agentes impessoais.
O retorno mais notável ao paternalismo carismático está na jurisdição constitucional norte-americana que desde o século XIX é ilustrada pela vasta literatura doutrina e biografias de juízes.
É fácil ver tais juízes das Cortes Constitucionais norte-americanas como profetas ou deuses do Olimpo do Direito que subiram aos céus[3] e, estão sentados à direita da equidade e à esquerda da analogia.
A tendência ao biografismo demonstra a reação passiva da personalidade em face de uma sociedade dominada por mecanismos objetivos.
Na teoria do Direito alemão na época de Weimar encontravam-se argumentos para as inúmeras defesas das prerrogativas dos juízes diante do legislador democrático. Na época com a queda da monarquia, o povo alemão ficou carente de símbolo de unidade e como sucedâneo propuseram-se os direitos fundamentais da nova Constituição e seus intérpretes judiciais.
Conforme sugeriu Erich Kaufmann[4] a elite antes representada pela nobreza (dotada de sangue azul) fora então substituída pela elite social intelectual (representada principalmente pelos membros do Judiciário).
A ascensão dos “juízes da corte” é fundamentada na argumentação de que a noção racional de direito natural do Iluminismo estaria superada para auxiliar na compreensão dos direitos fundamentais.
O preceito fundamental de igualdade do Iluminismo se referia a um conceito de Justiça que “implicava não somente um método para discussão (…)”, mas sobretudo numa ordem material. Nenhum Parlamento ainda que com capacidade de debate mesmo na esfera pública poderá funcionar como figura substitutiva da figura imperial do pai, o que reafirma a orfandade da sociedade.
A Justiça exigida pelo preceito de igualdade é muito mais que uma ordem superior tanto para ética como para a consciência jurídica revelada através do juiz.
Segundo Kaufmann a existência de uma ordem de valores justa e, uma decisão justa só pode ser tomada por uma personalidade justa. Na frenética fuga da complexidade por parte da sociedade na qual a objetividade dos valores colocada em xeque, não é difícil reconhecer o clássico modelo de transferência do superego.
A eliminação da construção do consenso na qual se pode encontrar as normas e concepções de valores sociais é alcançada por meio da centralização da “consciência social” na Justiça.
Há evidente proximidade entre a jurisprudência e a administração da moral principalmente segundo as modernas teorias da decisão judicial, o que corrobora com Ronald Dworkin ao apontar que o direito e a moral não podem estar divorciados na atividade jurisprudencial.
Ratificou plenamente Dworkin[5] que as perspectivas morais e os princípios são imanentes ao conceito de Direito, mesmo quando não se apoiam no texto legal mas que devem orientar desde o início o trabalho decisório judicial (In Dworkin, Ronald. Law’s Empire; Cambridge 1986, pp. 3ss., Taking rights seriously; Cambridge, 1978, pp. 7 e 81 ss.).
A razão pela qual a teoria dworkiana apesar de suas melhores intenções é capaz de escamotear um decisionismo judicial situa-se não só na extrema generalidade da ótica da moral, em oposição às normas jurídicas, mas também, na relação indeterminada entre a moral atribuída ao direito e as convicções morais empíricas de uma sociedade.
Assumindo o pressuposto de que o juiz possua a capacidade moral de argumentação, Dworkin acreditava que se pode resolver o dilema fazendo o entendimento sobre o conteúdo objetivo da moral social (community morality) através da interpretação judicial.
Deste modo, porém, a moral que deve dirigir a interpretação do juiz torna-se produto também de sua interpretação. E, a inclusão da moral no direito, segundo este modelo, imuniza a atividade jurisprudencial perante a crítica que normalmente deveria estar sujeita.
Consolida-se então sempre um conceito de direito que é produto de extensão de suas ponderações morais e a Justiça ascende à condição de mais alta instância moral da sociedade, escapando de qualquer tipo de controle social (sendo certo que no Estado de Direito toda a instituição deveria se submeter).
Diante do contexto convém analisar se estaríamos diante de um retrocesso social ou, se é mera acomodação às condições do moderno e anônimo aparato administrativo do Estado, onde trafegam todas as figuras paternas que são obrigadas à abdicação.
Reconhecidamente no foro interno, a moral espelha a consciência de toda a sociedade. Não será a Justiça em sua atual conformação, nada além que a substituta do imperador, não seria a soberania decisional?
Analisando a primeira ideia de regressão que se caracteriza o desenvolvimento do Estado do século XX em face do ideal de autonomia das concepções constitucionais do século XVIII o que requer uma reflexão histórica.
Foi Emmanuel Sieyès[6] um pensador constituinte da Revolução Francesa elaborou a ortodoxa proposta do “domínio da lei” que substituiria a idolatria absolutista. O mesmo pensador em 1788 sustentou que o povo, depois de uma longa escravidão espiritual, parecia desconhecer que seus direitos de liberdade.
A proteção paternal do Estado que não concede a propriedade, mas a protege; e que todo cidadão tem não só o direito de deixar de fazer aquilo que a lei proíbe como igualmente o direito intocável de poder fazer tudo o que expressamente não for proibido por lei.
É exatamente no que a lei não proíbe onde se localiza a liberdade civil. Na formulação democrática a lei é fruto da decisão do povo, principalmente quando a lei era votada pelos representantes escolhidos pelo povo.
Em todo caso, a autoridade protetora, ainda almejada por Sieyès, despe-se as vestes paternalistas que lhe cabiam com a proteção da lei e, tornar-se delegada da soberania legislativa do povo. A concepção democrática de Estado inverte as relações naturais; nestas os filhos aparecem em primeiro plano, sendo-lhes derivado o pai.
Quando Sieyès alegou que “a lei nada tem a permitir” estendendo-se o campo da liberdade civil que tem o conceito negativo, a saber: “tudo o que esta não proíbe”. O espaço original da liberdade dos cidadãos permanece proporcionalmente maior, quanto menor for o espaço destinado ao proibido.
Por isso, que se exige o máximo de precisão das proibições legais, e o melhor exemplo disso, é a arquitetura conceitual do tipo penal que descreve o crime e a contravenção.
Nesse sentido, o poder de interpretação dos tribunais em face das leis deve ser o mais limitado que possível. Foi a Revolução Francesa que introduziu o impraticável réferé législatif[7]·, pois o juiz ante a incerteza da lei teria que recorrer à interpretação autêntica do Legislativo.
Apesar do caráter ilusório da representação, há uma forte vinculação legal do Judiciário à efetiva práxis jurídica até o início do século XX quando aparece neste período a ideia enfática de liberdade, já antes observada por Montesquieu ao afirmar que: “em Estados despóticos não há nenhuma lei: o juiz tem a si próprio como lei”.
Com a forma republicana a essência da Constituição reside no fato de que os juízes devem observar a letra da lei. Não pode o conceito de liberdade ser reduzido aos interesses econômicos e nem tampouco ser entendido como “negativo”.
A recém-nascida cidadania precisava vincular estritamente ao Estado à legislação, o que decorria da necessidade liberal de concorrência de poder prever a intervenção estatal, capaz de garantir a certeza da propriedade, a previsão de investimentos econômicos e, sobretudo, as relações de mercado. E, também a garantia de liberdades desvinculada de classes sociais.
O fato de o domínio da lei ter sido confundido com o da soberania do povo (conceito restrito em face das limitações ao direito de votar e ser votado) transformou a ideia de domínio em autolegislação.
A vinculação estrita do judiciário e do executivo à legislação resvalava no primado do Legislativo sobre os demais poderes do Estado, o que fere o clássico modelo de separação de poderes.
De qualquer forma o sujeito da filosofia iluminista deve ser liberado tanto do infantilismo relativo à consciência como da orientação paternalista do processo político de decisão.
A invasão dos princípios superiores ao Direito escrito pela Justiça acarreta a suspensão das disposições normativas individuais e, assim, a visão moral no âmbito das proibições legais, e pode arbitrariamente também estender o campo extrajurídico da liberdade.
Somente a posteriori por meio do processo judicial é que o cidadão aprende a deduzir o futuro permitido a partir das decisões judiciais. Portanto, o âmbito da liberdade anterior dos indivíduos se transforma então em produto de decisão judicial fixado mediante cada caso concreto.
Sendo sintomático que no direito pós-moderno a multiplicação exponencial de conceitos de teor aberto e geral e de cunho moralista tais como “má-fé”, “boa-fé”, “razoável duração” e “censurável” que nem sempre são derivados da moral racional, mas que correspondem às representações judiciais altamente tradicionais e conservadoras (ou politicamente autoritárias, como no caso da jurisprudência alemã). E, ouso afirmar também da jurisprudência brasileira.
Recentemente o questionamento sobre a constitucionalidade de movimento e manifestações políticas públicas que bloqueavam caminhos públicos como ruas, estradas de ferra, aeroportos para protestar contra o transporte de material radioativo. Decidiu o Tribunal Federal Constitucional alemão em 11/11/1986 confirmando decisão anterior que tal recurso constituía o uso de violência nos termos do código 240 do Código Penal Alemão, sendo portanto, ilegal e passível de punição.
Posteriormente, em 1995, o mesmo Tribunal alemão modificou seu entendimento vindo a declarar inconstitucional a decisão anterior tomada, considerando que as manifestações não constituíam violação ao Código Penal Alemão, revelando-se simples contravenção punível com multa.
Não somente as cláusulas gerais fazem a Justiça funcionar como instância moral, mas também por endossar certa confiança popular. Deixando de ser o “terceiro neutro” para assumir um papel mais decisório e legítimo quanto à cidadania.
Deste modo, a Constituição vigente passou a ser objeto de controle de sua própria constitucionalidade[8], ou pelo menos, o objeto de uma interpretação devidamente constitucional. A interpretação de direitos fundamentais esculpe uma ordem objetiva de valores que tanto influencia todo o sistema jurídico vigente.
Afinal, a Justiça conseguiu limitar o autoritarismo do príncipe por meio de seu formalismo jurídico, o que levou o despertar econômico das ideias jurídicas materiais no século XX e também colocaram os juristas mais fortes e pesados na balança da civilização.
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.
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