Resumo: Partindo-se de um enfoque crítico, com base no paradigma da reação social e da Criminologia crítica, discorre-se sobre prisão, ressocialização e sistema penal, analisa-se os processos de combate à criminalidade e de ressocialização dos criminosos, que se desencaminham para a fabricação da delinqüência e estigmatização dos delinqüentes, donde se conclui que a função real do sistema penal, ao menos nas sociedades capitalistas, é controlar seletivamente a criminalidade, construindo a delinqüência. Daí, dizer-se que o sistema penal, nessas circunstâncias, tem uma eficácia invertida: em vez de controlar a criminalidade e ressocializar o criminoso, age exatamente de forma inversa, isto é, cria a delinqüência, de forma seletiva, e perpetua o delinqüente imprimindo-lhe o estigma de ex-presidiário. Em face disto, afirma-se que a prisão fracassa na sua promessa de ressocializar o criminoso, eis que, como instrumento, ela não alcança esse objetivo. Mas, ao mesmo tempo, é um sucesso, pois seu discurso de ressocialização continua com êxito ao legitimar a pena e o sistema penal.
Sumário: Introdução. 1. A Ressocialização como Finalidade da Pena. 1.1. O Processo de Ressocialização Frente à Segregação Social. 1.2. A Ressocialização diante de sua quantificação de pena. 2. A Discricionariedade existente perante a aplicação da pena. 3. O Caráter Sub-Cultural da Vida no Cárcere. 4. O Instituto da Reincidência. Considerações Finais.
INTRODUÇÃO
A Criminologia tradicional informadora de nosso sistema penal tem como objeto de estudo a criminalidade, partindo da premissa de que o crime é um fenômeno ontológico, com gênese na própria natureza da pessoa humana. Por esse modelo, os criminosos, devido a deformações bio-psicológicas inatas, são pessoas predestinadas à prática delitiva. Portanto, de acordo com o mesmo modelo, o estudo do homem criminoso traz as razões e explicações da origem do crime, sendo este um fenômeno singular e de ocorrência em específica e identificada faixa social. Contudo, observa-se que o estudo realizado a partir do criminoso já julgado (selecionado pelo Sistema) é bastante limitado em seu objeto, pois não inclui aqueles “criminosos” que ainda não foram selecionados pelo sistema. O que força a concluir que este estudo é incompleto por não abranger a criminalidade em sua totalidade, conforme sustentado retro. Não bastasse isto, o estudo é realizado apenas do “final”, isto é, a partir da seleção já realizada pelo sistema, deixando de fora todo o processo (realizado pelo próprio sistema) que levou a esta “catalogação” de criminoso.
Diante desta forma de atuação do Sistema Penal são extraídas algumas conclusões importantes e que irão demonstrar que, longe de cumprir suas declaradas funções, na realidade, o sistema cumpre outras, muito opostas àquelas. Isto pode ser observado claramente com relação à pena de prisão, cujas funções declaradas norteiam-se pela ressocialização, mas que, quando de seu cumprimento pelos estabelecimentos prisionais, contrariamente revelam-se funções criminógenas e estigmatizantes, como se pretende demonstrar a seguir.
1. A RESSOCIALIZAÇÃO COMO FINALIDADE DA PENA
Perante a evidente inutilidade das penas com fins retributivos, como também com finalidade de prevenção geral e especial negativa, a pena carcerária, consoante o discurso oficial, deveria passar a ter como objetivo principal, senão único, o preparo do detento para seu retorno ao convívio social em condições de manter uma vida e uma convivência em conformidade com os padrões tidos como normais, sendo útil à sociedade. È o fim ressocializador que as modernas legislações penais atribuem à pena privativa de liberdade. Tem-se como função primordial dos estabelecimentos prisionais, de acordo com a teoria da prevenção especial positiva (ressocializadora), é proporcionar aos cidadãos (que o Estado alijou do seio social e os mantêm reclusos) oportunidades iguais de participação na vida social, mormente no campo do trabalho, cuja oferta de emprego é extremamente escassa, muito aquém da demanda. Mesmo sabendo que, em conseqüência da pena de prisão que lhes foi imposta, encontram-se em posição de desigualdade na sociedade frente aos demais cidadãos, pois foram selecionados pelo Sistema, jogados na prisão e, conseqüentemente, estigmatizados. Esta “pecha”, que marca para sempre os ex-presidiários, lhes traz grandes dificuldades na concorrência direta, em todos os setores da vida, com aqueles que não a possuem.
Francisco Muñoz Conde, teorizando, faz outras restrições à idéia de ressocialização. Entende, por exemplo, que falta legitimidade à sociedade, ao menos no campo moral, para promover ressocialização, vez que é ela mesma quem produz e define a criminalidade, chegando ao ponto de dizer que “Não é o delinqüente, mas sim a sociedade quem deveria ser objeto de ressocialização”. Embora pareça muito paradoxal, há muito significado na afirmativa. Sabe-se que a sociedade sempre foi um depositário de mazelas e de maus exemplos comportamentais. Ora, também é sabido que os delinqüentes não passam de produto dessa mesma sociedade. Então, não pode o Estado, sem questionar a qualidade das regras e normas que norteiam a vida social, querer impor aos setenciados, como padrões de comportamento social, condutas que a sociedade vivencia e adota (ou aceita) como exemplares. Ademais, acrescenta Francisco Muñoz Conde, as normas que regem os membros de uma sociedade não são permanentes, às quais seus membros devam estrita adaptação. Ao contrário, elas se alteram rápida e profundamente, em decorrência da evolução da própria sociedade.
Convém lembrar também a lição de Francisco Muñoz Conde, que afirma não existir uma absoluta correlação entre delinqüência e ressocialização, bem por isso nem todos os delinqüentes precisam dela, pois, mesmo que tenham cometido um delito, não rompem seus vínculos com a sociedade, continuando a respeitar-lhe a legalidade penal. Assim, a exemplo do que se apregoa como desnecessária a prisão para uma série de delitos menos graves, por igual, pode-se dizer que o “treinamento” para a ressocialização, é plenamente dispensável em relação aos autores de crimes de pequena monta ou, como usado na Lei nº 9.099/95, os crimes de “menor potencial ofensivo”. Também podem ser incluídos os autores de crimes passionais, posto que, ao cometer tais crimes, as pessoas são movidas muito mais por questões emocionais do que sociais. O mesmo autor ressalva que não são apenas os infratores de pequenos crimes que a ressocialização não alcança. Há criminosos de grande porte que, igualmente, não necessitam de semelhante tratamento. Como exemplificativo, cita os criminosos de guerra, os quais, em que pese a extensão de seus crimes, nunca se sentiram alheios à sociedade e sua reincorporação não acarretaria maiores problemas. Outro exemplo citado é o dos autores da chamada delinqüência econômica.
Obviamente, que nem todos os apenados precisam submeter-se ao processo ressocializador. Para muitos, totalmente desnecessário; para outros, ineficaz. Entendida como reinserção social, a ressocialização supõe uma transformação interior, uma auto-conscientização, uma mudança interna. Ela não se efetiva se as alterações de comportamento e de atitudes acontecem apenas exteriormente, pois este aparente conformismo pode dar-se unicamente pelo medo do castigo, da inflição da pena. Assim, caso os meios coativos venham a ser supridos, fatalmente irão desaparecer aquelas atitudes tidas como ressocializadas. Ora, tudo isso acontece porque, na efetividade, não se operou a mudança desejada. A prisão, vale repetir, não se presta para isto. A par dessa questão, convém lembrar que muitas das práticas carcerárias em nada favorecem a ressocialização. Por exemplo, o tratamento dispensado ao detento, por parte do Estado, através de seus funcionários e agentes prisionais é, com freqüência (senão de regra), inibidor e desestimulante. Efetivamente, com o intuito de manter a disciplina e favorecer o controle, são comuns os maus tratos, o distanciamento, a indiferença, a negação não só de favores ou benefícios como também de direitos, gerando nos apenados um clima de revolta e de desesperança.
Enfim, com semelhante ensinamento, pode-se reafirmar que a ressocialização, embora discurso declarado pelo sistema, não é, na efetividade, o fim verdadeiro e principal da pena privativa de liberdade, mas, operado pela “eficácia invertida” deste sistema, cumpre funções criminógenas, estigmatizantes e de reincidência.
1.1. O PROCESSO DE RESSOCIALIZAÇÃO FRENTE À SEGREGAÇÃO SOCIAL
Torna-se fato incontroverso que é impossível socializar ou ressocializar uma pessoa mantendo-a afastada da sociedade, pois tal tarefa exige experiências práticas, não podendo limitar-se à teoria. Contrariamente ao objetivo ressocializador, ocorre exatamente o inverso: o detento, com seu afastamento da sociedade, perde os elos que o ligam a ela e à família, perde o “jeito” do convívio social e adquire outros, próprios da cultura carcerária, que, quando sair, vai sentir-se um “estranho na multidão”. Cezar Roberto Bitencourt aponta, dentre outros fatores negativos à ressocialização pelo cárcere, a perda da convivência social e dos seus efeitos positivos, dizendo: “ A segregação de uma pessoa do seu meio social ocasiona uma desadaptação tão profunda que resulta difícil de conseguir a reinserção social do delinqüente.” E os efeitos negativos são tanto maiores quanto mais longa for a pena de condenação. Por isso, as penas de longa duração já não devem mais ser admitidas, pois a sociedade sofre mudanças profundas, de forma muito rápida, que não podem, evidentemente, ser acompanhadas por quem não está inserido nela.
Uma pessoa que, por exemplo, fica 10 (dez) anos (nem precisa tanto) recolhido a uma prisão, ao sair dela vai encontrar um “mundo” muito diferente daquele que deixou. E na prisão o tempo pára, nada evolui. Para o Estado, interessado na manutenção do status quo, não interessam as evoluções. Por tudo isto, a readaptação social vai ser muito difícil (senão impossível) de acontecer. Alessandro Baratta, sobre o afastamento do preso da sociedade, e seus efeitos negativos, assim se pronuncia: “Um dos elementos mais negativos da instituição carcerária decorre do isolamento do microcosmo carcerário em relação ao macrocosmo social, que vem simbolizado pelos muros da prisão.” E complementa dizendo que enquanto esse estado de coisas continuar, as chances de ressocialização são mínimas, pois “Não se pode segregar pessoas e ao mesmo tempo pretender reintegrá-las.”
A segregação, na forma como funciona o sistema carcerário, deva existir, ela não pode, em absoluto, fazer uma cisão entre pesos e sociedade. Ao contrário, o vínculo deve ser mantido. E este intercâmbio deve funcionar tanto de fora para dentro como o inverso, isto é, de dentro para fora. Assim, não só deve ser assegurado o direito da família e parentes visitar seus presos, como estes devem ter o direito de, amiúde, sair da prisão para visitar sua família. E mais: esse contato não deve resumir-se às relações preso/família, mas estender-se à comunidade como um todo. Muitos são os meios e as oportunidades que podem viabilizar essa integração, como sessões de esporte, culturais, educacionais, eventos familiares e comunitários, acontecimentos sociais. De máxima importância e de extrema utilidade é a prática de atividades laborativas, seja dando condições para que empresas abram campos de trabalho no interior dos estabelecimentos prisionais, aproveitando a mão de obra carcerária, seja permitindo que os presos saiam da prisão para trabalhar nas empresas. E, o que é muito importante, que as atividades desenvolvidas contribuam para que os presos encontrem mercado de trabalho quando saírem da cadeia, favorecendo-lhes a reinserção social.
1.2. A RESSOCIALIZAÇÃO DIANTE DE SUA QUANTIFICAÇÂO DE PENA
A pena tem uma finalidade primordial de ressocialização, entretanto, a classificação do criminoso é realizada pelo crime praticado e pela sentença a ele atribuída. Em sendo a finalidade principal da pena a ressocialização do apenado, cabe ser criticada a pré-determinação da quantificação da pena a ser definida na sentença, pois o julgador não tem condições de saber quanto tempo é necessário para alcançar o fim perseguido. Cada sentenciado tem seus aspectos individuais, suas características próprias, daí a necessidade da classificação de cada um, o que deve ser feito por profissionais capacitados. Observa-se que o anterior objeto das políticas criminais, o ato criminoso, desloca-se para o ator. Com isso, obrigatoriamente, alterou-se o significado e a organização das prisões. A respeito, leciona Antônio Luiz Paixão:
“Seu (da prisão) objetivo já não é a custódia (. . .), mas a recuperação do criminoso. Este não é parte de uma massa indiferenciada e amorfa. Há que identificar e diagnosticar as múltiplas determinações causais de seu comportamento para a aplicação das terapias eficientes de recuperação. O novo paradigma demanda, portanto, a classificação dos criminosos.”
Conforme o mesmo autor, essa classificação é necessária para determinar-se a natureza da criminalidade do agente e deve ser realizada por equipes interprofissionais, capazes de recomendar programas terapêuticos mais apropriados e consistentes para cada caso. Que não precisa ser exatamente a prisão, que, é sabido, tantas vezes desnecessária, quando não prejudicial.
Aliás, a respeito da desprisionalização, merecem ser destacadas as seguintes considerações oferecidas pela Comissão acerca do Projeto de Lei que altera a Parte Geral do Código Penal:
“Item 13 – Como já afirmado, o núcleo da presente reforma desenvolveu-se em torno do título das penas. O espírito que norteou a reforma de 1984 continua presente nesta parte, principalmente quando reafirmamos que ‘uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanções outras para delinqüentes sem periculosidade ou crimes menos graves. Não se trata de combater ou condenar a pena privativa da liberdade como resposta penal básica ao delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por hora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade.”
Mas, retornando à questão da quantificação das penas, cabe transcrever a seguinte lição de Foucault:
“ela (a prisão) permite quantificar exatamente as penas, graduá-las segundo as circunstâncias, e dar ao castigo legal as formas mais ou menos explícita de um salário; mas corre o risco de não ter valor corretivo, se for fixada em caráter definitivo, ao nível do julgamento. A extensão da pena não deve medir o ‘valor de troca’ da infração; ela deve se ajustar à transformação ‘útil’ do detento no decorrer de sua condenação. Não um tempo-medida, mas um tempo com meta prefixada. Mais que a forma do salário, a forma da operação”.
Faz-se também um raciocínio inverso, isto é: se, após o cumprimento de todo o tempo da pena cominada, o condenado não apresentar melhora, deveria ser solto? Ora, como o objetivo é alcançar a ressocialização, o que importa é a obtenção do resultado. Para tanto, o tempo deve funcionar apenas como instrumento, a ser usado na quantidade necessária à consecução do fim desejado.
2. A DISCRICIONÁRIEDADE EXISTENTE PERANTE A APLICAÇÃO DA PENA
Efetivamente, muitos dos dispositivos penais prevêem uma elástica faixa entre o mínimo e o máximo de tempo que pode ser cominado à pena aplicada. Assim, apenas para exemplificar, toma-se o artigo 318, do Código Penal, (corrupção passiva), cuja pena pode variar entre 1 (um) a 8 (oito) anos, e para o peculato (artigo 312, CP) a faixa situa-se entre 2 (dois) e 12 (doze) anos de reclusão. Para o crime de tráfico de entorpecentes (artigo 12, da Lei 6.368/76), a pena pode variar entre 3 (três) e 15 (quinze) anos. Considera-se um tempo muito elástico, que fica ao livre arbítrio do juiz. E os critérios para estabelecer a quantidade de pena vêm catalogados no artigo 59, do Código Penal, que podem ser resumidos basicamente num exame superficial da personalidade e da periculosidade do sentenciado. Mas é, além do mais, um exame feito por um homem só (o juiz) e inteiramente subjetivo.
Com relação ao tema, sensível às impropriedades de alguns dos critérios quantificadores da pena e das determinantes influências sociais à criminalidade, o projeto de lei que altera a parte geral do Código Penal ofereceu nova redação ao artigo 59 do Código Penal:
“Art.59. O juiz, atendendo à culpabilidade, antecedentes, reincidência e condições pessoais do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas, aos motivos, circunstâncias e conseqüências do crime e ao comportamento da vítima estabelecerá conforme seja necessário e suficiente a individualização da pena”.
Destarte, ressalte-se que o conceito de personalidade, de aferição reconhecidamente improvável e discriminatória, vige ainda, não só no atual artigo 59 de nosso Código Penal, como já citado, mas também no artigo 5º da Lei de Execução Penal, constituindo-se num dos elementos classificadores e orientadores da individualização da pena. Não fosse isto, há uma outra questão pertinente, pois, em algumas situações, o juiz que aplica a pena não é o mesmo que a executa. Logo, surge a questão de saber se o critério “personalidade”, a ser observado para execução da pena, é aquele já fixado pela sentença condenatória ou será outro, agora observado pelo juízo de execução. Todavia, em muitos casos, o preso já esteve recolhido por força de prisão preventiva, pronúncia etc. Conseqüentemente, em tese, é de se admitir que sofreu, por força desta prisão, um “processo ressocializador”, o que, de regra, nunca é levado em conta na execução de sua pena fixada definitivamente, se admitirmos que o juiz da execução seja o mesmo prolator da sentença.
3. O CARÁTER SUB-CULTURAL DA VIDA NO CÁRCERE
Alessandro Baratta, destaca relativamente às mudanças de comportamento que ocorrem nas cadeias, o que normalmente se alcança nas prisões é uma alteração aparente, de fachada, no comportamento e nas atitudes dos reclusos, que geralmente desaparece quando longe da vigilância. Também não devem ser esquecidos os efeitos contrários provocados pela incorporação da subcultura da mentira e da dissimulação que o cárcere cria entre os seus reclusos. Já o autor Muñoz Conde, relativamente à questão penitenciária, como meio pretendido com o fim de alcançar a ressocialização, que as críticas feitas a essa atividade não vêm apenas contra a própria ressocialização, mas também contra o meio ou sistema empregado para consegui-la, que é o tratamento penitenciário, destacando a falta de liberdade como fator que impede a consecução do objetivo ressocializador do recluso. E acrescenta que a falta de liberdade imposta ao preso, além de ser um obstáculo ao seu tratamento, produz efeitos negativos para a ressocialização.
A respeito do tratamento dispensado nas prisões, resume em duas objeções básicas: sua ineficácia, para os fins que enuncia no discurso, em conseqüência das más condições de vida verificadas nelas, e os perigos para os direitos fundamentais dos reclusos decorrentes da forma impositiva do tratamento. No primeiro caso, a existência de uma subcultura carcerária, com uso e respeito de um regulamento ou código de postura e comportamento próprio, superior às normas oficiais da instituição carcerária, em que se destaca a absoluta imperiosidade do companheirismo e lealdade entre os presos, cujas regras vêm acompanhadas de sanções, que vão desde o isolamento e maus tratos, podendo chegar à pena capital. À evidência, a imposição e a gradativa adoção dessa subcultura carcerária, mais que um elemento dificultador, é um empecilho à atividade ressocializadora. Cria no preso a chamada “desculturação”, que é a perda das capacidades vitais e sociais para uma vida própria, de liberdade, de auto-confiança e de auto-determinação, passando a adquirir uma cultura que é própria do preso, a chamada “aculturação” ou “prisionalização”, processo pelo qual o apenado passa a adotar comportamentos e atitudes próprias da cultura prisional, incluindo-se usos e costumes, tradição e cultura dos estabelecimentos carcerários, a tal ponto que muitos chegam a aceitar a prisão como forma de vida.
No segundo caso, ou seja a falta de liberdade do apenado, que se traduz na imposição de tratamento e de adoção de uma cultura que o Estado considera ideal, é de se perguntar se realmente se efetiva a ressocialização nessas circunstâncias, ou seja, sem a aceitação, ou ao menos sem a colaboração do ressocializando, eis que, dessa forma, haveria simples manipulação do sistema sobre o encarcerado. Ou, segundo alguns historiadores, uma lesão aos direitos fundamentais da pessoa, posto que, nesse caso, conforme lição de Bergalli, é indispensável o consentimento espontâneo, não bastando uma simples aceitação. O tratamento sem o consentimento do apenado é manipulação. É ofensa aos direitos fundamentais do homem, que não os perde com a perda da liberdade. Assim, o preso tem o direito de não aceitar a cultura que o Estado pretende impor, especialmente se essa contraria seus princípios, sua escala de valores. É o “direito de não ser tratado” que, segundo Muñoz Conde, é parte integrante do “direito de ser diferente”, o qual deve existir em toda sociedade pluralista e democrática.
4. O INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA
O alarmante índice de reincidência criminal é uma prova de que a prisão não se presta para o fim ressocializador. Ora, se muitos ex-detentos voltam à prática de condutas consideradas criminosas, na maioria das vezes as mesmas pelas quais foram anteriormente condenados, a conclusão lógica é que a pena restritiva de liberdade não foi eficaz na sua função de ressocializar. Em pesquisa realizada no ano de 1996, no Distrito Federal, por iniciativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, ouvidos 1.584 (um mil e quinhentos e oitenta e quatro) presos, 30,7% deles responderam que eram reincidentes, dos quais 61,8% haviam reincidido em crimes contra o patrimônio. Aliás, esse último dado estatístico, qual seja a elevada reincidência que se verifica entre os infratores de crimes contra o patrimônio, torna obrigatória uma consideração colateral, para dizer que tal demonstra que, além da inefetividade do objetivo ressocializador, a questão social , o estado de pobreza, senão de miséria, a exclusão social, a falta de oportunidade de trabalho, também são causas que concorrem para a criminalização, onde o excluído social vê-se obrigado a atentar contra o patrimônio alheio para a subsistência própria e a de sua família.
Em sentido geral, no que concerne à questão da reincidência, tem-se que é muito elevado o número dos que, após cumprirem pena privativa de liberdade, voltam à prática dos mesmos considerados delitos. E, muitas vezes, da mesma espécie daqueles pelos quais foram anteriormente condenados. Ora, tudo isto acontece porque o “tratamento” dispensado pelas prisões não foi eficaz no sentido de controlar a criminalidade. Ao contrário, serviu para aumentar as condições e oportunidades para a criminalização. A prisão age de forma inversa, como afirma Michel Foucault: “A prisão, conseqüentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinqüentes perigosos.” Diante disso, chega-se a questionar a responsabilidade do Estado face ao não cumprimento de suas promessas, isto é, de ressocializar aqueles que mandou e manteve na prisão por tanto tempo. Aliás, é um compromisso que assumiu com a sociedade, quando fez (e continua fazendo) tais promessas.
A primeira vista, a idéia produz um certo choque e tende a encontrar resistência à tese de responsabilizar o agente público pela volta à delinqüência por parte de ex-presos. Entretanto, considerando-se que uma das funções do Estado, com o segregamento prisional é, consoante o disposto no artigo 1º, da Lei de Execução Penal, “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, a pretensão deve encontrar ressonância, pois que semelhante ação é juridicamente possível e o Estado tem, sim, legitimidade passiva ad causam. Em vez disso, o que está ocorrendo é exatamente o inverso. O Estado que deveria ser acionado é ele que, através do Ministério Público, aciona a máquina judiciária, objetivando ver condenado, novamente, o ex-detento, que voltou à prática de ações etiquetadas como criminosas. E o resultado é o retorno do ex-presidiário à cadeia, com os gravames decorrentes da reincidência.
Considerações Finais
A instituição da pena privativa de liberdade, de acordo com a legislação em vigor, é uma das maneiras pela qual se pune o autor de um ato anti-jurídico, com a finalidade de, em um primeiro momento, castiga-lo e, posteriormente, prepará-lo para o retorno ao pleno convívio social. Hoje, a administração penal tem um grande desafio, a reintegração social do preso, contudo, observa-se que, no caso em tela, não basta, simplesmente, discurso político desprovido de propostas e ações concretas, que resultem, necessariamente, na satisfação das necessidades particulares dos apenados em relação àquilo que se propõe desenvolver.
A mídia, constantemente, desmente aqueles que tentam se utilizar do caótico sistema penitenciário, para promoção pessoal, com notícias que registram desde a superpopulação carcerária até os mais bárbaros desatinos, cometidos por uma parcela esquecida da sociedade que sobrevive, a revel dos olhos do Estado, em condições subumanas. Humanizar é a proposta, ressocializando e reintegrando o apenado, assegurando-lhe condições plenas de ocupar um papel na cadeia produtiva de sua comunidade é o objetivo, através de três propostas claramente definidas: educação, profissionalização e trabalho. Estamos convictos de que somente a educação e a profissionalização pode provocar uma severa mudança comportamental dos detentos.
O trabalho, como fator, meramente, ocupacional é contestado, porém, entendemos, que se bem dirigido, indubitavelmente, pode ser um parceiro muito forte no processo ressocializador. A experiência e a mídia demonstram que o modelo praticado nos estabelecimentos penais não recupera apenado algum. Há falta de recursos, infra-estrutura nas instalações e, praticamente, não existe prioridade alguma para com o resgate da cidadania do preso. Sob esta ótica, tem-se procurado utilizar o trabalho dos apenados como forma de recuperação da sua cidadania e de tentar amenizar as gritantes deficiências do Sistema Prisional do País.
Propor medidas que viabilizem o resgate da escolaridade perdida pelos detentos ao longo de suas vidas e, ainda, alternativas de profissionalização coerentes, direcionando a formação de modo metódico, conforme os centros de interesses do indivíduo e as necessidades do mercado de trabalho. Portanto,a proposta mais viável é a criação de um Centro de Ressocialização, que favoreça um integral processo de reintegração do preso, favorecendo o retorno à vida em sociedade dos sentenciados, aliando educação, profissionalização e trabalho.
Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de Santa Catarina (ESMPSC)/Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
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