Resumo: A pesca artesanal denominada ‘lance de praia’ é uma técnica de captura praticada há pelo menos cinquenta anos no litoral do Rio Grande do Sul, constituindo-se numa modalidade sem previsão no ordenamento jurídico brasileiro. O presente estudo, fruto da verificação da constante angústia e insegurança jurídica de muitos profissionais que dependem de tal arte para o seu sustento e de sua família, tem por objetivo apresentar o conflito decorrente do não reconhecimento do ‘lance de praia’ como modalidade de pesca artesanal, e as consequentes autuações ambientais baseadas na aplicação de legislação estranha à categoria – conforme entendimento dos pescadores. Assim, percebe-se ser unânime o entendimento de que referida prática pesqueira demanda normatização própria. Este trabalho desenvolveu-se a partir do acompanhamento das constantes reivindicações dos agentes sociais envolvidos, e da necessidade de enfrentamento da crise moral e socioeconômica das comunidades, através do exercício pleno da cidadania e, notadamente, do resgate da garantia da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chaves: ‘Lance de praia’. Direito Constitucional. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.
Abstract: The artisanal fishing known as “lance de praia” is a technique that has been used for at least fifty years. It has become a non-estimate pattern foreseeable according with Brazilian legislation. The present study has been a result from the verification of the constant distress and legal uncertainty of many fishermen who rely on such practice to support themselves and their families. It aims present the conflict arising from the non-recognition of the ‘lance de praia’ as a small-scale fishing mode and the eventual environmental charges based on the application of foreign legislation to the category – according with reports given by fishermen. Thus, it seems to be a unanimous view that this fishing practice demands its own standardization. This work was developed from the monitoring of the constant demands of social agents involved, and the need to confront the moral and socio economic crisis of the communities, through the complete practice of citizenship and notably the rescue of guaranteeing human dignity.
Keywords: ‘Lance de praia’. Constitutional law. Human Dignity Principle.
Sumário: Introdução. 1- A pesca na modalidade ‘lance de praia’. 2- Inconformismos dos pescadores que praticam a modalidade ‘lance de praia’. 3- O princípio da dignidade da pessoa humana: direito ao trabalho digno. Considerações finais. Referências.
“Apresentar estudos relacionados à pesca ‘lance de praia’, e as reivindicações dos pescadores artesanais pela normatização da modalidade, tendo por fundamento o direito ao trabalho digno e o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”.
INTRODUÇÃO
No Brasil, a longa linha costeira e a extensa malha hidrográfica continental proporcionam as condições ideais para o aproveitamento econômico da fauna aquática. Especificamente quanto à pesca marítima, as características oceanográficas e climáticas das diversas regiões do litoral determinam a potencialidade de captura e a produtividade dos recursos, bem assim as técnicas e equipamentos a serem utilizados.
A frota pesqueira marítima pode ser dividida em duas categorias: costeira e oceânica. A primeira, quando desenvolvida artesanalmente, utiliza embarcação de pequeno porte, geralmente de madeira e com motor de baixa potência, com atuação em áreas muito próximas à costa.
No Estado do Rio Grande do Sul são praticadas diversas modalidades de pescaria costeira artesanal e semi-industrial, algumas já regulamentadas pelos órgãos ambientais. Caracterizam-se pela exploração de recursos demersais e pelágicos[1] (HAIMOVICI e KLIPPEL, s.d.) e pela utilização de variadas artes de pesca, incluindo redes de emalhe de fundo e de superfície, redes de arrasto e espinhel.
Dentre as modalidades de pesca artesanal praticadas, a que demanda mais atenção das autoridades competentes é a denominada ‘lance de praia’, sem regulamentação específica, e da qual dependem economicamente cerca de 150 famílias nas cidades do Rio Grande e São José do Norte/RS.
Não obstante a incipiente caracterização da modalidade pelo Centro de Pesquisa e Gestão dos Recursos Pesqueiros Lagunares e Estuarinos em Rio Grande/RS (CEPERG/IBAMA/MMA) [2], esta atividade exercida há mais de 150 anos passou a ser alvo de fiscalização e autuações por parte do IBAMA[3] nos três últimos anos, ora pelo entendimento de que se trata de pesca de arrasto de praia com malha de rede proibida[4], ora pela constatação de que as embarcações utilizadas não possuíam permissionamento junto ao Ministério da Pesca e Aquicultura – MPA[5].
Frise-se que este trabalho não visa a defender a regulamentação ou não da modalidade ‘lance de praia’, mas à demonstração de que o Estado não pode ser inerte, pois possui o inescusável dever de dizer o direito, sob pena de insegurança jurídica e injustiça social, numa afronta ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
1. A PESCA NA MODALIDADE ‘LANCE DE PRAIA’
A prática de pesca com a utilização de redes de arrasto de qualquer tipo a menos de 3 milhas da costa é proibida em todo o litoral sul e sudeste brasileiro, conforme o teor do artigo 2.º da Portaria SUDEPE N-26, de 28 de julho de 1983. O uso de redes de arrasto de praia com malha de 100 mm (medida tomada entre os ângulos opostos da malha esticada) é excetuado pelo parágrafo único do mesmo regulamento, desde que arrastadas sem tração mecânica.
Tal método, conhecido como ‘arrastão de praia’ ou ‘terno de costa’, tem como característica o uso de rede constituída por vários panos ligados, de alturas progressivamente menores, com um centro de maior altura (pano de ensacamento do pescado). Em suas extremidades são fixados cabos nas partes superior e inferior da rede, unidos ao cabo de arrasto, sendo que a tralha superior é provida de flutuação (boias) e a inferior de lastro (chumbo). O seu emprego necessita de no mínimo 12 homens para a captura de corvina, pescadinha-real, savelha, enchova, tainha, viola, dente outras espécies, e é altamente predatório quando utilizadas malhas inadequadas. (SUDEPE, 2003)
A modalidade de pesca objeto do presente trabalho, por sua vez, denomina-se ‘lance de praia’, cuja caracterização e normatização são as maiores reclamações do setor pesqueiro no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Com efeito, o exercício dessa técnica passou a ser alvo de fiscalizações por parte do IBAMA, principalmente a partir do ano de 2010, com autuações decorrentes do enquadramento da modalidade como ‘arrastão de praia’, com a utilização de rede de malha de 70 mm, proibida, portanto, nos termos da Portaria SUDEPE N-26/83, e por falta de permissionamento das embarcações pelo Ministério da Pesca e Aquicultura.
Diante da pressão decorrente das primeiras fiscalizações no Rio Grande do Sul, em maio de 2011, pescadores de beira de praia do município de São José do Norte procuraram apoio de políticos e da Colônia de Pescadores Z-2, a fim de que intercedessem junto aos órgãos competentes. Na mesma intenção, os pescadores de Rio Grande, por intermédio da Câmara de Vereadores e da Associação de Pescadores Artesanais a Aquicultores da Praia do Cassino – APAAPC, os quais solicitaram apoio técnico do CEPERG/IBAMA na busca da caracterização do ‘lance de praia’.
Em resposta, analistas do CEPERG acompanharam algumas operações de pesca desta modalidade, resultando na apresentação de um documentário em vídeo e de um parecer técnico que possibilitaram a continuidade, em caráter precário, da atividade na safra de 2011. Diversas reuniões coordenadas pelo Centro de Pesquisa estenderam-se até o ano de 2012, com a participação de pescadores, representações políticas municipais, e colônias e associações de pescadores, com vistas à elaboração de uma proposta de normatização para a pesca de praia no litoral sul do RS.
Nesse sentido, a caracterização prévia apresentada neste trabalho baseia-se no parecer técnico acima mencionado, bem como na etnoictiologia – o conhecimento dos próprios pescadores sobre as espécies marinhas e as técnicas tradicionais de manejo e organização da pesca.
Assim, consoante o acompanhamento realizado pelo Centro de Pesquisa no ano de 2011, foi possível verificar que os pescadores utilizam para a atividade uma ‘parelha’, que nada mais é do que um conjunto formado por um caminhão com reboque, uma pequena embarcação motorizada (canoa de aproximadamente 6 metros de comprimento) e uma rede retangular de cerca de 600 braças (1.098 m) de comprimento e entre 1,5 e 2 braças (2,74 e 3,66 m) de altura, para a captura das espécies-alvo papa-terra (Menticirrhus littoralis e M. americanus) e pescadinha (Macrodon atricauda).[6]
A rede é constituída de um pano de poliamida, com malha de 70 mm (medida tomada entre nós opostos com a malha esticada), armado entre uma tralha superior com flutuadores de isopor dispostos com espaçamento de 2 metros entre si, e uma tralha inferior chumbada.[7]
A faina de pesca inicia-se com a colocação da canoa na água e do cabo perpendicularmente à linha de praia. A rede é lançada paralelamente à linha do mar, conforme a direção e velocidade da corrente litorânea, enquanto os pescadores se deslocam, juntamente com o caminhão, em direção ao final do lanceio. Ao terminar o lançamento, a embarcação retorna à praia com outro cabo – de segurança, e é colocada sobre o reboque que retorna com o caminhão até o primeiro cabo, para o início do recolhimento da rede.
O procedimento é finalizado com o recolhimento manual da rede pela praia, logo após o final do lançamento, do ponto de início do lanceio em direção ao final. A rede é tracionada apenas por uma ponta para a praia por 3 ou 4 pescadores, sendo puxada diretamente para a embarcação, que já se encontra no reboque do caminhão. Próximo ao final do recolhimento, o segundo cabo (de segurança) é solto, não havendo tração. Com a rede disposta sobre o barco, o procedimento de novo lanceio está pronto para ser reiniciado. Os peixes, desmalhados durante o processo de retirada da rede da água, são separados, lavados e encaminhados para um caminhão com gelo, geralmente de propriedade de compradores de peixe.
Como se pode perceber, esta pescaria distingue-se, em princípio, do ‘arrastão de praia’ principalmente pelo petrecho (rede) e método empregados. Enquanto a rede do ‘lance de praia’ é homogênea em toda a extensão horizontal, tanto em relação à altura quanto ao tamanho de malha (70 mm entre nós opostos), a rede de arrasto de praia é constituída de duas seções laterais denominadas mangas e uma seção central denominada centro (na qual os peixes ficam retidos), e tanto a altura quanto o tamanho de malha são diferentes entre as duas seções.
Quanto ao método, o lançamento da rede do ‘lance de praia’ e do ‘arrastão de praia’ segue a mesma rotina, salvo que o segundo exige o envolvimento de aproximadamente o dobro de pessoas em relação ao primeiro. A grande diferença está no recolhimento. Enquanto a rede do ‘lance de praia’ é recolhida apenas por um cabo, a rede de arrasto de praia é puxada pelas duas pontas simultaneamente, fechando o cerco contra a praia e arrastando o fundo.
2. INCONFORMISMOS DOS PESCADORES QUE PRATICAM A MODALIDADE ‘LANCE DE PRAIA’
Dentre as diversas inconformidades relatadas pelos pescadores artesanais, a que enseja a maior insegurança jurídica e preocupação daqueles é a ausência de respaldo legal para o exercício de suas atividades, com todas as consequências inerentes, notadamente criminais.
Segue nesse sentido a modalidade de pesca de emalhe em beira de praia (‘lance de praia’), prática típica no Estado do Rio Grande do Sul, e dotada de metodologia não reconhecida até o momento pelos órgãos responsáveis pela criação e elaboração das normas, critérios e padrões para o uso sustentável dos recursos pesqueiros.
Não obstante tratar-se de atividade praticada há 150 anos naquele estado, a falta de caracterização da técnica permanece como principal empecilho para o permissionamento da modalidade, como dito, por vezes identificada como ‘arrastão de praia’ ou ‘terno de costa’.
A insegurança advinda da falta de respaldo legislativo inviabilizou o exercício regular da atividade, gerando dificuldades financeiras e uma constante sensação de injustiça social pelos pescadores artesanais, com diversas consequências secundárias, como a impossibilidade de aproveitamento dos meios de produção empregados em outras modalidades de pesca, a exemplo das redes utilizadas no lanceio. Essa situação produziu outra grande incerteza nas comunidades pesqueiras: investir o pequeno recurso financeiro ainda disponível em uma nova atividade ou continuar aguardando por uma resposta estatal sobre o regramento ou não da técnica em epígrafe.
Tais inseguranças, como se pode perceber, vão de encontro ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, o qual se relaciona tanto com a liberdade e os valores do ser humano, como com as condições materiais de subsistência.
Como exposto anteriormente, entre os anos de 2010 e 2012 diversos pescadores foram fiscalizados e autuados pelo IBAMA face à prática de pesca predatória e ausência de permissionamento das embarcações no Ministério da Pesca e Aquicultura, incitando a participação técnica do CEPERG para a caracterização, mesmo que precária, do ‘lance de praia’.
Segundo o IBAMA, a caracterização – crucial para análise da viabilidade técnica e consequente normatização, demanda o monitoramento da atividade em campo para a descrição exata das áreas de captura, dos petrechos utilizados e da metodologia empregada, além da definição e quantificação das espécies-alvo e da fauna acompanhante, com a coleta de amostragem biológica.
Em virtude da ausência de solução governamental às demandas dos pescadores, principalmente após as autuações e apreensões de embarcações e petrechos em maio de 2012, protestos foram realizados em Rio Grande/RS, inclusive com a interdição da BR-392 em duas oportunidades, no mês seguinte àquela fiscalização[8].
Os protestos foram ‘engrossados’ pelos armadores de pesca da modalidade emalhe, técnica regulamentada à época pela Portaria IBAMA n.º 121-N/98 e pela Instrução Normativa IBAMA n.º 166/2007, cuja principal reivindicação dizia respeito ao aumento das dimensões das redes de pesca de emalhar.
Os Ministérios da Pesca e Aquicultura e do Meio Ambiente, apesar de todos os problemas sociais relatados pelos pescadores artesanais, acabaram ‘cedendo à pressão’ da classe com maior poderio econômico, sancionando a recente Instrução Normativa Interministerial n.º 12, de 22/08/2012, e redimensionando o comprimento máximo da rede de emalhe, dentre outras medidas. A mesma Instrução, numa lógica invertida de sustentabilidade dos recursos naturais, dispôs em seu artigo 25 que “as embarcações que atuam na pesca de emalhe de fundo nas regiões Sudeste e Sul, de que trata a presente Instrução Normativa Interministerial, ficam dispensadas da limitação imposta no art. 1º da Portaria Ibama nº 121-N, de 24 de agosto de 1998 e na Instrução Normativa Ibama nº 166, de 18 de julho de 2007”.
A modalidade ‘lance de praia’, praticada por pescadores que representam a classe menos favorecida economicamente, acabou por ser timidamente mencionada na mesma Instrução, com a proibição expressa de seu exercício até eventual futura regulamentação técnica, consoante teor dos únicos artigos que tratam da técnica em comento:
“Art. 6º – Proibir a pesca de emalhe por embarcações motorizadas até a distância de 1 (uma) milha náutica a partir da linha de costa.
§ 2º – O disposto no caput deste artigo e no parágrafo anterior entrará em vigor 12 (doze) meses após a publicação desta Instrução Normativa Interministerial. (grifo meu)
§ 3º – O prazo previsto no parágrafo anterior poderá ser prorrogado, considerando a necessidade de regulamentação de normas de ordenamento específicas. (grifo meu)
Art. 7º – Proibir a pesca de emalhe por embarcações motorizadas até a distância de 5 (cinco) milhas náuticas, a partir da linha de costa, do farol do Albardão/RS até o limite sul do Estado do Rio Grande do Sul, sendo as coordenadas definidas em Datum WGS 1984, -33,202460 S -52,706037 W, a partir da data de publicação desta Instrução Normativa Interministerial, exceto para a pesca com redes de lance de praia, para a qual a entrada em vigor obedecerá ao disposto nos §§ 2º e 3º do artigo 6º.” (grifo meu)
3. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: DIREITO AO TRABALHO DIGNO
Promulgada pela ONU em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos apregoa em seu primeiro artigo que “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
Quarenta anos após, a Constituição Federal brasileira de 1988 consagrou a pessoa humana como centro de valorização de todo o ordenamento jurídico nacional, enunciando em seu preâmbulo:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”
O art. 1.º da Carta Magna, por sua vez, consolidou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, servindo de resguardo para os direitos individuais e coletivos, além de se revelar um princípio maior para a interpretação dos demais direitos e garantias conferidos aos cidadãos (NUNES, 2002).
O princípio da dignidade da pessoa humana, entendido como valor moral inerente ao indivíduo, independentemente de qualquer requisito ou condição referente à nacionalidade, sexo, religião, posição social etc., constitui axioma máximo do estado democrático de direito, sendo alçado a princípio fundamental pela Constituição Federal. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e os valores intrínsecos do ser humano, quanto com as condições materiais de subsistência, devendo estar em sintonia com a evolução e as necessidades humanas.
O jurista Ingo Wolfgang Sarlet (SARLET, 2011) conceitua dignidade como:
“A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.”
Como forma de assegurar a segurança básica do cidadão, a Constituição elencou em seu Título II os direitos e garantias fundamentais dos homens. O Capítulo II enumera como direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados e o trabalho, os quais efetivam a dignidade da pessoa humana e promovem a justiça social.
Conforme Pedro Lenza (LENZA, 2010), os direitos sociais, direitos de segunda dimensão, apresentam-se como prestações positivas a serem implementadas pelo Estado (Social de Direito) e tendem a concretizar a perspectiva de uma isonomina substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de vida.
Nesse sentido, no que pese a importância de cada um dos direitos sociais, não há que se falar em realização plena da dignidade da pessoa humana sem a devida consideração do direito ao trabalho, uma vez que sua ausência afeta não apenas o próprio indivíduo, mas sua família, seus amigos e, em maior escala, toda sua comunidade.
Nos dizeres de José Felipe Ledur (LEDUR, 1998), a realização do direito ao trabalho fará com que a dignidade humana assuma nítido conteúdo social, na medida em que a criação de melhores condições de vida resultar benéfica não somente para o indivíduo em seu âmbito particular, mas para o conjunto da sociedade.
Tal conteúdo social, inclusive, encontra-se previsto no Título VIII da CF/88, ao rezar em seu art. 193 que a ordem social tem por base o primado do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais, estabelecendo, consoante Pedro Lenza (LENZA, 2010), perfeita harmonia com a ordem econômica, que se funda, também, nos termos do art. 170, caput, na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa.
Segundo José Anfonso da Silva (SILVA, 2007 apud LENZA, 2010):
“Ter como objetivo o bem-estar e a justiça sociais quer dizer que as relações econômicas e sociais do país, para gerarem o bem-estar, hão de proporcionar trabalho e condição de vida, material, espiritual e intelectual, adequada ao trabalhador e sua família, e que a riqueza produzida no país, para gerar justiça social, há de ser equanimemente distribuída.”
Desta forma, sendo o trabalho direito do cidadão e ao mesmo tempo dever social do Estado, a este é exigido criar estruturas normativas e promover condições mínimas para que a cidadania seja exercida dignamente. Submeter indivíduos a situações de marginalidade por ausência de oportunidade de trabalho constitui, no mais das vezes, o estopim para a violação das leis e da própria violência.
Ocorre, entretanto, que a simples inclusão desse princípio na ordem política não basta para a garantia da cidadania, sendo imprescindível sua efetividade através da instigação dos agentes públicos a regerem os direitos e deveres que lhe foram democraticamente delegados pelos cidadãos.
A dignidade da pessoa humana, assim, tem estreita ligação com o exercício pleno da cidadania, o qual representa o direito de defesa dos valores fundamentais da civilização.
O exercício da cidadania, enfim, não deve se manifestar apenas quando da elaboração da legislação em consonância com a lei natural, mas principalmente no seio da própria população, através da manifestação, pelos meios legais a que tenha acesso, de sua aprovação ou reprovação às políticas públicas, conforme promovam ou não a dignidade dos cidadãos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A adequação das normas vigentes às necessidades dos indivíduos mostra-se como um reclamado anseio de toda a sociedade. Os ditames do ordenamento legal de um país democrático devem ter por base o desenvolvimento de seu povo, através de um Poder Legislativo legitimamente constituído e de instituições públicas dotadas de servidores capacitados e cientes de sua mais relevante atribuição: zelar pelo que é de todos e servir aos cidadãos dignamente.
Nem sempre, contudo, a legislação externaliza as expectativas e os desejos dos indivíduos, traduzindo-se, por vezes, em normas que vão de encontro às exigências da sociedade, seja pela ausência de diálogo com os destinatários, seja pelo desconhecimento técnico ou empírico dos responsáveis pelas normatizações. Em outras situações, ainda, os órgãos normatizadores sequer acompanham as alterações dos padrões comportamentais e das atividades humanas em constante adaptação à realidade socioeconômica.
No que tange ao caso da modalidade ‘lance de praia’, tem-se que os sentimentos de insegurança e de injustiça sociais vivenciados por aqueles que dependem economicamente de uma atividade nem ao menos caracterizada não devem ser desconsiderados ou minimizados pela sociedade em geral e por seus representantes. A definição governamental, desta forma, apresenta-se como essencial à garantia da dignidade da pessoa humana, impedindo que um problema socioeconômico e político rompa a barreira da inconformidade e das até então pacíficas reivindicações dos pescadores artesanais.
Delegada de Polícia Federal, Responsável pelo Núcleo de Polícia Marítima em Rio Grande/RS, Coordenadora da CESPORTOS/RS, Pós-graduanda em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – UNIDERP/Rede LFG
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