Em 15 de dezembro de 2011 o legislador brasileiro oferta um “presente de natal” à população. É a Lei 12.550/11 que, na verdade, trata da criação da chamada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).
Sem qualquer espécie de conexão com a matéria dessa lei, por incrível que pareça, cria, ao final, um novo tipo penal e uma nova pena de interdição temporária de direitos!
A nova interdição se constitui na inclusão de um inciso V no artigo 47, CP prevendo a “proibição de inscrever-se em concurso, avaliação ou exame públicos”. Já o crime recebe o “nomen juris” de “Fraude em certame de interesse público” e passa a ser descrito no artigo 311 – A, CP.
Primeiro salta aos olhos a absurdidade caótica da previsão de matéria penal oculta no final de uma lei que trata da criação de uma empresa referente a serviços hospitalares, parecendo que o Congresso Nacional agora vai se aventurar no ramo da gastronomia, criando ao invés do “escondidinho de carne – seca”, o “escondidinho de lei penal”. Para além disso, segundo consta o tal artigo 311 – A, CP teria a pretensão de incriminar a denominada “cola eletrônica” ou quaisquer outras fraudes perpetradas em concursos e exames públicos em geral. Acontece que numa simples leitura do dispositivo criado verifica-se claramente que não incrimina o que devia ou pretendia incriminar. Acaba a lei tratando da divulgação ou utilização indevida com fim de benefício próprio ou alheio ou de comprometer a credibilidade do certame, de conteúdo sigiloso dos concursos, avaliações, processos seletivos e exames que arrolada em quatro incisos. Também tipifica a permissão ou facilitação de acesso de pessoas não autorizadas às informações supra mencionadas. Finalmente prevê uma qualificadora quando há resultado de dano à administração pública e um aumento de pena se o agente é funcionário público.
Pergunta-se: onde se enquadra a conduta de quem leva uma cola para um concurso, sem saber previamente das questões e respostas? Onde se tipifica a “cola eletrônica”, em que o candidato dita as perguntas por meio de comunicação eletrônica a uma pessoa fora do local, a qual responde com seus próprios conhecimentos, sem acesso prévio às questões e/ou gabarito? Em nenhum desses casos há indevida divulgação ou utilização de qualquer informação privilegiada. Portanto, o que era atípico, continua atípico.
A doutrina incipiente sobre o tema já vai apontado essa solução:
“Apesar de muitos acreditarem que a ‘cola eletrônica’, agora, passou a ser crime, pensamos que a tipicidade vai depender da análise do caso concreto. Vejamos: Se o modo de execução envolve terceiro que, tendo acesso privilegiado ao gabarito da prova, revela ao candidato de um concurso público as respostas aos quesitos, pratica, junto com o candidato beneficiário, o crime do art. 311 – A (aquele, por divulgar, e este, por utilizar o conteúdo secreto em benefício próprio). Já nos casos em que o candidato, com ponto eletrônico no ouvido, se vale de terceiro expert para lhe revelar as alternativas corretas, permanece atípico (apesar de seu grau de reprovação social), pois os sujeitos envolvidos (candidato e terceiro) não trabalharam com conteúdo sigiloso (o gabarito continuou sigiloso para ambos)”. [1]
Note-se que a verdadeira “cola eletrônica” não é mesmo prevista, vez que a conduta que pode ser incriminada nada tem a ver com os casos de fraude que acontecem nessa espécie de prática. Neste sentido também se manifesta Siena:
“Assim sendo, na hipótese em que os agentes, sem conhecimento prévio das questões ou respostas, se utilizam de meios fraudulentos, como no caso da conhecida ‘cola eletrônica’, valendo-se apenas de seus conhecimentos para resolver a prova ou exame, a conduta será fatalmente atípica”. [2]
E mais, se a intenção era incriminar somente a conduta de utilização ou divulgação indevida de conteúdo sigiloso, o dispositivo criado é supérfluo, pois que o ordenamento jurídico já contava com essa espécie delitiva no artigo 325, CP e no artigo 94 da Lei 8.666/93. Conseguiu apenas o legislador engendrar mais um caso de norma especial para o tormento de todos quantos lidem com a legislação penal brasileira.
Ao que parece o legislador pensa que basta dar um “nomen juris” para um crime e então ele, magicamente, passa a tipificar a conduta desejada independentemente do que se escreva em seu preceito primário. Isso é mais do que sonharia Guilherme de Ockam, conhecido como o maior pensador do nominalismo. É, em verdade, o protótipo de um “nominalismo mágico” que se assemelha ao infantilismo das crianças e dos povos primitivos que acreditam que palavras e pensamentos têm poderes para alterar a realidade. Se a “mens legis” era a de incriminar a “cola eletrônica” ou a “cola” em qualquer de suas categorias em certames de interesse público, falhou o legislador porque parece pensar que o simples nome “fraude em certame de interesse público” é suficiente para incriminar a conduta desejada. É como se uma pessoa pensasse que seu filho adquiriria força descomunal ao dar-lhe o nome de Hércules ou que sua filha seria Presidente da República se fosse chamada de Dilma!
Infelizmente neste, como em muitos outros casos, é difícil concatenar a “mens legis” com a dicção legal. È muito mais fácil diagnosticar uma “dementia legis” do que encontrar coerência entre intenção e texto legal.
A seguir nessa senda infantilizada não demorará o dia em que será criado um crime cujo “nomen juris” será “Abracadabra”, o preceito primário descreverá “Pirlimpimpim” e a pena será “O Estado ficou de mal com você”!
Quando o legislador chegará à maturidade ou pelo menos à adolescência? Mas, afinal, é bom brincar ganhando remuneração de gente grande e seguindo no ritmo e no “molejo” do pagode: “Brincadeira de criança, como é bom, como é bom…” [3]
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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