Sumário: 1. O PRINCÍPIO DA NULIDADE DA LEI INCONSTITUCIONAL. 1.1 Noções de Princípios. 1.2 O Princípio da Nulidade da Lei Inconstitucional. 1.3 Influências do Sistema Norte-Americano – Nulidade ab initio. 1.4 Influências do Sistema Austríaco – Anulabilidade da Lei Inconstitucional. 2. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NULIDADE DA LEI INCONSTITUCINAL. 2.1 A Evolução dos Sistemas Norte-Americano e Austríaco. 2.2 Manifestações Inovadoras no Supremo Tribunal Federal. 3. A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA. 3.1 A edição das Leis nºs 9.868/99 e 9.882/99. 3.2 A Aplicação da Lei nº 9.868/99 pelo Supremo Tribunal Federal. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
Resumo: Trata-se de uma abordagem epistemológico-instrumental dos efeitos da aplicação do princípio da nulidade da lei inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, de modo a verificar a possibilidade da modulação dos efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade.
1. O PRINCÍPIO DA NULIDADE DA LEI INCONSTITUCIONAL.
1.1 Noções de Princípios.
As normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são distinguidas em princípios e regras. Os princípios são proposições lógicas, encontradas explícita ou implicitamente no ordenamento jurídico, possuidoras de posição de preeminência, capazes de vincular o entendimento e aplicação das demais normas que a elas estão conectadas.[1]
Não se confundem com as regras, pois estas, ao contrário dos princípios, dispõem sobre situações fáticas,[2] fazem referência a disposições interpretadas que estabelecem mandamentos, proibições ou permissões de atuação, ao passo que os princípios, por serem detentores de maior generalidade, não exigem condições à sua incidência, pois não são decisões que devem ser obrigatoriamente tomadas, mas mandamentos cujo cumprimento pode ocorrer em conformidade com as possibilidades reais de aplicação ante o seu grau de determinalidade, submetendo-se, inclusive, a outros princípios ou regras.
1.2 O Princípio da Nulidade da Lei Inconstitucional.
Ante o fato de a lei ser norma hierarquicamente inferior à Constituição e por possuir nesta os fundamentos de validade e sustentação, não será permitida a sua coexistência no ordenamento jurídico se seu conteúdo dispuser de modo a contrariar a Constituição, uma vez que somente com fundamento na Lei Maior é que ela poderia ser validada.[3] Por esse princípio, atribui-se nulidade absoluta e ineficácia plena à lei incompatível com a Constituição Federal, por lhe faltar o fundamento de validade. Logo, a lei que afrontar essa regra estará incorrendo em vício, passível de sanção imposta pelo próprio sistema. O juiz não anula a lei inconstitucional, esta, por natureza, é nula em si mesma, competindo ao juiz, ao exercer a função de controle, o dever de declarar a nulidade, que é preexistente.
O princípio da nulidade da lei inconstitucional foi incorporado ao Direito Constitucional pátrio pela Constituição Republicana de 1891, implementando entre nós o controle judicial de constitucionalidade das leis pela introdução em nosso sistema jurídico do controle difuso de constitucionalidade.
1.3 Influências do Sistema Norte-Americano – Nulidade ab initio.
O julgamento do caso Marbury vs. Madison pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1803 foi fato determinante para a solidificação desse entendimento. Naquela oportunidade, concluiu-se que, se a decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma recebesse apenas a atribuição de eficácia ex nunc, desconstituindo os fatos decorrentes da norma impugnada somente a partir do momento de sua declaração, tal fato importaria em reconhecimento da validade dos efeitos da lei inconstitucional. Em outras palavras, durante certo período de tempo a norma infraconstitucional se sobrepôs à Constituição, haja vista ter contrariado seus preceitos e permanecido impune.[4] Assim, a inconstitucionalidade é a expressão da existência de um vício capital, ínsito à lei defeituosa, o qual exige do Judiciário seja declarada a invalidez do ato impugnado.[5]
Em face da adoção pelo Judiciário brasileiro do princípio da nulidade da lei inconstitucional, a lei declarada inconstitucional é nula desde sua origem – ab initio. Daí se exigir eficácia ex tunc à decisão que a declare, porquanto a observância de uma norma inconstitucional importaria na suspensão provisória ou parcial da Constituição[6]. Nesse caso, os termos “inconstitucionalidade” e “nulidade” são empregados como sinônimos, possuindo o caráter de sanção. Leva o ato ferido pela pecha de inconstitucionalidade a ser “declarado nulo ipso jure não mais podendo ser aplicado, seja no âmbito do comércio jurídico privado, seja na esfera estatal”.[7]
Sob a influência norte-americana, o princípio da nulidade da lei inconstitucional era aplicado somente no campo do controle difuso. Porém, com a evolução do mecanismo de controle da constitucionalidade, tal doutrina também foi adotada para as hipóteses da atuação do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado, consagrando os atributos da nulidade ab initio da lei inconstitucional e da retroatividade radical quanto aos efeitos da decisão que a declarar.[8]
A aplicação do efeito ex tunc lastreia-se no entendimento mediante o qual a sentença que declara tanto a inconstitucionalidade da norma como sua constitucionalidade tem natureza declaratória e não constitutiva. A atuação jurisdicional apenas verificará a validade ou a invalidade da norma em face da Constituição, reconhecendo, para o caso de invalidade, a nulidade do ato inválido.[9]
1.4 Influências do Sistema Austríaco – Anulabilidade da Lei Inconstitucional.
Para o sistema austríaco, idealizado por Hans Kelsen e implantado na Constituição austríaca de 1920, não existem atos jurídicos nulos. A Corte Constitucional não declara a nulidade da lei contrária à Constituição, mas a anula. Logo, enquanto o pronunciamento da Corte não for publicado, a norma jurídica tida como inconstitucional é válida e eficaz, apesar de inconstitucional.[10]
Muito embora os efeitos da decisão que anula a norma se dêem para o futuro, a anulabilidade poderá ocorrer em graus diferentes, competindo à Corte determinar, ante sua faculdade discricionária de dispor, o momento em que a anulação da lei se operará.[11] No entendimento de Isabel Gallotti, “o ordenamento jurídico pode estabelecer que a anulação opere retroativamente, hipótese em que se costuma caracterizar, de forma incorreta, a norma como nula ab initio ou nula de pleno direito”.[12]
Vem à baila a seguinte questão: a decisão que constatou a existência da pecha de inconstitucionalidade tem caráter constitutivo ou meramente declaratório? Torna-se de fundamental importância ressaltar que a sentença constitutiva “é aquela pela qual se chega a uma declaração peculiar a todas as sentenças de mérito (provimentos jurisdicionais de conhecimento), com o acréscimo da modificação de uma situação jurídica anterior, criando-se uma nova.”[13] Na esteira do pensamento de Kelsen, Dalton Dallazen[14] conclui que o ato que anula a validade de uma lei assemelha-se àquele que a criou, ou seja, também tem o sentido de norma, pois a norma ora anulada não era nula desde o início, mas se tornou nula em face da decisão que constatou a sua desconformidade com a Carta e que possui poder para desconstituí-la, inclusive, desde sua origem. Então, vindo a Corte a declarar a nulidade de uma lei por inconstitucionalidade com efeitos ab initio, na realidade, está a declarar sua anulação, porém, com efeito retroativo, uma vez que essa nulidade somente poderia ser reconhecida após o pronunciamento do órgão competente. Logo, a decisão demonstra não ter caráter declarativo, mas constitutivo, funcionando a anulação da norma como verdadeira sanção pela inconstitucionalidade verificada.[15]
2. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA NULIDADE DA LEI INCONSTITUCIONAL
2.1 A Evolução dos Sistemas Norte-Americano e Austríaco
Ao constatar o modo como tem sido aplicação esse princípio pelo Judiciário norte-americano, percebe-se que ele vem recebendo certa dose de atenuação quanto à sua ortodoxia. Da mesma forma, também na Áustria fora percebida, nos idos de 1929, uma mitigação na aplicação da doutrina da não-retroatividade, o que demonstra a ocorrência de uma verdadeira convergência – muito embora ainda singela – entre os dois modelos de controle da validade das leis em face da Constituição.[16] É que as exigências práticas impõem a evolução do sistema, a adequação da resposta judicial ao caso em apreciação, possibilitando atenuações ora na conferência de efeitos ex tunc pelos adeptos do modelo austríaco, ora na de efeitos ex nunc pelos adeptos do modelo norte-americano.
Em virtude da necessidade de posicionamento da Suprema Corte americana em questões de Direito Penal, a aplicação irrestrita do princípio da nulidade vem cedendo ante a impossibilidade imediata de declarar ilegítimas decisões condenatórias efetuadas sob a vigência da norma posteriormente declarada inconstitucional em processo diverso. A questão era a seguinte: se a lei nunca existiu, todas as condenações com base nessa lei seriam nulas. Contudo, em vista da adoção pelos Estados Unidos do modelo de controle de constitucionalidade em seu sistema difuso, os efeitos de tais decisões somente deveriam repercutir inter partes, não se estendendo a terceiros, tampouco a julgamentos já ocorridos, muito embora embasados na mesma lei.[17]
A medida tomada pelo Tribunal estadunidense serviu à consolidação do entendimento segundo o qual a Constituição nem proíbe nem determina o efeito retroativo da declaração de inconstitucionalidade, à luz da idéia de que uma lei antes de ser declarada inconstitucional pode produzir efeitos que nem sempre poderão ser apagados pela via de uma declaração judicial.[18]
Hoje, nos Estados Unidos, berço do controle difuso e da aplicação da retroação dos efeitos da decisão declaratória da inconstitucionalidade, já se admite que a questão sobre a aplicação dos efeitos nesses casos não deriva diretamente de princípio contido na Constituição, mas de princípio político – princípio da livre determinação judicial. Lá se entende tratar-se de política judicial cuja aplicação se sujeita à livre valoração do caso concreto pelo Judiciário, evitando-se, com isso, a insegurança das situações jurídicas que merecessem permanecer inabaladas ante a nulificação do ato normativo tido como desrespeitador da Constituição.[19]
2.2 Manifestações Inovadoras no Supremo Tribunal Federal.
No âmbito do nosso Supremo Tribunal Federal, desde o início da década de 1970, já existia posicionamento pela mitigação dos efeitos do princípio da nulidade, dando mostra de aceitação do entendimento da adoção da operância prospectiva (ou efeito ex nunc) para circunstâncias determinadas, conforme se depreende do exame de julgados da Segunda Turma desse Tribunal.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 78.594/SP,[20] em 7 de junho de 1971, o Relator, Ministro Bilac Pinto, deparou com situação em que o recorrente exigia a nulidade da citação e da penhora verificadas em processo no qual figurava como réu, uma vez que foram praticadas por oficial de justiça que, na realidade, era servidor público integrante do Poder Executivo e que, ante as necessidades do Estado de São Paulo, fora autorizado por lei à prática dos referidos atos processuais. Ocorre que, em data posterior, pela via do controle concentrado, a lei estadual foi declarada inconstitucional, impondo-se, assim a nulidade de todos os atos dela decorrentes, pois se tornara nula, ou inexistente para o mundo jurídico, em face do princípio da nulidade ab initio.
Em seu voto, o Relator afirmou que “os efeitos desse tipo de declaração de inconstitucionalidade – declaração feita contra lei em tese – não podem ser sintetizados numa regra única, que seja válida para todos os casos” e que se deveria levar em consideração a natureza civil ou penal da lei. Na espécie, tratava-se de assunto de Direito Administrativo no qual prevista a validação dos atos praticados por servidores de fato – já nessa época percebiam-se situações particulares a exigir melhor interpretação ou a adequação da teoria da nulidade ao caso sub judice.
Não é raro que na rotina dos juízes surjam hipóteses de manifesta ilegalidade cuja correção acarreta dano maior do que a manutenção do status quo. Nesse julgamento, optou-se pela ponderação dos bens jurídicos em conflito, prevalecendo os fatos consumados e a providência menos gravosa ao sistema de direito, ainda que essa providência possa ter como resultado a manutenção de uma situação ilegítima, que cause, todavia, menor impacto negativo à idéia de segurança jurídica, além de corresponder ao interesse social. Na realidade, o que se faz é prestigiar outros valores e preceitos constitucionais, de igual hierarquia ao princípio da nulidade da lei inconstitucional, que exigem cumprimento e observância no juízo concreto.[21]
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 79.343-BA, verificado em 31 de maio de 1977, apoiado na doutrina de Kelsen, defendeu o Relator, Min. Leitão de Abreu, a anulabilidade da lei e a natureza constitutiva da decisão judicial que proclama a inconstitucionalidade. Sua Excelência ressaltou a presunção de constitucionalidade da lei – elaborada por órgão legislativo competente e na observância do devido processo legislativo, tendo passado até mesmo pelo crivo do chefe do Poder Executivo –, que não pode simplesmente ser declarada nula desde a origem, pois, enquanto vigente, estabeleceu relações jurídicas entre o particular e o público, relações estas que não são possíveis de ser ignoradas em face do princípio da boa-fé. O certo é que o ato normativo, muito embora tenha sido declarado inconstitucional, por um dado período de tempo constituiu fato jurídico eficaz. O particular que agiu em conformidade com a norma, na presunção de que o fazia segundo o direito objetivo, não pode por isso ser prejudicado. Leitão de Abreu atribuía ao Tribunal o poder de declarar a inconstitucionalidade com eficácia restrita, dando ensejo à aplicação da norma inconstitucional ao caso concreto,[22] o que, ante a teoria da nulidade, seria inconcebível.
Da lição de Regina Ferrari[23] extrai-se que o Direito tem o condão de tornar os fatos significantes, porém, não possui atributo capaz de lhes impedir a ocorrência, tampouco de fazer que seus registros históricos sejam eliminados. Daí não se recomenda a aplicação, como regra absoluta, do efeito ex tunc, pois essa prática estaria a desprestigiar a segurança jurídica e a estabilidade do Direito.
As implicações práticas da declaração de inconstitucionalidade começam a repercutir sobre o princípio da nulidade da lei inconstitucional de modo a impingir-lhe desgaste, ante a irreversibilidade de certas situações consolidadas garantidoras de valores constitucionais, em especial as relacionadas aos direitos fundamentais.[24]
No Recurso Extraordinário nº 105.789, ao tratar da situação de magistrados que auferiram determinadas vantagens pecuniárias em face de lei cuja inconstitucionalidade foi posteriormente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, a Segunda Turma entendeu por manter inalterada a situação, muito embora irregular, uma vez que o retorno ao status quo importaria em comprometimento do princípio da irredutibilidade de vencimentos. Ante a ponderação entre princípios de envergadura constitucional, o Relator, Ministro Carlos Madeira, concluiu que “tal garantia supera o efeito ex tunc da declaração de inconstitucionalidade da norma”[25].
Citando Bachof, Gilmar Mendes assevera que “os tribunais constitucionais consideram-se não só autorizados, mas inclusivamente obrigados a ponderar as suas decisões, a tomar em consideração as possíveis conseqüências destas”.[26] Ademais, se o princípio da nulidade da lei inconstitucional funda-se na Constituição, e, levando-se em consideração o princípio da unidade da Constituição, é adequado ter-se presente que não há princípios constitucionais absolutos, nem hierarquia entre as normas constitucionais; logo, havendo concorrência entre essas normas a solução da preponderância há de ser resolvida pela percepção do peso de cada qual para a solução do caso concreto.[27]
Diante da colisão de princípios de igual hierarquia, da existência de fatos jurídicos que não podem ser desconsiderados e da possibilidade do agravamento da situação que se busca ver protegida, o dogma da nulidade não pode ser tomado por absoluto. Portanto, cabe ao Judiciário demandar esforço no sentido de harmonizar e sopesar a importância de cada fator inserto na demanda, mitigando o princípio da nulidade absoluta, que cede ante a preponderância de outros valores levados à consideração.[28]
3. A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA
3.1 A edição das Leis nºs 9.868/99 e 9.882/99
Como resultado da evolução do sistema de controle de constitucionalidade, o ano de 1999 foi marcado pela edição das Leis nºs 9.868 e 9.882, de 10 de novembro e 3 de dezembro, respectivamente, responsáveis por imprimirem alteração de fundamental importância à tradição jurídica brasileira, até então espelhada no modelo estadunidense. Esses diplomas legais trouxeram para o Direito Constitucional brasileiro a possibilidade de o órgão judicial dispor sobre os efeitos de sua decisão quando declarar a inconstitucionalidade de lei ou outro ato normativo, atribuindo ao julgador certa parcela de discricionariedade ante um juízo de ponderação entre o princípio da nulidade da lei inconstitucional e os princípios da segurança jurídica e do excepcional interesse social, pela busca da preservação das relações jurídicas constituídas sob a égide de diploma possuidor de presunção de validade, que ora se vê banido do ordenamento jurídico.
Com a edição da norma contida no art. 27 da Lei nº 9.868/99, de conteúdo semelhante à do art. 11 da Lei nº 9.882/99, o legislador ordinário reconheceu a necessidade de abandono dos pontos extremos das duas correntes, a norte-americana e a austríaca, que buscam estabelecer a eficácia da sentença que proclama a inconstitucionalidade, pois a observância irrestrita desses entendimentos pode repercutir negativamente na segurança e na certeza do Direito. Não há como negar a existência válida da lei inconstitucional até o momento do pronunciamento da decisão que assim a considerou, bem como não se deve prestigiar o ato embasado em lei inconstitucional.[29]
Em homenagem ao sistema constitucional português, cuja Constituição traz no seu art. 282º, n. 4,[30] norma de teor similar à do referido art. 27, a nova legislação brasileira veio a inserir uma idéia de ponderação no atual sistema, no qual prevalecia a tese da nulidade ab initio da lei inconstitucional, dosando a excessiva rigidez de modo a acabar com a incerteza da aplicação do Direito no que tange à capacidade de determinar no tempo o alcance dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Buscou, com isso, a exaltação do próprio Direito, cuja razão de ser está alicerçada na possibilidade de proporcionar harmonia à convivência social pela satisfação da necessidade de segurança jurídica e de evitar que os tribunais deixem de decidir pela existência da inconstitucionalidade por receio de que o restabelecimento do statu quo ante possa trazer conseqüências por demais gravosas.[31]
Ao dispor sobre a possibilidade de dosagem dos efeitos das decisões declaratórias de inconstitucionalidade, o legislador não exclui do mundo jurídico a hipótese da aplicação do princípio da nulidade da lei inconstitucional. A adoção dos efeitos desse princípio ainda continua sendo a regra aplicada[32] – em constatando a existência do vício de inconstitucionalidade, o Tribunal deverá optar pela aplicação à sua decisão do efeito ex tunc, anulando a norma desde a origem. O que se acresceu à hipótese foi que, ante a verificação de motivos de segurança jurídica e de excepcional interesse social, poderá o órgão julgador impor restrições aos efeitos da decisão e decidir pela aplicação dos efeitos ex nunc ou pro futuro, de modo a melhor alcançar o resultado justo para o caso. Isso revela que a aplicação dos novos institutos não se contradiz à adoção da nulidade ab initio, mas a reafirma, já que funcionam como verdadeiras exceções à regra.[33]
O dispositivo mencionado da Lei nº 9.868/1999 está com sua constitucionalidade questionada mediante ação direta de inconstitucionalidade, na qual se perquire se poderia o Congresso Nacional, por meio de lei ordinária, permitir que o Supremo Tribunal Federal emende a Constituição, pois, indiretamente, é o que entendeu o requerente estar fazendo o Tribunal quando permite que uma lei inválida possa produzir efeitos, mesmo que limitados, em detrimento da Carta da República. Contudo, conforme leciona Paulo Gustavo Gonet Branco, “a norma, na realidade, estaria apenas ratificando o poder inerente à Corte Constitucional de pôr em equilíbrio princípios concorrente.”[34]
3.2 A Aplicação da Lei nº 9.868/1999 pelo Supremo Tribunal Federal
Em março de 2004, pela via do controle difuso, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário nº 197.917-8/SP. Nesse processo foi apresentada ao Tribunal situação na qual o Ministério Público do Estado de São Paulo, por via de ação civil pública, impugnava o parágrafo único do art. 6º da Lei Orgânica do Município de Mira Estrela, sob a alegação de que este não obedecera à proporção estabelecida no art. 29, IV, a, da Constituição Federal para a fixação do número de vereadores.
No juízo de primeiro grau, a ação foi julgada parcialmente procedente, sendo declarada inconstitucional a norma municipal e extintos os mandatos excedentes ao número estabelecido pela legislação anterior. O Município e a Câmara apelaram e, no Tribunal de Justiça, tiveram seus recursos providos, sendo, então, interposto recurso extraordinário.
No Supremo Tribunal Federal, o Relator, Min. Maurício Corrêa, consignando que a Constituição não emprega palavras ou expressões vazias, entendeu que a norma impugnada feria a Carta da República, uma vez que não atendia aos critérios da proporcionalidade e da isonomia.[35] Então, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela aplicação do disposto no art. 27 da Lei nº 9.868/99 ao caso, muito embora estivesse atuando em controle difuso.[36] A eventual declaração de inconstitucionalidade com efeito ex tunc traria prejuízos imensuráveis ao sistema, que seria atingido pelo desfazimento de todas as decisões que foram tomadas em momento anterior ao pleito e que resultaram na atual composição da Câmara Municipal: implicaria rever a fixação do número de vereadores, do número de candidatos e a redefinição do quociente eleitoral. Da mesma forma seriam também atingidas as decisões tomadas posteriormente ao pleito, bem como a validade das deliberações da Câmara Municipal nos diversos projetos e leis aprovadas.
Sob um juízo de proporcionalidade, concluiu o Tribunal pela preservação do modelo legal existente naquela legislatura, assentando que eventual decisão cassatória acabaria por se distanciar ainda mais da vontade constitucional. Por conseguinte, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade incidenter tantum do dispositivo legal municipal. Determinou, no entanto, que a Câmara de Vereadores, após o trânsito em julgado dessa decisão, adotasse as medidas cabíveis para adequar a sua composição aos parâmetros fixados no acórdão, respeitando os mandatos dos atuais vereadores.
A aplicação do efeito pro futuro busca garantir certa margem de manobra ao Judiciário, para que, ante as peculiaridades do caso, venha a alcançar uma medida que traga a solução para o problema, evitando-se as conseqüências da criação de um vácuo legislativo decorrente da retirada abrupta da norma, que pode se revelar mais danosa à ordem constitucional do que a manutenção da norma impugnada. Dessa forma, confere-se ao órgão legislativo a possibilidade de, em tempo hábil, preencher a lacuna que a ausência da norma impugnada criará, impedindo, assim, a produção de efeitos que poderiam ser altamente ofensivos ao interesse social e à segurança jurídica.[37]
CONCLUSÃO.
O caráter constitucional do princípio da nulidade da lei inconstitucional é questão inconteste. A aplicação do disposto nos arts. 27 da Lei nº 9.868/99 e 11 da Lei nº 9.882/99 deve ocorrer mediante um juízo de ponderação entre princípios constitucionais implícitos na Carta de 1988, quais sejam, o da nulidade da lei inconstitucional e da segurança jurídica. Reclama também um rigoroso exame para a verificação do excepcional interesse social, de forma a sempre se ter como alvo a verdadeira finalidade do Direito, revelada na pretensão de proporcionar a harmonia na convivência social pela satisfação da segurança jurídica e estabilidade nos relacionamentos da sociedade. A mitigação da ortodoxia do princípio da nulidade da lei inconstitucional, dentro de uma obediência irrestrita às normas postas pelo Estado, individualizará o exame do caso sub judice, tornando justa e eficaz a prestação da jurisdição.
Como se vê, a Lei 9.868/99, bem como a Lei 9.882/99, foi editada com o intuito de estabelecer limites aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, de modo a permitir que o Judiciário, sempre que deparar com um incidente de inconstitucionalidade, quer por via direta, quer pela atuação no controle difuso, não fuja à sua missão e possa enfrentá-lo, emitindo o seu entendimento. A edição dessas leis vem como resultado da evolução de um sistema que inicialmente se espelhou no modelo de controle utilizado nos Estados Unidos e que, diante da evolução experimentada pelo modelo original e das necessidades vivenciadas dia-a-dia pelo nosso Judiciário, necessita de aprimoramento, adaptando o modelo para que a demanda pela prestação jurisdicional seja atendida satisfatoriamente, e também prestigiado o interesse social e a segurança jurídica.[38]
Não se busca com isso fomentar a elaboração de normas inconstitucionais pela possível convalidação de leis inconstitucionais. Não. O princípio da nulidade não se opõe às normas insertas nos arts. 27 e 11 das Leis nºs 9.868/99 e 9.882/99, pois o efeito retroativo, anulando ab initio o ato inconstitucional, continua sendo a medida a ser aplicada. O que se possibilita é a dosagem desse efeito diante de situações jurídicas irreversíveis ou de difícil reversibilidade, que constituem verdadeiras exceções à regra, fatores extravagantes. Para essas situações, a adoção irrestrita do efeito ex tunc importaria em malferir os ideais do Direito, causando danos mais lesivos do que a manutenção provisória do status quo, muito embora formado irregularmente.
Servidor público do quadro permanente do Supremo Tribunal Federal e especialista em Direito Público pelo Instituto Brasiliense em Direito Público – IDP
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), mais conhecido como LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social),…
O benefício por incapacidade é uma das principais proteções oferecidas pelo INSS aos trabalhadores que,…
O auxílio-reclusão é um benefício previdenciário concedido aos dependentes de segurados do INSS que se…
A simulação da aposentadoria é uma etapa fundamental para planejar o futuro financeiro de qualquer…
A paridade é um princípio fundamental na legislação previdenciária brasileira, especialmente para servidores públicos. Ela…
A aposentadoria por idade rural é um benefício previdenciário que reconhece as condições diferenciadas enfrentadas…