Direito Internacional

O Senhor Das Moscas e a Linha Tênue Entre Democracia e Tirania no Atual Cenário Político Norte-Americano

Ana Beatriz de Castro Lucena Muniz: Acadêmica de Direito na UNIFACISA

Marcelo Alves Pereira Eufrásio: Prof. Dr. em Ciências Sociais, marcelo.eufrasio@gmail.com

 

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Resumo: Este artigo apresenta uma análise da linha tênue entre democracia e tirania inserida no atual contexto político norte-americano, sob a ótica da alegoria escrita pelo autor inglês William Golding, em sua obra “O Senhor das Moscas”, de 1954, de modo a destacar a importância desse tipo de análise bibliográfica e documental para o avanço do conhecimento e debate na área jurídica. As questões levantadas a partir de uma abordagem qualitativa visam influenciar uma reflexão teórica acerca da obra de Golding contextualizada com o atual cenário da política norte-americana, matéria de grande relevância para o cenário político mundial, ao mesmo tempo em que proporciona condições para reflexão sobre as perspectivas futuras da democracia americana. A análise realizada permite observar os aspectos conceituais jurídicos dessa problemática e sua importância na construção de um Estado Democrático de Direito, tendo como base a dicotomia entre a manutenção dos ideais do governo Obama e a instauração da era Trump nos Estados Unidos da América.

PALAVRAS-CHAVE: Estados Unidos da América. Estado Democrático de Direito. William Golding. Era Trump.

 

Abstract: This article presents an analysis of the thin line between democracy and tyranny inserted in the american current political context, under the optic of William Golding’s allegory, in his work “Lord of the Flies”, written by the English author in 1954, in order to highlight the importance of this kind of bibliographic and documental analysis to the progress of knowledge and debate in the juridical area. The issues raised from a qualitative approach intend to influence a theoretically reflexion about Golding’s work contextualized with the current American political scenario, which is a matter of great relevance to the world political scene, while providing condition to reflections about the American democracy’s future perspectives. The analysis allows observing aspects of conceptual jurisdictional issues of this problematic and its relevance in the construction of a Democratic State of Law, based on the dichotomy among the maintenance of Obama’s administration ideals and the establishment of Trump age in the United States of America.

KEYWORDS: United States of America. Democratic State of Law. William Golding. Trump Age.

 

Sumário: Introdução. 1. Democracia versus tirania. 1.1 A dicotomia na magnum opus de Golding. 2. O Senhor das Moscas e a política norte-americana. 2.1 O processo eleitoral dos Estados Unidos da América. 2.2 As eleições presidenciais de 2016. 3. A era Trump e as perspectivas de sobrevivência na ilha. Conclusão.

 

Introdução

Em “O Senhor das Moscas”, um grupo de garotos se vê perdido numa ilha deserta após a queda do avião em que estava. O modelo civilizatório de regras de convívio sugerido por um deles é rejeitado pelos demais, os quais preferem sobreviver na ilha num estilo de vida bárbaro. Essa narrativa de 1954 se encaixa adequadamente com o atual contexto da política nos EUA. A manutenção do governo Obama parecia se efetivar, porém, nas eleições presidenciais de 2016, surge uma figura do Partido Republicano ameaçando as bases democráticas construídas até então. Assim como fizeram os garotos na ilha, o ideal do Partido Democrata foi rejeitado e o governo dos Estados Unidos da América foi entregue à Donald Trump, não só trazendo instabilidade jurídica ameaçadora do Estado Democrático de Direito, como dando início a uma era tirânica de impactos globais.

Nesse estudo, objetiva-se analisar a linha tênue entre democracia e tirania no cenário atual norte-americano, sob a ótica da obra “O Senhor das Moscas”, bem como o impacto global da realidade político-social dos Estados Unidos às bases do Estado Democrático de Direito, além de debater sobre os elementos conceituais em torno da problemática sob a ótica jurídica e relacionar o contexto político norte-americano ao cenário narrado na obra em questão.

Para tanto, a pesquisa a ser elaborada classifica-se como estudo exploratório, o qual visa proporcionar avanço de conhecimento na área jurídica em conjunto da problemática de grande relevância atualmente. Tem como metodologia a pesquisa de artigos científicos e de notícias de revistas e jornais, bem como entrevistas e debates de canais televisivos. A partir do método de abordagem dedutivo-comparativo e da análise qualitativa do estudo, visa-se a contextualização e reflexão da problemática norteadora.

 

1 Democracia versus tirania

A linha tênue entre os institutos da democracia e tirania pode ser percebida desde o berço da cultura ocidental, a Grécia, onde filósofos acertadamente já notavam a ruptura trazida pela democracia, assim como a latência da tirania, coexistindo por meio de uma divisória nem sempre tão aparente.

Estando relacionada às grandes atrocidades da história mundial, tirania, do grego tyrannos significa “líder ilegítimo”. Apesar de ter adquirido conotação negativa, era, no passado, um sistema utilizado como alternativa à democracia na própria Atenas, em circunstâncias extraordinárias. De forma análoga à democracia, a tirania tem no seu nascimento uma ruptura.

Acerca do tema, Miranda Filho (2000, p.1) declara: “Historiadores como Vernant e Vidal Naquet demonstraram o quanto o nascimento da democracia representou de ruptura em relação à tradição, pondo em relevo, notadamente, o conceito de laicização. Reconduzindo-nos a este momento inaugural, o autor põe em foco esse regime gêmeo, a tirania, que nasce como resultado do trauma provocado pela ruptura com a autoridade do Basileus e da aristocracia do mundo Homérico. Momento raro e grave, em que os fios com o passado seccionam-se e em que as novas possibilidades de vida se oferecem de chofre a uma inteligência ainda tateante e como que embriagada com sua fresca liberdade. Momento demiúrgico, em que é preciso transformar aspirações difusas em leis, instituindo assim novos modos e ordens, hora de crise e de personagens excepcionais: demiurgos, poetas, profetas, legisladores e tiranos” (MIRANDA FILHO, 2000, p.1)

Dessa maneira, percebe-se que ambos os institutos romperam com características de sistemas vigentes, todavia, seguem, ou pelo menos deveriam seguir, rumos distintos: na democracia, a ruptura dá origem à pluralização de vozes no meio social, visando a igualdade; na tirania, o rompimento indica não só a ilegitimidade do líder em questão para governar, mas, é a porta pela qual medo, violência e instabilidade passam, formando, juntamente, as características drásticas que somente um regime totalitário pode conter.

Após o contexto histórico da 2ª Guerra Mundial, houve uma forte rejeição a qualquer tipo de governo totalitário, contribuindo, assim, para a exaltação da democracia como forma civilizatória humana decente.

Contudo, nota-se uma negligência por parte da sociedade em reconhecer as figuras essenciais dos governos que tentam reprimir. A tirania, obviamente, presume seu líder ilegítimo. O tirano, por sua vez, nasce por meio de discursos políticos, inicialmente nos bastidores, depois, sob holofotes, para, então, já com suficiente apoio de adeptos, instaurar seus governos. A sociedade falha em averiguar os alertas de um sistema tirânico prestes a surgir. Quando finalmente percebe, a democracia já está ameaçada.

Sobre a evolução do tirano, Miranda Filho (2000, p.1) acrescenta: “Com Sólon e Heródoto já dispomos de um saber preliminar sobre este momento de crise em que o homem, rompendo com o ancestral, pode se transformar num deus ou numa besta; nas palavras de Bignotto estamos diante de uma página importante da história em que se acha terminada a invenção do tirano.” (MIRANDA FILHO, 2000, p.1).

Em Atenas, a democracia, surge, portanto, como alternativa de fuga do abuso de poder encontrado nos sistemas bárbaros tirânicos.

Vale salientar que as concepções do sistema democrático são mutáveis, tendo em vista que as visões pessoais sobre povo autônomo e o significado de participante do meio social podem variar (MARKOFF, 2013).

Apesar disso, a fórmula de democracia não está aberta à variação. Composta por um povo autônomo, inserido num território, o sistema democrático se verifica fundamental não só para a manutenção da civilização, mas para estruturar as bases do Estado Democrático de Direito, a partir das três ideias centrais que gravitam no entorno de seu conceito: liberdade, igualdade e regime de representação política do povo (SILVA, 2015).

Silva (2011) traz sobre o tema: “Em sua definição mais elementar, a democracia refere-se ao controle popular sobre o governo do Estado. A noção de que o povo pode controlar o governo pressupõe a existência de algum nível de interesse comum reconhecível e assumido pelo conjunto de indivíduos e grupos em dada comunidade. Assim, um governo será tão mais democrático quanto mais as leis e as políticas governamentais seguirem os interesses comuns do povo. O papel normativo da democracia consiste em orientar o governo a seguir todos os interesses comuns da comunidade e somente tais interesses” (PETTIT, 1997 apud SILVA, 2011, p.1).

Sendo assim, vê-se que a democracia, mais do que uma saudável alternativa a ser seguida, é necessária para a existência de harmonia social. É ela que impulsiona a pluralização de ideias, a tolerância às divergências, o debate e a conciliação.

Sobre a formação de um verdadeiro Estado democrático, Santos (2017) assinala: “Para ser democrático, o Estado deve proporcionar a realização tanto do aspecto formal, quanto do substancial de democracia. O primeiro deles se concretiza pela a paz, tolerância e respeito em todos os aspectos da vida em comunidade, bem como pela positivação jurídica e pela efetiva aplicação de regras e procedimentos virtuosos – de caráter objetivo – para obtenção e para exercício do poder estatal por intermédio de mandatos políticos eletivos ou por meio de instrumentos de democracia participativa.” (SANTOS, 2017, p.1).

Ademais, para que um ordenamento jurídico funcione respeitando as diretrizes principiológicas da formação estatal, é mister a presença constante da base democrática nos âmbitos componentes da sociedade.

Como Santos (2017) assevera: “A democracia exige que as Constituições e os governos constituídos devem reconhecer e ter como objetivo agir em prol da concretização dos direitos fundamentais, da justiça social, da igualdade material em todas as instâncias da vida em comunidade, isto é, nos âmbitos político, jurídico, acadêmico, profissional, econômico, dentre outros. Devem proporcionar bem-estar de todos os governados (e não apenas de determinados grupos ou segmentos sociais) e combater a quaisquer formas de opressão” (SANTOS, 2017, p.1).

Entretanto, verifica-se que a democracia possui suas falhas sistemáticas e são por essas fendas que figuras tirânicas conseguem se inserir disfarçadamente no cenário político pluralizado, se aproveitando da valoração de diversidade para lançar as bases do que podem vir a se tornar consequências preocupantes.

Vale lembrar que a figura de Hitler surge numa Alemanha republicana, em meio a uma democracia fragilizada regida por um Estado pobre em decorrência das multas de guerra. As consequências causadas pelos ditames do líder do Partido Nazista, tal como o Holocausto judeu, não só comprovam o quão próxima a tirania pode estar de um sistema democrático, como também é o marco tirânico do século XXI.

 

1.1 A dicotomia na magnum opus de Golding

Sendo assim, nada mais correto do que tratar de democracia versus tirania pelo viés de uma obra escrita no contexto pós 2ª Grande Guerra. Em 1954, William Golding escrevia sua magnum opus, a qual não só lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1983, como tem ensinamentos que atravessam a barreira do tempo, conforme os clássicos costumam fazer.

O Senhor das Moscas retrata a estória de um grupo de garotos sobreviventes buscando formas de organização e civilização na ilha em que se encontram. Golding utiliza-se desse contexto para levantar questionamentos acerca de barbárie e selvageria, bem como faz uma análise do ser humano fora da convivência social, trazendo dois pontos de vistas marcantes: de um lado, a manutenção do sistema democrático prezando pela harmonia da coletividade, o qual é representado pelo personagem Ralph; do outro, a oportunidade de inserção de um regime tirânico, figurado, na estória, pelo líder dos caçadores, Jack Merridew.

Portanto, através da dicotomia entre os garotos da obra de Golding, pode-se analisar a fragilidade do sistema democrático e a obscuridade de governos tirânicos.

 

2 O Senhor das Moscas e a política norte-americana

No início da trama, Ralph havia conseguido organizar os outros garotos por meio de reuniões, na qual utilizava uma concha como símbolo de respeito a quem estava com a palavra. O plano de pedir resgate, a medida primordial do seu governo, estava sendo executada.

Dessa forma, nota-se que o sistema democrático celebrado pelo pacto social instaurado na ilha vinha tendo resultados positivos para a coletividade.

De forma análoga, deu-se a administração Obama entre os anos de 2008 a 2016. Assim como Ralph foi aclamado nas eleições, o senador surgiu como esperança de mudança para um país que acabava de sair da administração conturbada do republicano George W. Bush.

Desacreditado nas eleições do que viria a ser seu primeiro mandato, a ascensão política de um homem negro nos Estados Unidos, ainda manchado de racismo, trouxe o recado de que Barack Obama era a aposta certa para os que acreditavam no poder do povo.

Em relação à campanha de Obama, Tota (2008) trata: “A vitória de Obama sem dúvida insere-se nesse quadro. O papel de Oprah Winfrey, conhecida líder de audiências na televisão americana em talk-show, não foi determinante, mas foi fundamental. Ela abraçou a candidatura de Barack Obama. E isso, sem dúvida, ajudou o senador por Illinois a superar Hillary Clinton em várias primárias em redutos brancos do Centro-Oeste e Centro-Norte” (TOTA, 2008, p.1).

No último ano do seu segundo mandato, Obama, apesar de criticado por ações na política externa norte-americana, deixou o governo com saldo positivo: o controle da crise econômica agravada assim que assumiu o posto, a reforma no sistema de saúde, programa conhecido como Obamacare e regulamentos rígidos para a emissão de gases poluentes na atmosfera são algumas de suas medidas que não só o tornaram marco da história dos EUA, bem como o fizeram ser idolatrado em âmbito internacional.

Assim como a de Ralph, a imagem política de Obama foi afetada pelos seus opositores, sendo algumas medidas de seus governos alvos fáceis para a crítica. Ambos sofreram o destino de verem suas medidas consideradas ineficazes: tanto a fogueira no topo da ilha, como as tímidas ações de estratégia realizadas no Iraque.

Na narrativa de Golding, Jack Merridew é o principal opositor do sistema criado por Ralph, evidenciando-se, desde então, a rivalidade entre os garotos e as divergências de posicionamentos no que concerne ao modo de organização, ou seja, a forma de se governar o Estado.

Acerca dessa dicotomia, revela-se: “O conflito de prioridades entre Ralph e Jack é a semente da discórdia: a impossibilidade de conciliá-las torna a convivência entre ambos impraticável. Como Hobbes afirmara, os homens seriam tão iguais que poderiam almejar as mesmas coisas; apesar de possuírem personalidades e prioridades distintas, é evidente que ambos almejam ao posto de liderança, lugar esse que não pode ser ocupado simultaneamente. Estava iniciando o retorno ao Estado de Natureza e, consequentemente, começava o Estado de Guerra na ilha” (MOURA, et al, 2011, p.1).

Nesse contexto de competitividade pelo cargo de liderança, evidencia-se o contexto das eleições presidenciais estadunidenses de 2016. Representantes dos Partidos Democrata e Republicano, respectivamente, Hillary Clinton e Donald Trump assumem seus postos na corrida que viria a ditar o futuro do país.

 

2.1 O processo eleitoral dos Estados Unidos da América

Primeiramente, deve-se salientar a importância da eleição para o contexto democrático. Não há como falar em poder do povo sem que haja meios pelo qual este, de maneira direta ou indireta, possa exercer seus direitos. Sob a ótica jurídica, seria ilógico imaginar um Estado que se constituísse como república democrática sem fornecer os meios adequados para que seu povo exercesse todo o poder que lhe compete.

Sendo assim, o voto é a ferramenta vital para o movimento das engrenagens de uma democracia. Além de uma questão de cidadania, é por meio dele que se exerce o dever do indivíduo para com o meio social que o cerca, tornando, portanto, legítimo o representante escolhido pela maioria.

Sobre esse tema, Silva (2011) declara: “A principal função do sistema eleitoral é impedir que os governantes ignorem deliberadamente os interesses comuns assumidos pelos cidadãos. Por meio de eleições periódicas, a maioria (absoluta ou relativa) dos cidadãos assume um papel “autoral” em uma república democrática. A coletividade exerce, ainda que indiretamente, sua vontade soberana na tomada de decisões públicas. […] Nas repúblicas contemporâneas, não há como falar em democracia ignorando a importância imperativa dos processos eleitorais” (SILVA, 2011, p.1).

Sob a ótica jurídica de Norberto Bobbio, a legitimidade do representante está intimamente ligada à promoção do bem da coletividade: “Para o pensamento de Bobbio, a legitimidade da representação, exercida por meio da escolha popular é um dos pontos basilares do sistema e conceito democráticos. Essa legitimidade seria, portanto, um correspondente mínimo entre os anseios da massa e as ações dos escolhidos para dirigir os destinos do povo, em função da impossibilidade de decisão coletiva e continuada. A autorização para agir, outorgada por meio dos processos de seleção, deveria manter o mínimo de correlação com as necessidades dos que não poderia decidir o que resultaria ao fim, na promoção do bem comum” (FREIRE, 2015, p.1).

A Constituição norte-americana traz seções especiais acerca do processo eleitoral nos artigos 1º e 2º. Trata da representação política na Emenda X e carrega raízes históricas da luta pelo direito ao voto nas Emendas XV, de 1870 e Emenda XIX, de 1920, as quais, respectivamente, vedam a negação de direito ao voto por motivo de raça ou cor e em razão do sexo.

Além disso, em leitura integral desse diploma, constatam-se os princípios basilares de um Estado pleno de Direito, consequência dos movimentos constitucionais norte-americanos que levaram à proclamação do Texto Maior.

Desde a conquista de sua independência da antiga metrópole, os Estados Unidos, graças aos exaltados Pais Fundadores, conhecem os liames republicanos. A chamada América nasce numa democracia e mais que isso, assume seus ideais como características da nação, não sendo estranho ver norte-americanos bradando princípios de liberdade e igualdade em eventos esportivos e em seu ápice, no feriado de 4 de Julho.

Sobre esse contexto, Tota (2008) expressa: “Os Estados Unidos da América são uma democracia representativa desde que a constituição de 1787 foi ratificada. Eleição nunca foi uma novidade para os habitantes das treze colônias inglesas na Costa Leste do continente americano. O township na América, lembrada por Tocqueville, vinha da Inglaterra e elegia seus administradores. As eleições atuais guardam alguns resquícios dos tempos da colônia. A escolha do presidente e do vice-presidente ocorre a cada quatro anos e se realiza em anos pares. E a cada dois anos são eleitos 435 membros da câmara dos deputados, assim como, aproximadamente, um terço dos cem membros do senado” (TOTA, 2008, p.1).

No que concerne às eleições estadunidenses, é perceptível notar aspectos estruturais peculiares, se comparadas às eleições brasileiras.

Tota (2008) explica: “O sistema federativo americano é muito complexo. O governo federal exerce o poder central, evidentemente. Mas nem tanto. Os governos dos estados têm muita autonomia, quando se compara com o que ocorre no Brasil. Na verdade, muitas vezes, ao governo federal não é permitido exercer certas funções que só competem ao governo dos estados. Os estados e governos locais (entenda-se governos dos condados ou county – o que corresponde mais ou menos a nossos municípios) têm uma variedade muito grande de independência. Há dois tipos básicos de eleições: uma primária e outra geral. As primárias são, como o nome indica, realizadas antes das eleições para presidente e servem para indicar o candidato de cada um dos dois partidos americanos, isto é, o Democrata e o Republicano. A rigor, a política dos Estados Unidos funciona como um sistema bipartidário. Há outros partidos, mas foram poucas as vezes em que um terceiro partido chegou perto da vitória. Chegou perto, mas nunca ameaçou o monopólio, ou melhor, o duopólio, dos dois partidos” (TOTA, 2008, p.1).

Em decorrência desse sistema, percebe-se que as eleições primárias são as peças essenciais para a manutenção da democracia norte-americana (TOTA,2008).

 

2.2 As eleições presidenciais de 2016

Isto posto, vê-se como essencial o contexto das eleições de 2016, no qual Hillary Clinton se valia da força política da imagem de Barack Obama para se sobrepor ao seu inexperiente opositor.

Donald Trump emerge na campanha de forma análoga ao personagem de Jack Merridew na obra de Golding. Em discursos inflamados e demagógicos, ambos não apenas prometiam aquilo que Ralph e Obama não conseguiriam cumprir, elencavam novas prioridades, as quais tornariam a América e a ilha melhores: “‘Quem vai entrar pra minha tribo?” Alguns dos meninos se viraram para ele. “Eu dei comida pra todo mundo”, disse Jack, “e meus caçadores podem proteger vocês do monstro. Quem vai entrar pra minha tribo?’” (GOLDING, 1954).

Nesse ponto, a estória dos garotos e a realidade possuem um elo crucial. Na ilha, os garotos descobrem a existência de um suposto monstro, ao qual chamam de “Senhor das Moscas”. Utilizando-se da instabilidade criada em virtude da ameaça, Jack consegue o apoio dos demais garotos e, juntamente com o grupo dos caçadores, instaura um Estado baseado no terror e na barbárie, do qual ele se declara líder supremo.

No decorrer da narrativa, é esclarecido que o “Senhor das Moscas”, era, na verdade, os restos mortais de um paraquedista que caiu na ilha. O “monstro”, portanto, pode ser interpretado como símbolo representativo da utilização de ameaça falsa para demonstrar a necessidade de violência por parte do Estado. Somando perigo e terror, o terreno é fértil para a insurgência de um tirano.

Convergindo com a alegoria, o papel de Trump nas eleições foi análogo ao de Jack. Com a disseminação do fenômeno fake news, o povo norte-americano foi levado a acreditar em muitos “monstros” falsos nas eleições de 2016. Nos debates, dois foram os pontos marcantes de Trump: fatos que não poderiam ser provados tidos como verdades absolutas e a insistência de brutalidade, na sua forma pura e simples.

Após inúmeras polêmicas envolvendo sua vida pessoal, com a manutenção do discurso populista e xenófobo, em 9 de novembro de 2016, Donald Trump venceu às eleições estadunidenses e em 1º de janeiro de 2017, se tornou o 45º Presidente dos Estados Unidos da América, dando início a um período de instabilidade semelhante ao comandando por Jack Merridew na ilha: “O céu negro foi rasgado por uma cicatriz azul-esbranquiçada. Dali a um instante, o som desabou sobre eles como a chicotada de um açoite gigantesco. O canto adquiriu um tom de maior agonia. “Mata o monstro! Corta a goela! Espalha o sangue!” Agora, do terror emergia outro desejo, denso, urgente, cego. “Mata o monstro! Corta a goela! Espalha o sangue!”” (GOLDING, 1954, p.142).

 

3 A era Trump e as perspectivas de sobrevivência na ilha

No seu livro “Fogo e Fúria: Por dentro da Casa Branca de Trump”, o jornalista Michael Wolff, retrata os bastidores do momento de vitória do candidato republicano: “Um Trump atordoado se metamorfoseou em um Trump descrente e logo em um Trump apavorado. Mas a transformação final ainda estava para vir: de repente, Donald Trump se tornou um homem convencido de que merecia ser presidente dos Estados Unidos e de que era plenamente capaz de exercer o cargo” (WOLFF, 2018, p.32)

Passado o momento de metamorfose, a era Trump se iniciava com a instabilidade que governos antidemocráticos costumam ter. Até então, não era possível prever quais promessas de campanha seriam efetivadas e quais seriam esquecidas. Uma das grandes potências econômicas mundiais estava sob o comando de um líder imprevisível.

Dias após a vitória do candidato, o historiador Timothy Snyder publicou um texto em rede social abordando os principais ensinamentos trazidos por momentos históricos do século XX sobre a tirania, sendo possível notar que o fenômeno Trump havia sido percebido como ameaça à democracia por aqueles em estado de alerta.

Posteriormente, Snyder lançou um livro no qual, além das lições do texto, trata do poder de ensinamento e advertência que a história possui: “A história tem o poder de familiarizar e também de advertir. […] Poderíamos ser tentados a pensar que nossa herança democrática nos protege automaticamente dessas ameaças. É uma ideia equivocada. Nossa própria tradição exige que se examine a história a fim de compreender as fontes mais profundas da tirania e de refletir sobre as respostas apropriadas. Os americanos não são mais sábios do que os europeus que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo no século XX. Nossa única vantagem é poder aprender com a experiência deles. E este é um bom momento para isso” (SNYDER, 2017, p.5-7).

Nessa perspectiva, Steven Levistky e Daniel Ziblatt debatem a possibilidade de vulnerabilidade do sistema democrático a partir da ascensão de uma figura como Donald Trump em sua obra How Democracies Die: What History Tell Us About Our Future, a qual traz aspectos de como ocorre a morte da democracia na contemporaneidade: “Durante a Guerra Fria, golpes de Estado foram responsáveis por três em cada quatro casos de quebra da ordem político-institucional. De lá para cá, porém, passou a prevalecer outra maneira de derrubar uma democracia, menos dramática, mas igualmente destrutiva: por meio dos próprios governantes eleitos — presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o processo que os levou ao poder. Ao contrário de golpes violentos, quando a morte da democracia é evidente e assimilada por todos, o percurso eleitoral ofusca essa percepção. Ao seguir esse caminho, os autocratas eleitos costumam manter um verniz de democracia enquanto eliminam, aos poucos, sua substância” (BARELLA, 2018, p.1)

Além disso, no livro é feita a comparação entre Trump e outras figuras políticas que marcaram a história de seus países como líderes autocratas eleitos pelas urnas, sendo exemplos o venezuelano Hugo Chávez, o russo Vladimir Putin e o brasileiro Getúlio Vargas (BARELLA, 2018).

Ademais, na obra, os professores de Harvard utilizam-se do método criado pelo cientista político Juan Linz para identificação comportamental de um possível autocrata: “A primeira característica, segundo Linz, é a rejeição das regras do jogo democrático. Na reta final da campanha de 2016, Trump ameaçou não reconhecer o resultado das urnas caso perdesse — fato inédito nas eleições presidenciais desde 1860. A segunda é negar a legitimidade a opositores, o que Trump fez em relação a Hillary, mesmo depois de eleito. A terceira característica é tolerar ou incentivar a violência, algo que o republicano cansou de expressar pelo Twitter. O quarto e último item da lista é o desejo de suprimir liberdades civis de oponentes, incluindo a imprensa — algo fartamente manifestado por Trump” (BARELLA, 2018, p.1)

Sendo assim, percebe-se a importância em alertar para essa questão, tendo em vista que as ações do presidente norte-americano, desde que chegou na Casa Branca, têm sido explícitas no que concerne ao controle das instituições estatais, seja pressionando o Legislativo para promover a perseguição de opositores, seja intimidando o Judiciário com vistas a favorecer a impunidade em casos de seu interesse.

Verifica-se, portanto, que o medo da tão bem fundamentada democracia norte-americana dar lugar a um sistema tirânico é real, sendo o momento político norte-americano atual um campo fértil para a derrocada dos princípios basilares da democracia e consequentemente, a instauração do terror.

Em um ano de governo Trump, os efeitos da representatividade de seus ideais já podiam ser notados. Membros da resistente segregação Ku Klux Klan dedicavam a passeata feita em Charlottesville ao presidente e o incentivo à intolerância se refletiam no cotidiano de grupos minoritários.

Na ilha fictícia de Golding, o Estado tirânico liderado por Jack teve proporções devastadoras: coerção, assassinato e perseguição foram algumas das ações tomadas pelos garotos que haviam abandonado o modo civilizatório e abraçado a selvageria: “Jack tinha recuado até junto da tribo, e agora formava com ela um bloco compacto de ameaça eriçada de lanças. A intenção de um ataque tomava forma; a tribo se preparava para a investida, disposta a limpar toda a passagem. […] Eram varridos pelas ondas de som, um sortilégio de ódio” (GOLDING, 1954, p.170)

Apesar do terror criado na ilha, O Senhor das Moscas possui um final esperançoso: quando Ralph está perto de ser morto por Jack e seus caçadores, se depara com oficiais da Marinha, os quais vieram socorrer os garotos: “Um oficial de marinha estava de pé na areia, olhando para Ralph e tomado por um espanto cauteloso. Na praia atrás dele se via um escaler, com a proa na areia segura por dois marujos. No banco do escaler, outro marujo trazia uma submetralhadora nas mãos. Os gritos ululantes foram cessando e se calaram. O oficial olhou para Ralph, em dúvida por um momento, depois afastou a mão da coronha do revólver. “Olá.”” (GOLDING, 1954, p. 183).

É assim, portanto, que William Golding apresenta os perigos da proximidade da tirania dos sistemas democráticos, bem como traz perspectivas otimistas de sobrevivência aos regimes de tiranos. Afinal, em 1954, o mundo tinha acabado de presenciar o desmoronamento de dois deles.

 

Conclusão

Como prevenir é uma alternativa melhor do que remediar, já há razões suficientes para refletir acerca das providências a serem tomadas objetivando evitar a inserção da tirania por parte de Trump num país historicamente democrático como os Estados Unidos da América.

A partir da análise feita, constata-se que a democracia e a tirania possuem uma linha tênue desde que foram originadas, o que se comprova por meio dos variados momentos durante a história em que nações viram seus sistemas aparentemente sólidos serem arruinados pelas ações de homens bárbaros.

Além disso, percebe-se que a dicotomia entre esses sistemas de governo no atual contexto político dos EUA foi apontada por cientistas políticos e historiadores, os quais, se valendo de seus conhecimentos, viram em Donald Trump uma ameaça à liberdade e à igualdade.

Sendo assim, cabe refletir acerca da importância do papel do cidadão em evitar que a era Trump se torne, de fato, uma era tirânica. Os alertas já foram dados, cabe agora à sociedade se mover para que, em conjunto, não permita que a intolerância, o terror e o medo se sobreponham à inclusão, paz e coragem do povo norte-americano.

Utilizando-se da cidadania ativa, ou seja, através da identificação do indivíduo como parte do processo de construção de uma democracia e não como mero espectador, é possível que, em pleno século XXI, não se veja mais um sistema de opressão se formando em meio às ruínas do poder do povo.

Vale salientar, ainda, que os Estados Unidos, assim como outras nações do mundo ocidental, são exemplos a serem seguidos no que concerne à organização política e estatal. Absurdas poderiam ser as consequências de ter um governo totalitário fincado no país que disseminou ideais de proteção aos direitos e garantias fundamentais, princípios estes norteadores da Constituição Brasileira de 1988.

Decerto, se exige esforço por parte de todos em minimizar ou até exterminar atos que intimidam a decência da civilização. Árdua sempre foi a luta pelo direito e incessante é a busca por Justiça, o que significa que, por mais dificultoso que seja o dever enquanto cidadão, a defesa dos pilares do Estado Democrático de Direito precisa ser missão prioritária. Como diria Barack Obama: sim, nós podemos.

 

Referências

BARELLA, José Eduardo. Para democracia americana, Trump é só um dos problemas. Revista Exame, 2018. Disponível em:

https://www.google.com.br/amp/s/exame.abril.com.br/revista-exame/democracia-sob-ataque/amp/. Acesso em: abr 2018.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição Federal. 1787.

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