Resumo: Este artigo analisa a real face do sistema penal brasileiro. Realça que as penitenciárias, cadeias públicas e delegacias de polícia não têm a mínima condição de abrigarem o atual número de presos que existem hoje no Brasil. Os presos não têm certas condições garantidas a eles constitucionalmente e por essa conseqüência, a pena não se presta ao fim a que ela se destina. Algumas medidas que o Estado e a sociedade devem tomar, poderia minimizar ou até resolver o problema.
Sumário: 1 – a realidade do sistema penal brasileiro. 2 – as funções da pena no código penal brasileiro; 2.1 – Teoria Absoluta (de retribuição ou retribucionistas); 2.2 – Teoria Relativa (utilitárias ou utilitaristas); 2.3 – Teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro. 3 – medidas que podem mudar a realidade
INTRODUÇÃO
A realidade do sistema penal brasileiro é degradante. O que vemos são verdadeiras barbáries que afrontam diretamente a Constituição Federal e o Código Penal. Igualmente na Idade Média, época em que os presos eram tratados desumanamente, esse tratamento se repete nos tempos modernos no sistema carcerário brasileiro.
Trataremos neste trabalho da realidade em que se encontram os presos, das verdadeiras funções da pena instituída pelo Código Penal e de algumas medidas que podem ser tomadas para minimizar o hiato existente entre a lei e a realidade. Trata-se de um tema atual e que vem sendo sistematicamente debatido na sociedade e entre os governantes. Não esgotaremos o assunto, pois a complexidade do que será abordado é tarefa para futuros trabalhos acadêmicos de maior envergadura. Apenas apresentaremos algumas constatações e medidas que podem mudar a realidade.
1 – A REALIDADE DO SISTEMA PENAL BRASILERO
Em nosso país, assim como em vários outros, os direitos e garantias dos condenados já foram muito aquém do que esta assegurado hoje, isto, quando tais direitos e garantias existiam, pois, o que podemos ver na história da humanidade é a aplicação de penas cruéis e de caráter desumano.
Com a evolução da humanidade, estas penas cruéis gradativamente foram deixando de existir (pelo menos de forma legalmente permitida), dando lugar a penas de caráter preventivo e ressocializador.
No entanto, o que se assiste atualmente no Brasil, apesar do que está no texto constitucional, são as mesmas penas, senão piores, do que eram aplicadas aos condenados na Idade Média.
O inciso XLVII do artigo 5º da Constituição Federal, diz que não haverá penas:
“a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do artigo 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento
e) cruéis.”
Vejamos uma passagem narrada por Michel Foucault sobre uma execução ocorrida no ano de 1757 na França: [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], da dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vendo. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazzete d´Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhes os nervos e retalhar-lhes as juntas. Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: ‘Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me.”[1]
Observe-se uma passagem narrada por MV Bill sobre uma execução ocorrida em 2002 no Rio de Janeiro, Brasil:
Eram três rapazes da boca[2] – hoje, dois estão mortos e um desaparecido –, chutando o corpo que eles tinham acabado de crivar de balas, sob acusação de ser um delator de bandidos. Na real, o X9[3] é o maior inimigo da favela. É ele quem tira a tranqüilidade de todos, é ele quem fica nas janelas tentando ver aonde os bandidos vão se esconder. Depois, liga para seus contatos na polícia e diz exatamente como encontrá-los. Assim, sempre ao amanhecer, os policiais entram nas casas, prendem os jovens, levam para um cativeiro e negociam o resgate com o contato da favela. A cena era tragicamente normal. Eles tinham parado de atirar. Um deles, o Baiano, pegou um pedaço de pau e começou a bater nas pernas do morto até quebrar as duas. Uma, clakkk. A outra, clakkkkeeii. Os três pegavam no corpo com nojo e com raiva. Eles tinham a postura de um Arnold Schwarzeneger: estavam matando em nome de um bem maior, em nome da soberania e da coletividade. Estavam só combatendo o mal. Depois de quebrarem o corpo da pessoa, eles o colocaram dentro de uma caixa de lixo comunitária. – Fiel[4], pega o fósforo lá, rápido! – Era o Baiano, olhando em nossa direção. (…) Até que vi as chamas começarem a crescer, refletidas no rosto dos dois.[5]
Os dois textos acima narrados são bem semelhantes pela crueldade das penas impostas, a não ser por um detalhe: no primeiro caso, era permitido pelo Estado e apoiado pela sociedade. No segundo, é expressamente vedado pelo Estado[6] e totalmente contrário aos preceitos morais e costumeiros da sociedade. Porém, é o que comumente vemos na realidade brasileira.
Nos sistemas prisionais não é muito diferente. Os detentos são tratados como se estivessem em campos de concentração esperando pelo dia do juízo final. Isso afronta indiscriminadamente um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana[7]. Direitos assegurados constitucionalmente como trabalho, saúde, educação, são mitigados pela falta de planejamento estratégico e de políticas voltadas para a reeducação dos presos.
Além disso, as penitenciárias, cadeias públicas e distritos policiais, não têm a mínima condição de higiene, estrutura e espaço para um número cada vez maior de detentos. Isso fica muito claro neste trecho do informe sobre prática de tortura do Ministério da Justiça:
O Relator Especial visitou várias delegacias de polícia. Em todas elas, a superlotação era o principal problema. As celas da delegacia do 50° Distrito Policial, por exemplo, mantinham cinco vezes mais pessoas do que sua capacidade oficial. Em todas as delegacias visitadas, os detentos eram mantidos em condições subumanas, em celas muito sujas e com forte mau cheiro, sem iluminação e ventilação apropriadas. O ar estava completamente saturado na maioria das celas. Os detentos tinham de compartilhar colchões de espessura fina ou dormir no piso de concreto descoberto e, muitas vezes, dormir por turnos de revezamento, devido à falta de espaço. Os detentos estavam todos misturados; alguns haviam acabado de ser presos e outros estavam detidos aguardando julgamento, enquanto muitos já haviam sido condenados, porém não podiam ser transferidos para as penitenciárias por causa da falta de espaço nestas. [8]
Em ambientes como esses, verdadeiras masmorras, fica praticamente impossível que o preso tenha uma mínima condição de sobrevivência. E isso afronta visivelmente as finalidades da pena preconizadas no artigo 59 do Código Penal, as quais veremos a seguir.
2 – AS FUNÇÕES DA PENA NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
O Código Penal pátrio traz em seu artigo 59 o seguinte texto: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.” (grifei).
Como se pode verificar, o sistema penal brasileiro adotou duas teorias (as quais, unificadas, recebem do nome de teoria mista ou unificadora da pena) justificadoras para a função da pena, quais sejam, as teorias absoluta e relativa.
2.1 – Teoria Absoluta (de retribuição ou retribucionistas)
É a que tem caráter de reprovação e retribuição do mal causado pelo infrator. Nas palavras de Claus Roxin: a teoria da retribuição não encontra o sentido da pena na perspectiva de algum fim socialmente útil, senão em que mediante a imposição de um mal merecidamente se retribui, equilibra e espia a culpabilidade do autor pelo fato cometido. Se fala aqui de um teoria ‘absoluta’ porque para ela o fim da pena é independente, ‘desvinculado’ de seu efeito social. A concepção da pena como retribuição compensatória realmente já é conhecida desde a antiguidade e permanece viva na consciência dos profanos com uma certa naturalidade: a pena deve ser justa e isso pressupõe que se corresponda em sua duração e intensidade com a gravidade do delito, que o compense.[9]
Neste mesmo sentido, nos ensina Luigi Ferrajoli: são teorias absolutas todas aquelas doutrinas que concebem a pena com um fim em si própria, ou seja, como ‘castigo’ ‘reação’, ‘reparação’ ou, ainda, ‘retribuição’ do crime, justificada por seu intrínseco valor axiológico, vale dizer, não um meio, e tampouco um custo, mas, sim, um dever ser metajurídico que possui em si seu próprio fundamento[10]
Como se pode depreender dos ensinamentos acima, na teoria absoluta a finalidade da pena é retribuir o mal injusto causado pelo criminoso, pelo mal justo consubstanciado no ornamento jurídico (punitur quia peccatum est), seja privando-o de sua liberdade, seja privando-o de certos direitos ou bens.
2.2 – Teoria Relativa (utilitárias ou utilitaristas)
Esta teoria tem como finalidade a prevenção de futuros crimes (punitur ne peccetur). Divide-se em:
A) Prevenção Geral – negativa e positiva;
B) Prevenção Especial – negativa e positiva.
A prevenção geral pode ser vista sob dois ângulos. Na prevenção geral negativa, também conhecida como prevenção por intimidação, o que se busca é evitar que os indivíduos de uma sociedade, ao verem seu semelhante condenado pela prática de um crime, reflitam e desistam de fazer o mesmo. Podemos perceber esta intenção do Estado narrado por Foucaut:
Ao tempo das cerimônias de suplício, o personagem principal era, na verdade, o povo que a tudo assistia. Um suplício, que tivesse sido conhecido, mas cujo desenrolar houvesse sido secreto, não teria sentido. Procurava-se das o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do poder tripudiando sobre o culpado.[11]
Já na prevenção geral positiva, o que se quer não é somente o temor geral da sociedade quanto a punição pela prática de um crime, mas também a conscientização do respeito a valores éticos, morais e de convivência em sociedade. Nesse sentido, ensina Paulo de Souza Queiroz: para os defensores da prevenção integradora ou positiva, a pena presta-se não à prevenção negativa de delitos, demovendo aqueles que já tenha incorrido na prática de delito; seu propósito vai além disso: infundir, na consciência geral, a necessidade de respeito a determinados valores, exercitando a fidelidade ao direito; promovendo, em última análise, a integração social.[12]
Em contrapartida, a prevenção especial também pode ser vista sob dois aspectos. Na prevenção especial negativa, a finalidade é retirar do convívio social aquele que praticou o crime, colocando-o em cárcere privado. A retirada desse indivíduo da sociedade impede que o mesmo venha a praticar novos delitos por um determinado período de tempo[13].
Na prevenção especial positiva, busca-se a intimidação e a ressocialização do indivíduo que cometeu o crime. O intuito é fazer com que o indivíduo desista de praticar novos crimes. Nas palavras de Paulo de Souza Queiroz: fim da pena é evitar a reincidência. A prevenção de novos delitos já não se dirige, portanto, à generalidade das pessoas, mas, ao infrator da norma em particular. O direito penal pretende, assim, como disse Basileu Garcia (apud QUEIROZ, 2001, p. 57), a conversão do criminoso em homem de bem[14].
2.3 – Teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro
A teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro em seu artigo 59, é chamada de Teoria Mista ou Unificadora da Pena. Justifica-se esta teoria pela necessidade de conjugar os verbos reprovar e prevenir o crime. Assim sendo, houve a unificação das teorias absoluta e relativa, pois essas se pautam, respectivamente, pelos critérios da retribuição e da prevenção do mal cometido (punitur quia peccatum est et ne peccetur).
Como vimos na primeira parte deste texto, as penas no atual sistema brasileiro estão longe de cumprirem as finalidades adotadas no texto legal. A seguir, veremos algumas medidas que, adotadas, poderão diminuir o abismo existe entre a realidade e as verdadeiras finalidades que o sistema penal brasileiro se propõe a cumprir.
3 – MEDIDAS QUE PODEM MUDAR A REALIDADE
Segundo um levantamento feito pelo Ministério da Educação entre 1994 e 1999, um aluno de 1ª a 8ª série custa aos cofres dos Estados em torno de R$ 691,00 por ano. Esse valor é muito inferior ao que se gasta em média com um preso em apenas um mês, algo em torno de R$ 1.500,00. Ou seja, o Estado gasta mais para manter um preso do que com a educação daqueles que um dia, por não terem a devida atenção dos governantes, poderão se tornar os merecedores de um gasto que hoje é mais de 4 vezes um salário mínimo. Mas o problema não é só matemático.
Com certeza o Estado tem a maior parcela de culpa pela atual situação que se encontra o sistema carcerário, na medida em que não faz investimentos na estrutura física dos presídios, onde os presos têm que, além de terem uma condição melhor sobrevivência, terem lugares apropriados onde possam desenvolver trabalhos remunerados, terem educação de qualidade e atendimento médico digno.
O convívio social também é outro ponto que precisa urgentemente ser revisto. No atual sistema, o preso cumpre sua pena em locais degradantes, e, depois de cumprida a pena, é liberto numa sociedade a qual o mesmo não tem condição de interagir sem que volte a cometer novos crimes. Por esta razão, os índices de reincidência no Brasil são altíssimos[15]. No sistema atual, os condenados, seja por prática de homicídio, por participação de quadrilhas altamente organizas, ou por furto simples, são colocados em um mesmo ambiente de convivência. O que podemos perceber é que os presídios brasileiros se tornaram verdadeiras escolas do crime, pois não há a separação daqueles que cometem crimes de pequena relevância para àqueles que cometem crimes de altíssima relevância. Formam-se dentro dos presídios verdadeiras organizações criminosas (como é o caso do PCC – Primeiro Comando da Capital) que atemorizam a sociedade. Por esse motivo, presos com baixo grau de periculosidade devem ser separados daqueles com elevado grau de periculosidade. Essa medida já resolveria parte do problema das organizações criminosas e o convívio do preso sofreria uma sensível melhora, pois esse não aprenderá em como praticar novos crimes, mas sim, como viver novamente em sociedade.
Além do Estado, a própria sociedade precisa ser mais solidária. O que vemos hoje nos grandes centros urbanos é uma grande massa de excluídos vivendo às margens da sociedade. Essas pessoas são as mesmas, que, por não terem certas oportunidades, cometem vários tipos de crimes e superlotam o sistema carcerário. A atenção a essas pessoas por parte do Estado, e da própria sociedade, seja com medidas sócio-educativas, com moradia digna, e com oportunidades de trabalho, diminuiria sensivelmente o cometimento de crimes a conseqüente surpelotação dos presídios.
CONCLUSÃO
Como se pôde constatar no decorrer da exposição, mudanças urgentes precisam ser feitas. Não podemos mais viver em um país com uma realidade tão cruel batendo à nossa porta. Pessoas são armazenadas em lugares sem a mínima condição de sobrevivência. O caráter ressocializador e preventivo que deveria advir da aplicação da pena, é absurdamente esquecido no momento do cumprimento das mesmas. É necessário que a sociedade, além de desempenhar algum papel na minimização desse problema, cobre dos governantes medidas efetivas para que se faça cumprir a lei e acabe de uma vez por todas o caos que se encontra o sistema carcerário brasileiro. Desta forma, direitos e garantias constitucionais serão respeitados e poderemos viver em uma sociedade mais digna.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas do Instituto Vianna Júnior e pós-graduando em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
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