O superior tribunal de justiça e a ação penal nos crimes de injúria com preconceito

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça determinou o trancamento de ação penal contra um homem acusado de cometer injúria racial (sic). Os fatos ocorreram antes da Lei nº. 12.033/2009 que alterou o parágrafo único do art. 145 do Código Penal, atribuindo ao Ministério Público a iniciativa de propor a ação nesses casos, quando a vítima representa contra o autor. Em 30 de agosto de 2009, o réu teria cometido delito de injúria com emprego de elementos referentes a raça. Na ocasião, o delito era de iniciativa privada. Ocorre que, um mês após, em 29 de setembro do mesmo ano, a referida lei tornou o delito de ação pública condicionada à representação da vítima. Em razão disso, foi oferecida denúncia pelo Ministério Público (pasmen!). A Sexta Turma entendeu que, muito embora a Lei nº. 12.033/09 tenha dado natureza pública, mediante representação, à ação penal por crime de injúria com emprego de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, essa modificação não pode ser aplicada ao caso. Para os Ministros, como a alteração trouxe reflexos de natureza penal, não pode retroagir para prejudicar o acusado. Entre esses reflexos estão a extinção do prazo decadencial e o direito de renúncia à queixa-crime, que era facultado ao ofendido, mas já não existe no caso da ação pública dependente de representação da vítima. Assim, a Turma concedeu habeas corpus de ofício, por reconhecer que a ação penal, no caso específico, deveria ser de iniciativa privada. Como consequência, a ação foi trancada em razão da incidência do prazo decadencial. (Coordenadoria de Editoria e Imprensa do STJ – Em 11 de dezembro de 2012. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=108032, acesso em 11 de dezembro de 2012).

Acertadíssima a decisão do Superior Tribunal de Justiça.

Como se sabe, antes da referida alteração legislativa, na injúria com preconceito (e não apenas racista), o exercício da ação penal dependia sempre do oferecimento de queixa. Porém, com a nova redação dada ao parágrafo único do art. 145 do Código Penal a ação penal passou a ser pública condicionada à representação do ofendido.

Antes de avançarmos no tema, é importante relembrarmos que a representação é uma condição específica de procedibilidade imposta ao exercício da ação penal em relação a determinados delitos; é uma manifestação de vontade externada pelo ofendido (ou por quem legalmente o represente ou seu sucessor) no sentido que se proceda à persecutio criminis. Em regra, esta representação “consiste em declaração escrita ou oral, dirigida à autoridade policial, ou ao órgão do Ministério Público, ou ao Juiz”, como afirmava Borges da Rosa[1]. Porém, a doutrina e a jurisprudência pátrias trataram de amenizar este rigor outrora exigido, a fim que a representação tivesse traços mais informais e, conseqüentemente, mais consentâneos com a realidade.     Assim, “a representação, quanto à formalidade, é figura processual que se reveste da maior simplicidade. Inocorre, em relação à mesma qualquer rigor formal”, e esta “dispensa do requisito das formalidades advém da circunstância de que a representação é instituída no interesse da vítima e não do acusado, daí a forma mais livre possível na sua elaboração.”[2]

Cezar Roberto Bitencourt ensina que “a representação não exige qualquer formalidade, podendo ser manifestada mediante petição escrita ou oral. A única exigência legal é que constitua manifestação inequívoca do ofendido de promover a persecução penal.[3] Neste sentido, a jurisprudência é pacífica:

“STJ – RECURSO ESPECIAL Nº 188.878 – RONDÔNIA (98/0068821-8) (DJU 29.10.01, SEÇÃO 1, P. 275, J. 09.05.01). RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES – A representação exigida pela Lei nº 9.099/95 não tem forma sacramental. É suficiente que o ofendido demonstre o animus e movimentar a ação penal, como, por exemplo, nomear assistente a acusação para participar de todos os atos do processo. 3. Recurso não conhecido.”

STJ – HABEAS CORPUS Nº 20.401 – RJ (2002/0004648-6) (DJU 05.08.02, SEÇÃO 1, P. 414, J. 17.06.02) – RELATOR: MINISTRO FERNANDO GONÇALVES – Nos crimes de ação pública, condicionada à representação, esta independe de forma sacramental, bastando que fique demonstrada, como na espécie, a inequívoca intenção da vítima e/ou seu representante legal, nesta extensão, em processar o ofensor.

Aliás, este é o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal (RT 731/522; JSTF 233/390; RT 680/429). No julgamento do Habeas Corpus nº. 88843, por unanimidade, os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, apesar de concederem a ordem de ofício (para afastar qualquer impedimento contra a progressão do regime prisional em favor de um condenado por atentado violento ao pudor com violência presumida), negaram, no entanto, o pedido formulado pela defesa por entender “que, de acordo com diversos precedentes da Corte, o entendimento firmado no STF é de que não se deve exigir a observância rígida das regras quanto à representação, principalmente quando se trata de crimes dessa natureza”, segundo o relator, Ministro Marco Aurélio.”

Pois bem.

Uma primeira questão: como proceder em relação aos processos em trâmite, ainda pendentes de sentença transitada em julgado? Em outras palavras: a nova regra estabelecida no parágrafo único do art. 145 retroage, atingindo os processos relativos a crimes praticados anteriormente à sua vigência, ou, ao contrário, somente alcançará os feitos concernentes aos delitos praticados após a vigência da nova lei?

É cediço que há dois princípios que regem o direito intertemporal em matéria criminal: a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o réu (art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal) e a lei processual penal aplica-se imediatamente (art. 2°. do Código de Processo Penal: tempus regit actum). O princípio da irretroatividade da lei penal, salvo quando benéfica, insere-se no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna, tendo força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño[4], tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada  de caráter jurídico-positivo”.[5]

Assim, à vista desses dois princípios, haveremos de analisar a questão. Desde logo, urge que procuremos definir a natureza jurídica da norma contida neste dispositivo legal (não confundir lei com norma jurídica): seria ela de natureza processual ou mista? Se admitirmos tratar-se de norma puramente processual (formal), não há que se falar, obviamente, em retroatividade; porém, se aceitarmos que é norma processual penal material (ou mista), é possível a retroatividade.

Esta matéria relativa a normas híbridas ou mistas, apesar de combatida por alguns, mostra-se, a nosso ver, de fácil compreensão. Com efeito, o jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material – que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”[6] Ele explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, são também plenamente materiais ou substantivas.”[7]  Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.[8]

Feitas tais considerações, lembra-se que por lei mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois “en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpabilidad o una causa que impida la operatividad de la punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta, sendo necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica em admitir que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni. (grifo nosso)[9].

Ora, uma norma que passou a exigir a representação para o exercício da ação penal (antes de iniciativa privada) tem um aspecto material, visto que tanto o não oferecimento da representação quanto o da queixa acarretará a decadência e a extinção da punibilidade, matérias do Direito Penal (art. 107 do Código Penal); mas, é também uma norma processual, pois se a representação é uma condição de procedibilidade para o exercício da ação penal, a queixa é a própria peça acusatória, a petição inicial da ação penal de iniciativa privada.

Destarte, nos processos em andamento, cuja ação penal evidentemente iniciou-se mediante queixa não existe providência a ser tomada pelo Juiz de Direito, senão a marcha normal do procedimento, observando-se o principio do tempus regit actum, pois a nova disposição não aproveitaria ao réu: uma ação penal de iniciativa privada “é mais benéfica” para o acusado que a ação penal pública, seja condicionada ou não. Basta lembrar que a ação penal de iniciativa privada é disponível (regra da disponibilidade), sendo possível, em favor do querelado, o perdão e a perempção .

A segunda questão, agora enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, diz respeito àqueles casos em que ao tempo da prática da injúria com preconceito a ação penal ainda era de iniciativa privada (antes da alteração legislativa). Obviamente que a atual situação tornou-se mais prejudicial para o acusado, pois o início da persecutio criminis in judicio passou a ser obrigatória para o Ministério Público, desde que, obviamente, oferecida a representação (regras da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública – arts. 28 e 42 do Código de Processo Penal). Neste caso, entendemos que, tratando-se de norma processual penal material, deve ser aplicado o art. 2º. do Código Penal, ou seja, a irretroatividade da nova lei se impõe, não atingindo aquele delito praticado anteriormente.

Neste sentido, veja-se a lição de Carlos Maximiliano:

Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”[10]                  

Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, – estas excepcionais por natureza.”[11]

Outra não é a opinião de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho: “Se a norma processual contém dispositivo que, de alguma forma, limita direitos fundamentais do cidadão, materialmente assegurados, já não se pode defini-la como norma puramente processual, mas como norma processual com conteúdo material ou norma mista. Sendo assim, a ela se aplica a regra de direito intertemporal penal e não processual.[12] Atente-se “que a natureza processual de uma lei não depende do corpo de disposições em que esteja inserida, mas sim de seu conteúdo próprio.[13]

Não é apenas o fato de uma norma está contida em um determinado diploma legal que definirá a sua natureza. Como afirmava Vicenzo Manzini, “estar uma norma comprendida en el Código de procedimiento penal o en el Código penal no basta para calificarla, respectivamente, como norma de derecho procesal o de derecho material.[14]

Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite a tudo quanto foi dito, pois se já houve o trânsito em julgado, não se pode cogitar de retroatividade havendo processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2º., parágrafo único do Código Penal[15].

Mutatis mutandis, enfrentando esta questão, o Supremo Tribunal Federal decidiu: “O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei.” (STF – ADI 1.719-9 – rel. Joaquim Barbosa – j. 18.06.2007 – DJU 28.08.2007, p. 01).

Lembramos, por fim, que o marco temporal para determinar qual a lei processual penal material a ser aplicada é a data da ação ou omissão, nos termos do art. 4º. do Código Penal.

Notas:
[1] Processo Penal Brasileiro, Vol. I, p. 169.
[2] Ação Penal nos Crimes Contra os Costumes, Geraldo Batista de Siqueira, p. 24.
[3] Código Penal Comentado, Ed. Saraiva, 2002, p. 329.
[4] Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editora Tecnos, 1993, p. 67.
[5] Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2001, p. 62.
[6] Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219/220.
[7] Ob, cit., p. 220.
[8] Idem.
[9] Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, Buenos Aires: Editora Ediar, 1987, págs. 463 e 464.
[10] Direito Intertemporal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314.
[11] Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1975, 124.
[12] O Processo Penal em Face da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 137.
[13] Eduardo J. Couture, Interpretação das Leis Processuais, Rio de Janeiro: Forense, 4ª, ed., 2001, p. 36 (tradução de Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano).
[14] Tratado de Derecho Procesal Penal, Tomo I, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951, p. 108 (tradução do italiano para o espanhol de Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redín).
[15] Neste sentido, a lição de Ada e outros, Juizados Especiais Criminais, Ed. Revista dos Tribunais, p. 49.

Informações Sobre o Autor

Rômulo de Andrade Moreira

Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.


Equipe Âmbito Jurídico

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