Resumo: A pesquisa, do tipo bibliográfica, tem por fim analisar juridicamente, em sede de Direito Penal, os resultados hipotéticos possíveis da utilização do Tiro de Comprometimento (realizado pelo atirador de elite – sniper) durante o Gerenciamento de Crise, a partir do estudo de institutos penais relevantes ao tema, tais como: as excludentes da legítima defesa de terceiros e do estrito cumprimento do dever legal, o erro na execução, e a obediência hierárquica. Isto, sem desconsiderar o quanto estabelecido em doutrina policial disciplinadora do gerenciamento de eventos críticos e da utilização do disparo de precisão realizado por atirador de elite – componente de grupos especiais da polícia. A escolha do tema se deu em face da relevância e necessidade de análise jurídica acerca do tiro de comprometimento, como alternativa tática e extrema na solução de um evento crítico, ou seja, aquele em que existe risco de vida para pessoas tomadas como reféns. Em doutrina policial são poucos os trabalhos escritos em que se discute a fundamentação jurídica deste uso de força letal, bem como o tratamento a ser dispensado aos resultados que possam advir do seu uso. Para tanto, a pesquisa fora iniciada a partir da demonstração da necessidade da força policial para o Estado e a sociedade, através de uma fundamentação sociojurídica, destacando alguns princípios que norteiam a atividade policial e sua localização no poder de polícia administrativa. Expõe o entendimento doutrinário sobre os aspectos penais relevantes ao tema, tratados em capítulo próprio. Da pesquisa conclui-se de como deve ser tratado penalmente cada hipótese de desdobramento do tiro de precisão realizado pelo sniper. Neste contexto, se procurou demonstrar, no ordenamento jurídico e na jurisprudência, os fundamentos legais que asseguram esta modalidade de solução para os casos específicos de risco real ou iminente para a vida dos envolvidos neste tipo de ocorrência, com posicionamento particular a respeito da utilização da força letal (medida interventiva) pelos órgãos policiais especializados no Gerenciamento de Crises.[1]
Palavras chave: Gerenciamento de Crises. Tiro de Comprometimento. Atirador de Elite (Sniper). Aspectos Penais.
Abstract: The research, such literature, is to examine legally, in the Criminal Law, the possible results of the use of hypothetical Shooting of Commitment (conducted by an elite sniper – sniper) during the Crisis Management from the study of institutions relevant to the criminal matter, such as the exclusion of legitimate defense of others and strict compliance with statutory duty, the error in the implementation and hierarchical obedience. This, without disregarding the doctrine as established in the police disciplinary management of critical events and the use of shot accuracy made by an elite sniper – component of special groups of police. The choice of subject was in view of the relevance and need for legal analysis about the shooting of commitment as an alternative tactic, and in extreme solution to a critical event, ie one in which there is risk of life for people taken as hostages. In theory police are few papers written which discuss the legal basis of the use of lethal force, and the treatment being accorded to the results that may arise from its use. Thus, the search was started from the demonstration of the need of the police force for the State and society, through a reasoning sociojurídica, highlighting some principles that guide the police activity and its location in the power of police administration. Exposes the doctrinal understanding of the criminal aspects relevant to the theme treated in its own chapter. Research it is like to be treated criminally each unfolding event of the shooting of pricisão made by the sniper. In this context, it has shown, the law and case law, the legal foundations that provide this type of solution to the specific cases of actual or imminent risk to the lives of those involved in this type of occurrence, in particular position regarding the use of lethal force (measured interventional) by police agencies specializing in crisis management.
Keywords: Crisis Management. Shooting of Commitment. Elite sniper (Sniper). Criminal Aspects.
Sumário: 1. Introdução; 2. Estado e força policial, 2.1. Necessidade social de segurança e sua previsão constitucional, 2.2. Força policial e os princípios jurídicos inerentes à sua atividade, 2.2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana, 2.2.2. Princípio da legalidade, 2.2.3. Princípio da proporcionalidade, 2.2.4. Princípio do uso adequado e progressivo da força, 2.3. Atividade policial e poder de polícia, 2.3.1.Conceito, fundamentos e características do poder de polícia, 2.3.2. Atividade policial como forma de atuação do poder de polícia; 3. Doutrina policial: do gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento do Sniper, 3.1 do gerenciamento de crises: definições, características e elementos operacionais, 3.1.1. Crise ou evento crítico e suas características, 3.1.2. Gerenciamento de crises: conceito e objetivos, 3.1.3. Teatro de Operações, 3.1.4. Comandante do Teatro de Operações, 3.1.5. Negociador, 3.1.6. Grupo tático, 3.2. Do tiro de comprometimento do sniper, 3.2.1. Do Sniper; 4. Dos aspectos penais que envolvem o tiro de comprometimento, 4.1. Do conceito de crime, 4.2. Do estrito cumprimento do dever legal, 4.2.1. Do conflito aparente de deveres jurídicos, 4.3. Da excludente de ilicitude da legítima defesa (de terceiros), 4.3.1. Dos bens suscetíveis de defesa, 4.3.2. Requisitos legais para reconhecimento da legítima defesa, 4.3.3. Do excesso doloso e culposo, 4.4. Dos efeitos civis das excludentes de ilicitude, 4.5. Do erro na execução, 4.6. Da obediência hierárquica e da responsabilidade penal do tiro de comprometimento; 5. Análise dos casos hipotéticos de utilização do tiro de comprometimento em face do direito penal brasileiro, 5.1. Disparo autorizado que atinge apenas o causador da crise, 5.2. Disparo autorizado dirigido ao causador da crise, mas que atinge apenas o refém, 5.3. Disparo autorizado dirigido ao causador da crise, que atinge o causador e o refém, 5.4 disparo ocorrido em momento inadequado (não oportuno), 5.5 disparo não autorizado, 5.6. Disparo dirigido ao causador do evento crítico, que não o atinge, mas que provoca reação imediata contra a vítima; 6. Considerações finais; 7. Notas; 8. Referências; 9. Glossário.
1. INTRODUÇÃO
A atuação de grupos táticos ou de atiradores de elite comumente ocupa espaço na mídia como alvo de especulações das mais diversas possíveis. Por vezes, os profissionais que compõem tais grupos, militantes na área de operações especiais ou operações táticas, são enaltecidos, diferenciados do restante dos agentes policiais, servindo até de inspiração para a indústria cinematográfica (exemplo disso, o filme Tropa de Elite).
Ocorre que na maioria das vezes em que a atuação de grupos especiais vira manchete, não é no intuito de elogiá-los, mas de questioná-los acerca dos métodos empregados, geralmente de forma empírica, através de severas críticas, principalmente quando não se alcança sucesso pleno no gerenciamento de uma crise. Exemplo recente, fora o caso Eloá, ocorrido na cidade de São Paulo, que estava sendo gerenciado pelo GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais) da Polícia Militar do Estado.
É comum, em meio às críticas levantadas pela imprensa, no sensacionalismo que lhe é peculiar nos casos de polícia, o questionamento acerca da não utilização do tiro de comprometimento como medida possível de neutralização do tomador de refém (causador da crise), demonstrando inclusive filmagens que comprovam sua exposição e a possibilidade de ser atingido através de um tiro de precisão, executado por um dos atiradores de elite, presentes e posicionados estrategicamente nas proximidades do ponto crítico.
As atividades policiais voltadas para atendimento de situações de crise, dado o elevado risco de vida dos envolvidos, são de relevante visibilidade e interesse social, e isto fomenta inúmeras discussões na sociedade acerca dos métodos e técnicas empregadas pelas forças públicas na solução desses tipos de evento, que, diga-se de passagem, não corresponde a uma atividade rotineira de policiamento ostensivo.
O gerenciamento de uma crise, como será demonstrado adiante, trata-se de intervenção policial extraordinária, em situações em que o risco de vida dos envolvidos é bastante elevada, necessitando assim, de uma atuação especializada por parte da força pública.
A própria sociedade exige do poder estatal e dos seus órgãos, em especial da Polícia, a necessidade de constante evolução e adequação aos ditames do Estado Democrático de Direito. Ora, é a atividade policial por sua natureza, uma atividade fiscalizadora e restritiva de direitos e liberdades individuais, daí a importância da qualificação e preparação cotidiana dos seus profissionais para provimento de uma força policial mais humana e de atuação em conformidade com o Direito.
Nesse contexto, ganha destaque o tiro de comprometimento, como alternativa tática (medida extrema) de utilização de força letal durante o gerenciamento de um evento crítico, com vistas a solucionar a crise e por termo à violência perpetrada pelo tomador de refém (ns).
Por ser este autor um oficial da Polícia Militar da Bahia, especializado profissionalmente na área de Ações Táticas Especiais, e com participação em cursos e palestras de gerenciamento de crises, promovidos pela instituição, verificou-se a existência de lacuna, na doutrina policial, de estudo e análise jurídica da técnica do tiro de comprometimento em face do Direito Penal brasileiro, um dos fatores que motivou o presente trabalho.
Vale registrar, que a carência de fundamentação jurídica encaixada à doutrina policial, muitas vezes, acaba por causar uma espécie de insegurança na adoção do tiro de comprometimento como solução de um evento crítico, sendo parcos os estudos acerca do tratamento jurídico a ser dispensado aos resultados hipotéticos advindos de sua utilização, e como se dá a responsabilização penal nos casos de erro na execução do disparo.
Sendo assim, esta pesquisa tem por finalidade contribuir para a construção de uma fundamentação jurídica palpável, para um emprego responsável e humano da doutrina policial do tiro de comprometimento como alternativa tática e legalmente respaldada para a solução de eventos críticos, atenuando a insegurança do seu uso.
Para tanto, antes de enveredarmos pelas técnicas policiais que tratam do gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento, bem como da análise jurídica que se propõe no presente trabalho, julgou-se importante, ab initio, uma breve fundamentação a respeito da necessidade da força policial para o Estado e para a sociedade.
Ainda no primeiro capítulo, após defendermos a necessidade da força policial e demonstrarmos quem a monopoliza, destacamos alguns princípios jurídicos norteadores de sua atividade, enfocando em seguida os conceitos e aspectos que envolvem o poder de polícia e a polícia administrativa, e a relação destes com a atividade policial.
No capítulo seguinte, são reproduzidos os conceitos mais utilizados na doutrina policial, com ênfase aos conceitos e princípios que regulam o Gerenciamento de Crises e o Tiro de Comprometimento, tudo de acordo com as atuais técnicas utilizadas pelas polícias brasileiras. Demonstrando ainda, as atribuições dos componentes do Teatro de Operações, importantes para consecução dos objetivos deste trabalho.
Após os esclarecimentos acerca dos componentes e técnicas do gerenciamento de crise, tema afeito à doutrina policial, chega-se à exposição dos institutos de Direito Penal necessários à análise dos resultados que podem advir do uso do tiro de comprometimento.
Dentre os aspectos penais importantes na discussão do tema, selecionamos as causas de justificação do estrito cumprimento do dever legal e da legítima defesa (de terceiros), o instituto do erro na execução e a análise da obediência hierárquica na delimitação da responsabilidade penal dos agentes envolvidos na execução do disparo de precisão.
Em seguida, como fruto do raciocínio seguido ao longo da pesquisa que ora se apresenta, se dá a análise jurídica, em sede de Direito Penal, dos resultados hipotéticos e possíveis da utilização do tiro de comprometimento do sniper.
E por fim, tem-se o encerramento do presente trabalho, com breves palavras a título de conclusão, em que se ressaltam os aspectos mais importantes levantados durante a pesquisa e a própria legalidade ou não do disparo de precisão, momento em que será ratificado o nosso posicionamento a respeito do tema.
2. ESTADO E FORÇA POLICIAL
Neste capítulo, antes de abordarmos sobre a importância da força policial na preservação da ordem pública, e no conjunto de órgãos necessários à manutenção do Estado Democrático de Direito, vislumbramos que, didaticamente, é interessante uma digressão sobre as relações entre o Direito, Poder (Estado) e Sociedade.
O ser humano como agente social tende a se exteriorizar por meio de relações estabelecidas com os seus pares, necessitando da coexistência social e da vida em sociedade como alimento da sua própria existência. O isolamento não é a regra da vida humana, o comum é se agregar. A solidão, inclusive, pode ser causa de doenças emocionalmente depressivas altamente nocivas ao homem. Por isso, entende-se que o ser humano, em si, é inclinado às relações sociais.
E para garantia da estabilidade social das relações humanas, como um todo, surge a regulamentação dos direitos e deveres, pois, uma sociedade não existe sem direito, assim como este não subsiste sem aquela, necessariamente acabam se pressupondo um ao outro – ubi societas ibi jus[2] (RÁO, 1997).
Nas lições de Ráo (1997, p. 49), “o direito equaciona a vida social, atribuindo aos seres humanos, que a constituem, uma reciprocidade de poderes, ou faculdades, e de deveres, ou obrigações”. Deveras, ao lado do direito, imprescindível é a figura do Estado, como mediador das relações sociais.
No controle dessas relações, o Poder Público confere ao direito um caráter de “proteção-coerção”, o que significa que para toda proteção jurídica haverá uma intervenção eventual e de força correspondente, com vistas a manter a ordem social (RÁO, 1997).
Esta “proteção-coerção”, segundo o autor (1997, p. 50), representa “a possibilidade do poder público intervir, com a força, em defesa do direito ameaçado, ou violado, a fim de manter, efetivamente, a vida em comum, na sociedade”. Sem esta garantia a vida do direito e da própria sociedade seriam mitigados pelo desrespeito às normas, como pela vontade dos mais fortes sobre os mais fracos.
Contudo, tal intervenção do poder público não deve ser ilimitada. Nesse diapasão, ressalta-se o modelo de Estado concebido por Kant, em que se enaltece a liberdade individual, e a conveniência de limitar a força coercitiva do Estado através de freios constitucionais (lei maior), com vistas a coibir a ação totalitária duramente sentida em governos do tipo absolutistas.
Para tanto, uma das medidas necessárias à ordem democrática é a tripartição dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), constituindo um sistema de freios e contrapesos e conservando a autonomia e harmonia entre os mesmos, conforme idealizado na estrutura montesquiana, o que cria a possibilidade de controle dos excessos por ventura cometidos por um dos poderes.
Mas de onde vem o poder do Estado? E como se dão as relações de poder na sociedade? Para entendimento das relações de poder, é imperioso que se observe a existência, de um lado, de quem exerce o poder, e do outro, aquele sobre o qual o poder é exercido, o que leva a defini-lo como um “conjunto de relações pelas quais indivíduos ou grupos interferem na atividade de outros indivíduos ou grupos” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 214).
Nesta linha de pensamento, para que alguém exerça o poder, será preciso dispor de força. Embora seja comum interpretar dessa forma, não quer dizer que seja apenas força física, coercitiva, ou o uso de violência – a força em questão tem um significado maior, que transcende o mundo físico. No Estado Democrático de Direito, pode-se considerar como sendo o poder legitimado pela soberania popular, pela vontade do povo, que mune o poder público da força de fazer prevalecer o interesse público sobre o particular (ARANHA; MARTINS, 2003).
Sendo o poder estatal legítimo, apenas este se torna apto à elaboração e aplicação das leis, recolhimento de tributos, e para dispor de uma força armada. Esta, importantíssima, para a garantia da ordem interna e externa (serviços monopolizados pelo Estado).
Nesse sentido, Weber (citado por BOBBIO, 2000, p. 165), afirma “que a força física legítima é o fio condutor de ação do sistema político, aquilo que lhe confere a sua particular qualidade e importância e a sua coerência como sistema”. Dessa argumentação, extrai-se que apenas as autoridades políticas possuem o direito de utilizar a coerção e de exigir obediência com base nela, e que:
“não há grupo social organizado que tenha até agora podido consentir na desmonopolização do poder coativo, evento que significaria nada menos que o fim do Estado, e que, enquanto tal, constituiria um verdadeiro salto qualitativo para fora da história, no reino sem tempo de utopia” (BOBBIO, 2000, p. 166).
Assim, pode-se afirmar que o poder que o Estado detém para intervenção e controle social, de forma monopolizada, advém da soberania popular. É um poder legitimado pelo povo com fim de sustentar a própria coerência da estrutura estatal. Mas, numa ordem democrática de direito, por meio de qual órgão o Estado exerce a força física necessária à manutenção do poder legitimado pela soberania popular?
Não poderia ser outro, a não ser a polícia, braço armado do Poder Público. Outrora, nos governos absolutistas, caracterizava-se pela natureza perseguidora, com atividades conduzidas à sombra das vontades do soberano, mas, dado a influência das idéias jusnaturalistas e jusracionalistas, o Estado assume a condição de garantidor dos direitos individuais, com economia mais liberal, e, conseqüentemente, as funções da força policial passam a ser tipicamente de “prevenção de perigos e de manutenção da ordem e segurança” (CANOTILHO, 2003, p. 91).
Feita esta introdução, passa-se a tratar da necessidade da força policial para provimento da segurança pública, desejo social que imperiosamente deve ser atendido pelo Estado, com fim de manutenção da ordem e da segurança na sociedade. Nesse sentido, o art. 144, da Constituição Federal, in verbis:
“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.” (CF/1988)
2.1. NECESSIDADE SOCIAL DE SEGURANÇA E SUA PREVISÃO CONSTITUCIONAL.
É cediço que a sociedade, desde sua tenra formação, bem como suas instituições, foram estruturadas em torno de princípios e valores que envolvem o desejo de segurança nas relações sociais como um todo, inclusive, com avaliação de riscos, levando à necessidade de uma ordem jurídica que garanta segurança às relações estabelecidas (segurança jurídica).
A segurança é algo tão importante para o desenvolvimento da sociedade que já no início de seu texto, a Constituição Federal de 1988 destaca a relevância no seu trato pelo poder constituinte, indicando-a como valor supremo de uma sociedade, senão vejamos:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, (…).”
O trato dispensado ao direito à segurança não ficou restrito apenas ao preâmbulo, é previsto no próprio bojo da Constituição como direito fundamental e social, in verbis:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…) (art. 5º, caput, CF/88).
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (art. 6º, caput, CF/88).”
Ademais, a partir de uma leitura ampla do art. 144, pode-se concluir que nossa Constituição não atribuiu apenas ao Estado a responsabilidade pelo provimento da segurança pública, ao contrário, estendeu a todos, de forma solidária, tanto o direito como a responsabilidade desta. Lógico que, como assevera o dispositivo em questão, a prestação da segurança pública é dever do Estado, contudo, “não exclui a responsabilidade de todos os setores da sociedade e dos poderes constituídos” (SOUZA, 2008, p. 27)[3].
É por ser próprio da sociedade o receio e a necessidade de proteção, que a segurança pública precisa ser garantida pelo Estado, o que levou à nossa ordem constitucional a tratá-la como direito fundamental e social de elevada importância.
Dentre os diversos órgãos estatais que de uma forma ou de outra se preocupam com a segurança pública, temos as instituições ou corporações policiais discriminadas taxativamente no art. 144, da nossa carta constitucional, como responsáveis pelo exercício estatal da segurança com vistas à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Para que o objetivo de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio seja alcançado, a força policial poderá atuar tanto de forma preventiva como de forma repressiva, a depender do caso concreto.
O que não se pode olvidar é da sua existência como mecanismo necessário à manutenção da ordem democrática, pois é difícil vislumbrar uma democracia sem a contenção e controle do crime, garantindo o respeito à ordem jurídica constitucionalmente instalada. Assim, pode-se afirmar que a polícia e a sociedade são interdependentes. Os acontecimentos no campo de uma repercutem forçosamente no da outra.
Uma analogia interessante, lecionada no curso de Direitos Humanos[4] promovido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) para profissionais dessa área, é que: assim como no seio familiar, é imperioso a intervenção do adulto para limitar e nortear moralmente a conduta dos jovens sob sua tutela ou guarda, em nível macro (social), também é necessário a existência de uma instituição com a missão de conter e manter a ordem, de forma a limitar os desvios comportamentais que afrontem o Estado Democrático de Direito.
A polícia é, portanto, “uma espécie de superego social indispensável em culturas urbanas, complexas e de interesses conflitantes, contendedora do óbvio caos a que estaríamos expostos na absurda hipótese de sua inexistência”[5].
Por isso não se conhece sociedade que se mantenha sem a existência do poder de polícia. Cuidar da segurança pública, da liberdade de ir e vir do cidadão, que este não seja molestado ou saqueado, e da garantia de integridade física e moral de todos, é dever do Estado (representado pela força policial) e responsabilidade de todos, um pacto com o rol mais básico dos direitos humanos, os quais devem ser garantidos à sociedade em geral. É com este fim, que a soberania popular confere ao Estado (força policial) a função para o uso da força, quando necessário e no atendimento do interesse público.
2.2. FORÇA POLICIAL E OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS INERENTES À SUA ATIVIDADE.
A força policial, concebida no rol dos órgãos públicos discriminados constitucionalmente como responsáveis pelo exercício da preservação da ordem pública, está inserida na estrutura administrativa do Estado, e como tal é regida por normas e princípios de Direito Administrativo.
O Direito Administrativo, ramo autônomo na Ciência Jurídica, reúne um conjunto de normas que regem a Administração Pública e a conduta dos seus agentes. Possui princípios próprios, alguns estabelecidos de forma taxativa no caput do art. 37, da Constituição Federal (legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência), e outros dispostos de forma implícita (a exemplo, os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, da ampla defesa e do contraditório, segurança jurídica, motivação, supremacia do interesse público), mas que a doutrina majoritária os reconhece como necessários à atuação administrativa.
Merece ainda relevante consideração, para efeitos do presente texto, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na atual ordem democrática como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, bem como os princípios da intervenção mínima, que molda a atuação punitiva do Estado como ultima ratio, e do uso progressivo da força, como orientador dos meios de intervenção da força policial, que deverá se dar de forma gradativa.
É notória a importância que todos estes princípios assumem no cenário da atividade administrativa policial do Poder Público, principalmente como limitadores da ação do Estado, que já foi muito sentida pelo povo brasileiro nos tempos do governo ditatorial.
No entanto, por serem de maior relevância, serão tratados a seguir apenas os princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade (ou reserva legal), da proporcionalidade, e do uso progressivo da força, como princípios norteadores da atividade policial e necessários à discussão do tema que se ousa dissertar.
2.2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana.
Previsto no art. 1º, inciso III, da nossa Constituição Federal, como fundamento da República Federativa[6], o princípio da dignidade da pessoa humana, é considerado núcleo basilar de todos os direitos fundamentais garantidos constitucionalmente.
Sarlet (2004, p. 106 e 107), ao discutir a eficácia dos direitos fundamentais, leciona que tanto os direitos positivados taxativamente, como os implícitos, guardam relação com os princípios fundamentais de nossa Carta Magna, dentre estes, a dignidade da pessoa humana, o qual constitui em suas palavras “valor unificador de todos os direitos fundamentais”, e assume “função legitimatória” no reconhecimento de direitos fundamentais dispostos de forma implícita no texto constitucional.
Para ilustração da dignidade da pessoa humana como valor supremo em nossa sociedade e no mundo jurídico, tem-se o seguinte julgado do STF:
“A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência”.[7] (grifos nosso).
Ora, em que pese a complexidade e dificuldade de um significado universal do que seja dignidade da pessoa humana, pois abarca um conjunto de valores, direitos e garantias que podem variar de acordo com determinada cultura ou religião, uma coisa é certa: o Constituinte de 1988 a reconheceu como fundamento do Estado Democrático de Direito, estabelecendo, assim, “que é o Estado que existe em função da pessoa” (SARLET, 2004, p. 110), não o contrário.
Vale ressaltar que são várias as Constituições que consagram tal princípio como valor fundamental da ordem jurídica, e ao considerarem a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e de eficácia plena, partem da premissa de que, ao homem, basta a sua condição biológica de ser humano para assumir a qualidade de titular de direitos e de um mínimo de dignidade, os quais devem ser respeitados, não apenas pelos seus pares, mas também pelo Estado. É, portanto, a dignidade, um atributo inerente à natureza e condição da pessoa humana (SARLET, 2004).
Entendimento este, que pode ser extraído do art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”[8]. Significa que toda pessoa já nasce com dignidade e com garantia de isonomia entre os seres humanos, sendo defeso todo tratamento discriminatório, arbitrário, e todo tipo de perseguição por questões religiosas ou raciais.
Falar sobre dignidade da pessoa humana num espaço reduzido como este, é bastante árduo, em face da dimensão e importância do tema, mas, sem dúvida, o pouco que fora abordado servirá de base para a discussão proposta em torno das implicações jurídicas que envolvem a adoção do tiro de comprometimento do sniper, como alternativa de solução num evento crítico. Intervenção estatal difícil de ser defendida na perspectiva do direito à vida, liberdade e igualdade, que, nas lições de Sarlet (2004), correspondem às exigências mais elementares da dignidade da pessoa humana. Contudo, poderá ser tida como necessária e única medida disponível a ser adotada pelo Estado como solução de uma crise, principalmente, quando está em jogo a vida de pessoas tomadas como refém, as quais merecem, sem dúvida alguma, ter garantida sua dignidade e respeito.
Quando se trata de intervenção do Estado (força policial), não se pode olvidar da exigência de base legal e do respeito à proporcionalidade na consecução de seus atos administrativos. Imperativos decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana na limitação do Poder Público, na condição de requisitos necessários para uma atuação repressiva do Estado, principalmente, quando ameaçar ou ofender direitos e garantias individuais (SARLET, 2004). Daí a importância dos princípios da legalidade e da proporcionalidade, tratados a seguir.
2.2.2. Princípio da legalidade.
É pacífico na doutrina o entendimento de que o princípio da legalidade serve de limitador da atuação estatal, significando que toda atividade administrativa do Estado deve ser autorizada por lei. Esse princípio, expressamente previsto no art. 37, caput, da CF/88, é considerado por Bandeira de Mello (2005, p. 89) como “princípio basilar do regime jurídico-administrativo”, e específico do Estado Democrático de Direito. Sua função: submeter a Administração Pública aos ditames da ordem normativa.
Para o particular, o princípio da legalidade, da forma consubstanciada no art. 5º, inciso II, da CF/88, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, é uma garantia de proteção contra possíveis arbitrariedades do Poder Público, estabelecendo, assim, que a Administração Pública não poderá impor ou proibir conduta alguma ao particular, salvo se determinado ou facultado por lei.
Nesse sentido, são preciosas as lições de Meirelles:
“Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim” (2001, P. 82).”
Em outras palavras, preleciona no mesmo sentido o constitucionalista Cunha Júnior, ao tratar do princípio da legalidade na Administração Pública:
“Sabe-se que, no âmbito das relações privadas, vige a idéia de que tudo que não está proibido em lei está permitido. Nas relações públicas, contudo, o princípio da legalidade envolve a idéia de que a Administração Pública só pode atuar quando autorizada ou permitida pela lei. A norma deve autorizar o agir e o não agir dos sujeitos da Administração Pública, pois ela é integralmente subserviente à lei (2008, p. 861).”
O princípio da legalidade também assume papel importante no Direito Penal brasileiro. Insculpido no inciso XXXIX, do art. 5º, da Constituição Federal, prescreve que: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Tal garantia constitucional esclarece que a lei é a única fonte, ou meio, para que o Estado possa proibir comportamentos sob ameaça de punição, ou mesmo, impor sanções, em caso de violação da norma penal. Dessa forma, este princípio atua como limitador do poder punitivo do Estado, exigindo-se para tanto reserva legal.
Feitas tais ponderações, fica claro que as forças policiais devem, de forma imperiosa, se curvar ao princípio da legalidade, tanto no desempenho de suas atividades administrativas, como no exercício da preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, principalmente, quando atuarem de forma repressiva, pois, estarão auxiliando o Estado em sua pretensão de punir o infrator (são exemplos, casos de prisão em flagrante e de inquérito policial).
2.2.3. Princípio da proporcionalidade.
O princípio da proporcionalidade no Direito Administrativo tem por objeto o controle e contenção dos atos, decisões e condutas dos agentes públicos, de sorte a limitar a ação destes ao que deve ser entendido por adequado e legal. Consiste, assim, em exigir do Poder Público que sua atuação não ocorra de forma abusiva (com excesso de poder ou desvio de poder), mas lastreada na necessidade, equilíbrio e adequação ao interesse público (CARVALHO FILHO, 2006).
Ainda de acordo com Carvalho Filho, o Poder Público age dentro do razoável e com proporcionalidade, quando este, ao intervir em atividades sob seu controle, atua “porque a situação reclama realmente a intervenção, e esta deve processar-se com equilíbrio, sem excessos e proporcionalmente ao fim a ser atingido” (2006, p 30).
Este entendimento, recepcionado na doutrina pátria, tem origem no direito alemão, o qual apresenta como fundamentos do princípio da proporcionalidade os seguintes elementos: 1) pertinência, significando que uma intervenção do Estado será pertinente, quando o meio escolhido como ideal for realmente capaz de atingir o fim colimado; 2) necessidade ou exigibilidade, implicando que a medida seja indispensável para atingir o fim almejado ao considerar a indisponibilidade de outro meio menos gravoso, pois caso exista, este deve ser adotado; e 3) proporcionalidade stricto sensu, ou seja, na escolha do meio, as vantagens devem superar as desvantagens, devendo a escolha recair sobre o meio mais adequado e menos desproporcional (BONAVIDES, 2006, p. 396 à p. 398).
Outra curiosidade é apresentada nas lições do ilustre doutrinador Meirelles (2001, p. 86), em que o princípio da proporcionalidade, também pode ser chamado de “princípio da proibição de excesso”, o qual implica na obrigação do administrador “aferir a compatibilidade entre os meios e os fins, de modo a evitar restrições desnecessárias ou abusivas por parte da Administração Pública, com lesão aos direitos fundamentais”.
Tomando por base as ponderações ora apresentadas, não restam dúvidas o quanto é prudente a adoção do princípio da proporcionalidade no desempenho das funções dos órgãos policiais, principalmente, ao assumirem posturas repressivas no controle de ocorrências delituosas, ou da própria ordem pública, em face da possibilidade material de restrição de direitos fundamentais.
Seguindo tal raciocínio, conclui-se que, no uso da força, a autoridade policial deverá esgotar inicialmente as medidas menos ofensivas aos direitos e garantias fundamentais, utilizando a força de forma gradativa, progressiva, até que se chegue ao uso da arma de fogo, a qual por prudência deve ser tida como última medida a ser adotada pelo Estado na contenção de uma ação delituosa, mas que não deixa de ser uma alternativa legal, quando baseada na legítima defesa e guardada a devida proporcionalidade.
2.2.4. Princípio do uso adequado e progressivo da força.
No âmbito da doutrina policial, o princípio da proporcionalidade ganha um novo contorno, revestindo-se de aplicação própria, específica, gerando um novo princípio, decorrente deste, a que se denomina de uso progressivo da força.[9]
As forças policiais, como instituições (seja civil ou militar) responsáveis pelo provimento da segurança pública, sem dúvida, devem primar pela aplicação da lei, mas também são obrigadas a intervir repressivamente nos casos em que esta seja violada. Trata-se de intervenção exigida pela própria sociedade e pela ordem normativa. Como exemplo de exigência legal para que um policial aja de forma repressiva, tem-se o art. 301, do CPP, “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Norma que impõe aos agentes policiais a obrigação de agir frente a situações de flagrante delito, como dever de ofício, sob pena de responsabilidade criminal e administrativa em casos de omissão.
O policial tem o dever de agir diante de flagrante delito, aplicando a força quando o caso concreto assim exigir. No entanto, não se pode olvidar da necessidade de gradação na atuação repressiva, esgotando inicialmente as possibilidades de negociação, persuasão e mediação, nas situações em que estas sejam possíveis, pois, às vezes, o policial não terá oportunidade de dialogar com o infrator, como exemplo, em casos de resistência com uso de arma de fogo contra o agente policial, o que o levará à adoção de postura mais ofensiva para defesa sua e de terceiros.
Nesse diapasão, é importante ter a consciência que o papel da força policial na sociedade assume importância ainda maior na medida em que se reconhece a legitimidade para o uso da força na solução de conflitos, devendo sua atuação ser submissa ao escalonamento e ponderações impostas por lei.
O entendimento de que o uso da força deve ocorrer de forma progressiva, pode ser extraído de alguns diplomas legais incidentes à atuação policial. O Código de Processo Penal, por exemplo, possui em seu bojo dois dispositivos que tratam do uso da força, in verbis:
“Art. 284. Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou tentativa de fuga do preso.
Art. 293. Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará a força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.”
Como visto acima, o uso da força não é regra, deve ser aplicada pelo policial quando indispensável, necessária, ao cumprimento do dever, e na graduação adequada e proporcional à resistência encontrada.
Como diz Tourinho Filho, a força haverá de ser empregada tão somente nos limites necessários para superar a oposição, o animus oppugnandi. Leciona ainda que outra hipótese de emprego da força é o caso de fuga do preso, e afirma que: “se a Polícia vai prender alguém e este corre, para tentar impedir a prisão, pode o executor, inclusive, usar da força necessária para evitar a fuga, disparando-lhe, por exemplo, um tiro na perna” (2009, p. 614).
O Código de Processo Penal Militar é outra fonte importante na delimitação do significado do uso adequado e proporcional da força, e, ao disciplinar o emprego desta, trouxe a baila hipóteses não previstas na legislação processual comum. Senão vejamos:
“Emprego da força
Art. 234 – O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.
Emprego de algemas
§ 1º – O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.
Uso de armas
§ 2º – O recurso ao uso de armas só se justifica quando absolutamente necessário para vencer a resistência ou proteger a incolumidade do executor da prisão ou a de auxiliar seu.” (grifos nosso).
Depreende-se desses dispositivos que o uso da força, e aqui se insere o emprego letal de arma de fogo, estão devidamente legitimados em nossa ordem normativa, mas com a responsabilidade de aplicação apenas em casos extremos, em que não haja outra forma de resolução do conflito.
Daí o imperativo de estabelecer o uso adequado e proporcional da força como um dos princípios norteadores da atividade policial, adotando as diversas formas de intervenção com maior critério e ponderação. Deveras, devem ser esgotadas, inicialmente, as medidas menos gravosas aos direitos e garantias fundamentais, para só assim, e como ultima ratio, apenas em casos extremos, recorrer-se ao uso letal da arma de fogo. É o sentido de aplicação do uso adequado e progressivo da força que se propõe.
2.3. ATIVIDADE POLICIAL E PODER DE POLÍCIA.
Os órgãos de segurança pública, por comporem a estrutura da Administração Pública, e pela natureza das missões constitucionais que lhes são peculiares, em suas atividades, estão intimamente relacionados aos conceitos de polícia administrativa e de segurança e o de poder de polícia, principalmente no desempenho de restrição de direitos individuais.
E sendo a atividade de polícia um poder monopolizado pelo Estado, desta se vale para manter sob sua proteção o interesse público em detrimento do comportamento individual passível de limitação.
2.3.1. Conceito, fundamentos e atributos do poder de polícia.
Tem-se no art. 78, do Código Tributário Nacional, o conceito legal de poder de polícia:
“Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”
Trata-se, assim, de “prerrogativa do poder público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública a restringir o uso e o gozo de liberdade e da propriedade em favor do interesse da coletividade” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 64).
Já Moreira Neto (2006, p. 395), refere-se ao poder de polícia como “função administrativa de polícia”, mas, sem destoar da doutrina majoritária, também reconhece a necessidade de previsão legal para que o Estado, através dos seus agentes, possa restringir ou condicionar o exercício das liberdades e direitos fundamentais, dos particulares, em prol do interesse público.
Destes conceitos depreendem-se como objetos do poder de polícia os bens e direitos individuais, os quais sofrem limites com um único fim, a proteção do interesse coletivo, que obrigatoriamente deve estar previsto em lei.
E não seriam outros, senão a lei e a prevalência do interesse público sobre o particular, os fundamentos para o exercício do poder de polícia. Pois, não é considerado regra a intervenção estatal que limita direitos e garantias individuais, a restrição e condicionamento das liberdades e da propriedade particular é exceção, e somente se dá mediante reserva legal, assim está previsto no art. 5º, inciso II, da CF/88.
Nesse diapasão, Hely L. Meirelles, ao lecionar a respeito da razão e fundamento do poder de polícia, ensina que:
“A razão do poder de polícia é o interesse social e o seu fundamento está na supremacia geral que o Estado exerce em seu território sobre todas as pessoas, bens e atividades, supremacia que se revela nos mandamentos constitucionais e nas normas de ordem pública, que a cada passo opõem condicionamentos e restrições aos direitos individuais em favor da coletividade, incumbindo ao Poder Público o seu policiamento administrativo.” (grifo nosso). (2001, p. 127)
Vale ainda ressaltar, dado a dinâmica característica ao exercício do poder de polícia, que este possui atributos específicos que lhe são peculiares, quais sejam: a discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade.
A discricionariedade deste poder traduz-se na opção legítima que a Administração Pública dispõe na escolha da oportunidade e conveniência de exercer os atos de polícia, o que implica em escolher o momento mais adequado, o meio de atuação necessário, e a sanção pertinente ao caso concreto, com fim exclusivo de atingir o interesse público (MEIRELLES, 2001).
Nas palavras de Meirelles, com toda razão, “discricionariedade não se confunde com arbitrariedade”. A discricionariedade é uma faculdade na escolha das hipóteses de condutas previstas em lei, desta não podendo distanciar-se a Administração Pública, pois, contrariamente, correrá o risco de incorrer em arbitrariedade, que é o agir em excesso ou fora da lei (MEIRELLES, 2001, p. 128).
Para Carvalho Filho, são formas de abuso, cometido pela Administração Pública, o excesso ou desvio de poder. Assim, se diz que houve excesso, quando “o agente atua fora dos limites de sua competência”, e desvio, ao “afastar-se do interesse público”, embora atuando dentro da sua competência (2006, p. 37).
Já a autoexecutoriedade, trata-se de prerrogativa que tem a Administração Pública de praticar e executar seus atos de polícia, por meios próprios, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário. Verificada a incidência dos pressupostos legais que autorizam a conduta administrativa, a Administração a executa de forma imediata e integral (CARVALHO FILHO, 2006).
Ora, no uso do poder de polícia, a Administração Pública não dispõe de tempo para aprovação prévia de qualquer outro órgão ou Poder, há casos em que o interesse público visado pelo ato de polícia não pode esperar a burocracia administrativa, a atividade ilícita precisa ser obstada imediatamente por questões de ordem social e legal, sob pena de responsabilidade por omissão.
Como último atributo, a coercibilidade. Este traduz o grau de imperatividade de que reveste o ato de polícia. Implica na imposição coativa das decisões e medidas adotadas pela Administração Pública, admitindo inclusive o emprego da força nos casos de resistência do administrado, dentro da legalidade e proporcionalidade, postulados norteadores da intervenção estatal (MEIRELLES, 2001).
2.3.2. Atividade policial como forma de atuação do poder de polícia.
A função policial se constitui em espécie de atuação do Estado no exercício do poder de polícia, na medida em que age na limitação de direitos e garantias individuais em prol do bem comum, do interesse público, fim último perseguido pelo poder estatal.
A princípio, cumpre especificar os tipos de atividade de polícia, que se divide em: polícia administrativa e polícia de segurança. Enquanto as atividades administrativas dizem respeito às limitações impostas a bens jurídicos individuais ou coletivos, as atividades de segurança referem-se à preservação da ordem pública (através de policiamento ostensivo) ou, às atividades de polícia judiciária, de atuação repressiva (SILVA, 2007, p. 778).
Di Pietro esclarece que as atividades de polícia administrativa são regidas pelas normas de Direito Administrativo, incidindo geralmente sobre bens, direitos ou atividades, ao passo que as atividades policiais de segurança são regidas pelo Direito Penal e Processual Penal, com incidência sobre as pessoas (2008, p. 109).
Ao lecionar sobre a diferença entre polícia administrativa e judiciária, Bandeira de Mello conclui que:
“O que efetivamente aparta polícia administrativa de polícia judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades anti-sociais enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos violadores da ordem jurídica”. (2005, p. 771).
Ademais, pode-se observar que a polícia administrativa atua por meio de órgãos de fiscalização, ou órgãos inerentes à Administração Pública, ao tempo que a polícia judiciária e de segurança atuam através de instituições ou corporações, como é o caso das polícias civil e militar. Nesse sentido, é o entendimento de Meirelles: “a polícia administrativa é inerente e se difunde por toda a Administração Pública, enquanto as demais são privativas de determinados órgãos (Polícias Civis) ou corporações (Polícias Militares)” (2001, p. 123).
Em continuidade a esta distinção, o presente trabalho não poderia se furtar das preciosas lições de Carvalho Filho, ao lembrar que ambas as polícias (seja administrativa ou judiciária), em verdade, desenvolvem atividades de natureza administrativa, com procedimentos e responsabilidades voltadas ao atendimento do interesse público. Nas palavras do aludido autor:
“A Polícia Administrativa é a atividade da Administração que se exaure em si mesma, ou seja, inicia e se completa no âmbito da função administrativa. O mesmo não ocorre com a Polícia Judiciária, que, embora seja atividade administrativa, prepara a atuação da função jurisdicional penal, o que faz regulada pelo Código de Processo Penal (arts 4º e seguintes) e executada por órgãos de segurança (polícia civil ou militar), ao passo que a Polícia Administrativa o é por órgãos administrativos de caráter mais fiscalizador”. (2006, p. 69).
Tais considerações são importantes para os fins deste trabalho, pois, assim, pode-se delimitar o que seja polícia de segurança (ostensiva), natureza jurídica da Polícia Militar, com atribuição constitucional de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, de essência preventiva (dada sua ostensividade), mas que muitas vezes acaba exercendo atividades de cunho repressivo ao se deparar com situações de flagrante delito, o que leva à adoção de medidas com vistas à restauração da ordem pública e aplicação da lei.
Definida a importância da força policial para a existência do Estado e para atendimento do desejo de segurança da sociedade, os princípios jurídicos orientadores de sua atividade, e a delimitação do que seja polícia de segurança e o poder de polícia que lhe é inerente, passa-se, neste momento, à apresentação da doutrina policial de gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento do sniper, necessária à análise jurídica que este trabalho visa realizar.
3. DOUTRINA POLICIAL: DO GERENCIAMENTO DE CRISES E DO TIRO DE COMPROMETIMENTO DO SNIPER
A construção da doutrina policial na seara do gerenciamento de crises tem por base a literatura policial norte-americana, utilizando-se de conceitos e princípios formulados pelo FBI (Federal Bureau of Investigation), que, inclusive, serviram como fonte inspiradora para o desenvolvimento dos diversos manuais de gerenciamento de crises hoje existentes no Brasil.
Essa fundamentação teórica, desenvolvida nos últimos dez anos, objetivou uma melhor padronização e evolução das técnicas policiais a serem adotadas nas intervenções de eventos críticos, com função relevante no cenário brasileiro, pois, até pouco tempo, não existiam parâmetros de comportamento ou procedimentos recomendados para gerenciamento de ocorrências de alto risco.
Muitas ocorrências com reféns eram resolvidas na base do improviso, o que não mais se admite na atualidade. Daí a importância de profissionais de segurança pública desenvolverem estudos nessa área de conhecimento, visando proporcionar um uso mais adequado e legal das técnicas policiais a partir da análise de suas implicações jurídicas, como propõe o presente trabalho.
Contudo, para se chegar à análise jurídica proposta tematicamente é preciso apenas uma breve apresentação dos conceitos básicos e fundamentos técnicos que envolvem o tema do gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento, tratados a seguir.
3.1. DO GERENCIAMENTO DE CRISES: DEFINIÇÕES, CARACTERÍSTICAS E ELEMENTOS OPERACIONAIS.
3.1.1. Crise ou evento crítico e suas características.
A Academia Nacional do FBI define crise como “um evento ou situação crucial, que exige uma resposta especial da Polícia, a fim de assegurar uma solução aceitável”.
Merece destaque a expressão da polícia na definição acima, pois demonstra ser a Polícia o órgão responsável para gerenciar e solucionar as situações de crise, não sendo recomendado a utilização de pessoas estranhas ao quadro policial do Poder Público no desempenho de tais funções.
Segundo Wanderley M. de Souza (1995, p. 20), especialista e estudioso das técnicas de gerenciamento de crises, é inconcebível o envolvimento de religiosos, psicólogos, elementos da mídia, advogados e outros como negociadores ou responsáveis pela condução e resolução de crises, devido ao risco e imprevisibilidade decorrentes de tal intervenção.
O ilustre oficial da Polícia Militar de São Paulo, sintetiza como características específicas de uma crise: a imprevisibilidade; a compressão de tempo (urgência); a ameaça de vida; e a necessidade de uma postura organizacional não rotineira, de planejamento analítico especial e considerações legais especiais. (1995, p. 21).
Dessa forma, cuida-se a crise de um evento de natureza crucial que demanda um esforço especializado para sua correta solução, exigindo da Polícia (Estado) adoção de medidas não rotineiras, face às peculiaridades e elevado risco de vida que envolve a ocorrência.
3.1.2. Gerenciamento de crises: conceito e objetivos.
Wanderley M. de Souza (1995, p. 23), mais uma vez, faz referência a conceito proposto pela Academia Nacional do FBI, a qual adota a seguinte definição acerca do gerenciamento de crises: “Gerenciamento de Crise é o processo de identificar, obter e aplicar os recursos necessários à antecipação, prevenção e resolução de uma crise”.
Nas palavras de Marcelo Veigantes (2008, p. 38), “é o correto gerenciamento da crise que vai definir, na maior parte das vezes, o sucesso da operação”. Nesta oportunidade, o autor acrescenta a importância das instituições policiais proverem o estudo do gerenciamento de crises como disciplina obrigatória nos cursos de formação e especialização.
Em fim, trata-se de uma ciência que deve lidar, geralmente sob parco tempo, com problemas de ordem pública da maior complexidade, em momentos arriscados de sua evolução, tendo sempre por meta, e como objetivos fundamentais, a preservação de vidas e aplicação da lei.
Esses dois objetivos estão dispostos numa ordem valorativa, em que o comando “preservar vidas” deve ser colocado, para os profissionais imbuídos no processo de gerenciamento de evento crítico, acima da própria aplicação da lei (DE SOUZA, 1995).
A fuga negociada[10] pode ser considerada exemplo prático dessa hierarquia, vez que a aplicação da lei (dever de realizar a prisão, ou a própria persecução penal) pode ser retardada, ao passo que a perda da vida de um refém é irreversível.
3.1.3. Teatro de Operações.
O teatro de operações, também denominado cena de ação ou perímetro do local de crise, corresponde à área circundante do ponto crítico, e abrange um espaço que deve ser isolado no intuito de se estabelecer o gabinete de gestão e gerenciamento, de onde serão deliberadas as ações policiais a serem adotadas.
Na organização da cena de ação é de grande importância a delimitação dos perímetros de segurança, estabelecendo total isolamento e controle da área de situação pela polícia, órgão que passa a ser o único veículo de comunicação entre os protagonistas do evento e o mundo exterior, com acesso limitado às pessoas e autoridades envolvidas na solução da crise, todos sob a coordenação do Comandante do Teatro de Operações.
3.1.4. Comandante do Teatro de Operações.
Trata-se da autoridade executiva, elemento operacional, que comanda e coordena todas as ações policiais no local do evento crítico. O teatro de operações fica sob a sua responsabilidade. Assim, “qualquer ação desenvolvida no âmbito do teatro de operações dependerá da anuência expressa desse policial, que passa a ser a mais alta autoridade na área em torno do ponto crítico” (DE SOUZA, 1995, p. 53).
Existe a possibilidade do comandante da cena de ação, durante o processo, ser substituído por outra autoridade policial[11], por determinação ou política do escalão superior, contudo, é válido esclarecer que independente de quem venha assumir a dita função, este deverá ser respeitado e deter o poder de decisão no local da crise. Postulado que, nas lições Wanderley M. de Souza, “tem como objetivo óbvio trazer coesão e definição de autoridade no gerenciamento da crise, evitando-se a dispersão de comando e a nefasta ocorrência de cadeias de comando paralelas” (1995, p. 54).
Sendo o comandante do teatro de operações a mais alta autoridade, e com poder hierárquico e funcional sobre todos os policiais envolvidos no processo de gerenciamento de crise, é este que detém o poder decisório para autorizar, ao atirador de precisão (sniper), a realização do tiro de comprometimento a fim de neutralizar o perpetrador da crise ou tomador de reféns.
Malgrado este entendimento, não se pode olvidar da influência que agentes políticos do Poder Executivo, ou mesmo do Legislativo, exercem na tomada de decisão por parte do comandante do perímetro do local de crise, principalmente quando esta envolve pessoas da alta sociedade. Mas como este trabalho se restringe à análise jurídica do disparo de comprometimento, não é pertinente que se aprofunde tal discussão.
3.1.5. Negociador.
É o elemento operacional responsável pelo processo de negociação estabelecido com o causador da crise. O papel fundamental do negociador, segundo Wanderley M. de Souza (1995, p. 56 e 57) é o de servir de intermediário entre os causadores do evento crítico e o comandante da cena de ação.
O negociador, como intermediário, no processo dialético entre os protagonistas do gerenciamento de crises, serve de “catalisador” entre as exigências dos causadores do evento crítico (tese) e a postura das autoridades (antítese), na busca de uma solução aceitável (síntese). Este personagem não possui poder de decisão, entretanto, assume importante função de assessoramento do comandante do teatro de operações, o auxiliando na tomada de decisões (DE SOUZA, 1995).
A tarefa de negociação, dada a sua primazia, não pode ser confiada a qualquer um. Dela ficará encarregado um policial especializado, com treinamento específico, devendo ser uma pessoa criativa e ética, de diálogo fácil, e que assuma esta função de forma voluntária.
A negociação, em si, é quase tudo no gerenciamento de crises. Costuma-se dizer que gerenciar uma crise é negociar, negociar e negociar, e quando se esgotarem as possibilidades de negociação, tentar realizá-la mais uma vez (DE SOUZA, 1995, p. 55).
Esta é a política de ação policial adotada majoritariamente, no entanto, sabe-se que em alguns casos, uma vez esgotada as alternativas não letais de solução da crise, necessário será o emprego de força letal como medida extrema, e esta deverá ser empregada dentro da legalidade e proporcionalidade exigidas por lei. Daí a relevância do presente estudo. Pois, há casos em que retardar demasiadamente o uso de força letal contra o infrator, poderá ser fatal para a vítima.
3.1.6. Grupo tático.
Além do comandante da cena de ação e do negociador, existe um outro elemento operacional essencial para o gerenciamento de uma crise, denominado de grupo tático ou time tático, equivalente à SWAT (Special Wapons and Tactics) da polícia americana.
O grupo tático, segundo o Manual de Ações Táticas da PMBA, é composto basicamente por dois subgrupos: os franco-atiradores (Snipers), também chamados de atiradores de elite, e os atacantes (assalters), ou célula de assalto, a quem cabe a missão de invasão – adentramento – do ponto crítico e resgate dos reféns (MAGALHÃES, 2003).
O grupo é comandado por um policial denominado chefe ou comandante do grupo tático, o qual não deve ser confundido com o comandante do teatro de operações, anteriormente tratado.
Wanderley M. de Souza, com base na doutrina americana (SWAT), traz em sua obra, como fundamentos doutrinários de um grupo tático: (1) ser composto por uma fração pequena de policiais (5 a 10), fundada na hierarquia, na disciplina e na lealdade; (2) em que o recrutamento do efetivo é feito na base do voluntariado, sendo a escolha pautada na conduta, coragem, experiência e especialização do policial candidato em situações de crise; (3) seus componentes devem ser submetidos a treinamentos constantes e tão assemelhados quanto possível à realidade, trabalhando em regime de dedicação exclusiva; (4) e que todos assumam o compromisso de matar (1995, p. 76 e 77).
Purificação (apud VEIGANTES, 2008, p. 42), ao lecionar sobre grupo tático, também faz referência a este último princípio, e assevera que “um dos fundamentos doutrinários destes grupos é o compromisso de matar, assumido por todos os seus integrantes”.
No entanto, este compromisso proposto pela doutrina norte americana e, inicialmente, reproduzido no Brasil, já foi e continua sendo alvo de severas críticas nas discussões que tratam a respeito do gerenciamento de crises. Pois, à primeira vista, uma contradição é clara: como pode ser admitido como fundamento de um grupo tático, o compromisso de matar, se a preservação da vida e aplicação da lei são objetivos consagrados no gerenciamento de crises?
Nesse diapasão, considerando o ordenamento jurídico pátrio, e com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da proporcionalidade, e do uso adequado e progressivo da força, inicialmente defendidos nesta pesquisa como orientadores da atividade policial, é fácil a conclusão de que fundamento dessa natureza não possui nenhum respaldo legal, configurando-se numa verdadeira aberração da doutrina policial.
O agente policial em operações de alto risco, numa crise com reféns, por exemplo, seja ele de grupo tático ou não, deve respeito inconteste aos mandamentos constitucionais. O compromisso ou dever de matar, que pode ser tratado, analogicamente, como dever de aplicação de pena de morte, particularmente, conduz o policial à condição de carrasco, figura inexistente no direito penal pátrio.
Destarte, a doutrina policial ao recepcionar tal princípio em seus manuais, demonstra desconhecimento e grande atraso frente aos direitos e garantias fundamentais consagrados constitucionalmente. É notório que a pena de morte no Brasil somente encontra suporte jurídico em tempo de guerra, oportunidade em que poderá o militar infrator ser condenado a uma pena de morte, conforme previsão do Código Penal Militar – agindo o executor em estrito cumprimento de dever legal.
Os órgãos policiais, taxativamente discriminados na Constituição pátria, possuem como Estado o dever de prestar uma segurança pública eficaz com vistas à preservação da ordem e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, não sendo da melhor técnica ou doutrina atribuir aos seus agentes o compromisso de matar, mesmo em situações de alto risco.
Mais sensato seria lecionar que o policial (ou sniper) tem, na verdade, o dever de proteger e defender a pessoa vítima de uma agressão humana injusta, atual ou iminente, conduta qualificada como legítima defesa de terceiros na legislação penal, não o compromisso de matar.
3.2. DO TIRO DE COMPROMETIMENTO DO SNIPER.
O Manual Básico de Ações Táticas da PMBA (MAGALHÃES, 2003, p. 13), assim como outros, prevê como alternativas táticas a serem empregadas na solução de uma crise: a negociação, o uso de técnicas não letais, o tiro de comprometimento realizado pelo atirador de precisão e a invasão tática ou assalto por célula policial.
Segundo Diógenes V. D. Lucca (2002, p. 98), dentre as alternativas apresentadas, o tiro de comprometimento e a invasão por célula tática, no processo de gerenciamento, “são alternativas táticas de fundamental importância para resolução de crises envolvendo reféns localizados”. No entanto, sintetiza que a aplicação do tiro de precisão ou a invasão necessitam de uma avaliação minuciosa de todo o contexto da crise, devendo ser esgotado inicialmente as técnicas não letais disponíveis ao aparato policial. Isto, numa perspectiva de adequação e uso proporcional da força.
Embora a realização do tiro de comprometimento pareça uma atuação simples, em fim, é só enquadrar o alvo e atirar, podendo ser realizado à distância sem necessidade de se expor, na realidade, é bastante difícil e complexa sua execução, principalmente quando existe mais de um seqüestrador e a possibilidade de se atingir também o refém. Por isso, o atirador de elite costuma ser uma figura criticada em muitos eventos críticos, mesmo quando deixa de atuar concretamente.
Por fim, a realização desse disparo corresponde a uma alternativa que, quando adotada, deve ser infalível, dado a imensa responsabilidade em hipóteses de erro. São vidas que estão em risco, devendo ser um disparo comprometido com o acerto e precisão. Daí a denominação: tiro de comprometimento.
3.2.1. Do Sniper.
Diógenes V. D. Lucca, em sua pesquisa, revela que a origem da palavra sniper se deu por um fato curioso:
“No período entre as duas grandes guerras mundiais, os americanos faziam seus treinamentos militares em grandes campos abertos e, ao realizarem o tiro, notavam o vôo rápido e irregular de uma pequena ave chamada sniper, que fugia espantada. Esse pequeno pássaro era um grande freqüentador de linhas de tiro, devido ao seu alimento preferido, uma planta gramínea, ser freqüente naqueles lugares. Assim, muitos atiradores preferiam acertar o tiro no pássaro em movimento, daí surgiu o apelido sniper, ou seja, aquele que se dedica ao pássaro sniper.” (2002, p. 100).
Quanto ao conceito, nas lições de Marcelo Veigantes, sniper é o policial que busca a melhor posição de visão e tiro, de tal maneira que, utilizando equipamentos ópticos de aproximação, como lunetas e binóculos, pode ver sem ser visto, servindo de elemento surpresa e como grande fonte de informações para o Comandante do Teatro de Operações, dado o equipamento óptico que dispõe. (2008, p. 43).
Ser um atirador de precisão vai além da condição de ter equipamentos de última geração (arma e luneta de pontaria), para realizar um disparo perfeito. Trata-se de uma função de grande responsabilidade institucional, podendo ser alvo de severas críticas, em caso de erro, ou de fascínio social, quando a ação é acertada. (LUCCA, 2002, p. 98)
Uma distinção digna de registro é entre sniper militar e policial. Enquanto o primeiro desempenha sua função em tempo de guerra imbuído do compromisso de matar, como regra, agindo com objetivo de causar baixa na tropa inimiga, o sniper policial, diferentemente, é empregado como alternativa tática extrema num gerenciamento de evento crítico, com funções pautadas na possibilidade de garantir a proteção e defender vítimas de ações delituosas, e com ofício de contribuir para a restauração da ordem pública.
Dessa forma, o sniper corresponde ao policial a quem cabe a função de atirador de precisão dentro do grupo tático (ou grupo de operações especiais), responsável pela execução do tiro de comprometimento, quando adotado como solução mais adequada para a crise.
Também é de sua responsabilidade, o papel subsidiário de observação e colheita de informações a respeito do ponto crítico (tais como, número de reféns, de seqüestradores, de armas, etc.) através dos equipamentos ópticos que dispõe, auxiliando assim o comandante do teatro de operações com informações precisas acerca de circunstâncias que envolvem a crise. Função muito mais comum que a própria execução do tiro de comprometimento.
Outro ponto digno de registro é quanto ao momento de execução propriamente dita do tiro de comprometimento. Ficou esclarecido que é o comandante do teatro de operações a autoridade policial competente para autorizar e determinar a realização do disparo, no entanto, uma vez autorizado, será o atirador que possui o domínio do momento em que o tiro será executado, dado as questões técnicas inerentes à sua realização. Nesse diapasão, pode-se concluir que ambos, comandante e atirador possuem responsabilidades quanto à realização do tiro. Assunto que será mais detalhado a frente, ao tratarmos da obediência hierárquica e da responsabilidade penal no concurso dos atores envolvidos na execução do tiro de comprometimento.
Enfim, uma vez adotado como alternativa tática de solução de uma crise, sua execução enseja o estudo de alguns aspectos jurídicos atinentes ao Direito Penal brasileiro, o que se passa a analisar no capítulo seguinte.
4. DOS ASPECTOS PENAIS QUE ENVOLVEM O TIRO DE COMPROMETIMENTO
Para discussão e enquadramento das hipóteses de resultado da utilização do tiro de comprometimento, necessário se faz verificar os aspectos penais relevantes ao estudo desta medida, bem como a existência ou não de respaldo legal e suas implicações na legislação penal brasileira.
Enfim, como o disparo tende a ser fatal, ocorrendo em tese o crime de homicídio, é importante, para fins de evolução da doutrina policial de gerenciamento de crises e desenvolvimento do tema proposto: delimitar as circunstâncias que excluem a antijuridicidade da conduta; a quem se deve atribuir a responsabilidade penal pela execução do disparo, dentre os protagonistas da cena de ação; e como incidirá o instituto do erro na execução no caso concreto. Basicamente, objetivos a serem alcançados neste capítulo após analisarmos o conceito de crime.
4.1. DO CONCEITO DE CRIME
O conceito de crime é ponto inicial para discussão das circunstâncias que envolvem o tiro de comprometimento. Tem-se nas lições de Cláudio Brandão, que o Direito Penal, busca investigar o crime à luz das normas, do dever-ser, utilizando para tanto o método normativo. Assevera ainda que, como a norma é uma unidade dialética entre preceito e conteúdo, ela traduz-se numa fórmula que expressa uma conduta (por exemplo, art. 121, do CP, “Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos”), chamada de preceito, e, em seguida, prever uma sanção. Quanto ao conteúdo da norma penal, este é representado pelo bem jurídico por ela tutelado com a norma proibitiva, no exemplo do homicídio: a preservação da vida. (BRANDÃO, 2007, p. 05 e 06)
Considerado o conteúdo normativo como o bem jurídico tutelado pela norma penal, é importante que se traga a definição do que seja bem jurídico. Ainda nas palavras de Cláudio Brandão (2007, p. 10), bem jurídico deve ser definido como “o valor tutelado pela norma penal, funcionando como um pressuposto imprescindível para a existência da sociedade”. O autor conclui que, sendo o bem protegido a justificativa para as regras punitivas do Direito Penal, o crime pode ser definido, materialmente, como violação ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado.
Porém, na análise jurídica almejada, é também digno de registro, o conceito formal de crime, a partir do entendimento dos elementos que o compõe: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Este conceito ficou a cargo da doutrina, vez que o legislador conceituou crime de sorte a relacioná-lo tão somente às penas cominadas (reclusão e detenção), in verbis:
“considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa.” (art. 1º, primeira parte).
Considerando o conceito formal de crime tutelado pela doutrina, tem-se como primeiro elemento constitutivo a tipicidade, decorrente do Princípio da Reserva Legal ou da Legalidade (nullum crimen nulla poena sine lege), que se traduz numa relação de adequação entre a conduta humana e a norma penal incriminadora. A conduta uma vez tipificada é entendida como contrária ao direito, antijurídica. (BITENCOURT, 2003)
Ocorre que podem existir ações típicas que, malgrado a adequação com a norma penal, não se configuram crimes, não são antijurídicas. Isto decorre da previsão de causas que justificam a conduta típica, ou seja, excluem a antijuridicidade. Daí, o segundo elemento do crime: a antijuridicidade. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007)
Nas palavras de Rogério Greco, a antijuridicidade corresponde à “relação de antagonismo, de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico (ilicitude formal) que cause lesão, ou exponha a perigo de lesão, um bem juridicamente protegido (ilicitude material)”. (2008, p. 99)
Já para Cláudio Brandão, a antijuridicidade “é um juízo de valor negativo ou desvalor que qualifica o fato como contrário ao Direito”. Segundo o autor, é um juízo de valor sobre a ação humana, que também é feito ao analisar se um fato é típico ou não. (2007, p. 11)
Do exposto, deduz-se que, para ser considerada crime, a conduta humana precisa ser típica e antijurídica (teoria bipartida do delito). Porém, há hipóteses em que ações típicas e antijurídicas não são tidas como crime. É o que ocorre em ações delitivas promovidas por menores, por serem inimputáveis (desprovidos de capacidade penal), suas ações, quando típicas e antijurídicas, são classificadas como atos infracionais e sofrem sanções específicas previstas em lei especial (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Nessa linha de raciocínio, Cláudio Brandão assevera que:
“Para que o crime se perfaça é necessário que, além dos juízos sobre a ação (tipicidade e antijuridicidade), se faça um juízo sobre o autor da ação. Esse juízo sobre o autor da ação é chamado de culpabilidade.” (2007, p. 20)
Dessa forma, chega-se à culpabilidade, terceiro elemento do delito. Trata-se de um juízo de reprovação realizado sobre o autor da conduta típica e antijurídica, quando, mesmo diante da possibilidade de agir conforme o Direito, escolhe livremente contrariá-lo. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007)
Dessa forma, visto os três elementos que compõem o conceito analítico de crime, defini-se este, majoritariamente, como sendo a “conduta típica, antijurídica e culpável” (teoria tripartida do crime). (DOTTI, 2005, p. 300)
Partindo-se para a análise do caso concreto, esta deve ser feita na ordem determinada pelo próprio conceito, sendo o juízo de um elemento pressuposto necessário para o juízo do elemento subseqüente. Ou seja, primeiro verifica-se se houve a conduta, para então definir se é ou não típica. A seguir, uma vez havida a conduta e sendo esta típica, observa-se se está amparada por uma causa de justificação ou é contrária à ordem jurídica e, por conseguinte, se é reprovável (juízo de culpabilidade). Percorrido este caminho, pode-se interpretar o fato como penalmente relevante. (PEGORARO, 2008)
Feito esta breve análise do conceito de crime é possível vislumbrar que o tiro de comprometimento é uma ação humana, e que ao atingir o causador do evento crítico de forma letal, se adequa ao tipo do crime de homicídio. Sendo assim, a decisão que autoriza tal medida deverá ser pautada por uma norma permissiva, para que num juízo de antijuridicidade da ação, esta assuma conformidade com o Direito.
A seguir, analisar-se-á os aspectos penais pertinentes ao disparo de comprometimento, pontuando de início as causas de exclusão de antijuridicidade, mais adequadas ao fato em estudo, em seguida, o instituto do erro na execução e as questões relevantes à obediência hierárquica, na delimitação da responsabilidade penal.
4.2. DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL
O Código Penal prevê como causa de exclusão de ilicitude o estrito cumprimento de dever legal (art. 23, inciso III, 1ª parte). Esta norma, de caráter permissivo, aduz que não haverá crime quando o agente agir em cumprimento de um dever imposto por lei. Dessa forma, não constituem crime a ação do policial que prende o infrator em flagrante delito, do carrasco que executa a pena de morte, ou do bombeiro que viola domicílio para prestação de socorro, dentre outras. (BITENCOURT, 2003)
Nossa legislação não positivou o conceito desta causa de justificação como o fez em relação à legítima defesa e o estado de necessidade. Mas, do quanto estabelecido no Código Penal, aduz-se que o estrito cumprimento de um dever legal corresponde a uma causa de exclusão de antijuridicidade baseada em “norma de caráter geral”, cujo preceito impõe o dever de realizar uma ação típica, respeitando os limites legalmente disciplinados. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007, p. 124)
Observa Cláudio Brandão que:
“Não existe esta causa de justificação, portanto, quando falte uma norma de caráter geral. Se o dever de agir for imposto por uma norma de caráter particular, como aquela emanada de um superior hierárquico, não se pode falar em incidência do estrito cumprimento do dever legal, embora se possa, eventualmente, reconhecer a obediência hierárquica (art. 22 do Código Penal) para excluir a culpabilidade do agente.” (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007, p. 124)
Este entendimento também é compartilhado por Bitencourt, o qual ensina que:
“a norma da qual emana o dever tem de ser jurídica, e de caráter geral: lei, decreto, regulamento etc. […] se a norma tiver caráter particular, de cunho administrativo, poderá configurar a obediência hierárquica (art. 22, 2ª parte, do CP), mas não o dever legal.” (2003, p. 272)
Nesse diapasão, para reconhecimento dessa causa de justificação, é necessário a observância dos seguintes requisitos: existência de um dever imposto por lei em sentido amplo; o cumprimento deste dever por quem tenha competência para tal; ter o agente o animus de cumprir com o dever imposto por lei (elemento subjetivo); e que sua atuação esteja adstrita ao previsto no mandamento legal. (DOTTI, 2005)
Dos conceitos e requisitos expostos, pode-se concluir que não correspondem ao estrito cumprimento de um dever legal as obrigações de natureza social, moral ou religiosa; e que, seu cumprimento deve se dar através de atos estritamente necessários ao fim almejado pela norma, pois, ocorrendo excesso, o agente poderá ser responsabilizado civil, penal e administrativamente.
Dessa forma, considerando que a segurança pública, como dever do Estado, se traduz na preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, pode-se inferir que a ação policial que interfere e visa gerenciar um evento crítico, com vistas a restaurar a ordem pública, ocorre no estrito cumprimento de um dever legal. Mas, a questão é: poderia a execução do tiro de comprometimento, realizado durante o gerenciamento de uma crise, se dar também amparada pelo estrito cumprimento de um dever legal? Dever este, entendido na obrigação do Estado em garantir a ordem pública e a vida dos personagens envolvidos no evento?
Parece-me, todavia, que não seja esta excludente de antijuridicidade ideal a justificar a execução do tiro de comprometimento, vez que pela natureza letal da medida, seria o mesmo que admitir a possibilidade do Estado, através dos seus agentes, dispor do dever de matar, quando na verdade o dever é o de proteger.
Como exposto outrora, diferente do particular, ao qual é permitido fazer tudo que a lei não proíba, ao Estado apenas se permite fazer o que está autorizado ou determinado por lei. Assim sendo, qual a norma que determina a execução sumária de alguém pelo Estado? Mesmo considerando o destinatário um agente criminoso, não tem o Estado dever de matá-lo.
A única hipótese admitida no ordenamento pátrio, em que o Estado dispõe do dever de aplicar a pena de morte, refere-se aos casos de crimes militares cometidos em tempo de guerra, previstos no Código Penal Militar. Daí, o entendimento de que a realização do disparo de precisão com vistas a neutralizar (ou matar) o causador da crise não seja compatível com a excludente de antijuridicidade do estrito cumprimento de um dever legal. Mais se encaixa ao permissivo da legítima defesa de terceiros Contudo, pode-se considerar esta decorrente de uma ação iniciada sob o cumprimento de um dever legal – restauração da ordem pública e preservação da incolumidade física das pessoas e do patrimônio. É o caso de uma excludente dentro da outra.
Nesse sentido, ao tratar do estrito cumprimento de um dever legal, Bitencourt leciona que:
“Esta norma permissiva não autoriza, contudo, que os agentes do Estado possam, amiúde, matar ou ferir pessoas apenas porque são marginais ou estão delinqüindo ou então estão sendo legitimamente perseguidas. A própria resistência do eventual infrator autoriza essa excepcional violência oficial. Se a resistência – ilegítima – constituir-se de violência ou grave ameaça ao exercício legal da atividade de autoridades públicas, configura-se uma situação de legítima defesa, permitindo a reação dessas autoridades, desde que empreguem moderadamente os meios necessários para impedir ou repelir a agressão. Mas, repita-se, a atividade tem que ser legal e a resistência com violência tem que ser injusta, além da necessidade da presença dos demais requisitos da legítima defesa. Será uma excludente dentro de outra.” (2003, p. 272)[12]
Colha-se, por oportuno, o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, quanto ao dever ou não do uso da arma de fogo pelo agente policial, digno de transcrição:
“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – PRONÚNCIA – PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE – CIÊNCIA A NOVO PROCURADOR – PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO EM BENEFÍCIO DO RECORRENTE – REJEITA-SE – ALEGAÇÃO DE Legítima defesa E ESTRITO CUMPRIMENTO DE DEVER LEGAL – INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE USO DE FORÇA LETAL POR PARTE DO AGENTE – INDÍCIOS DE EXCESSO NA AÇÃO DO RÉU – TESE ABSOLUTÓRIA QUE DEVE SER EXAMINADA PELO TRIBUNAL DO JURI. – No Processo Penal, em matéria de prazos processuais, vigora o princípio da interpretação em benefício do recorrente, de forma a assegurar a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição. – inexiste dever legal, por parte do policial, de utilizar força letal, ainda que seja para a defesa de terceiros, tendo o agente extrapolado os limites da lei, não se configurando a excludente alegada. – Estando a prova coligida a evidenciar possível excesso na ação do réu, consubstanciado na quantidade de disparos de arma de fogo realizados, inclusive pelas costas da vítima, não há falar no acolhimento de legítima defesa nesta fase, devendo a tese defensiva ser examinada pelo tribunal do júri, juiz natural nos crimes contra a vida. – inocorrendo situação concreta de surpresa e tratando-se de policial presente no local para responder a ocorrência, não há falar na qualificadora do recurso que impossibilitou ou dificultou a defesa, impondo-se seu decote, por manifestamente contrária à prova dos autos. – recurso provido parcialmente.” (Minas Gerais. Tribunal de Justiça. Penal e Processo Penal. RSE nº 1.0024.00.045830-7/001. Rel. Beatriz Pinheiro Caíres. Julgado em 16/11/2006. Pesquisa no site do TJMG em 05.02.2009).
Isto, não significa afirmar que as medidas adotadas inicialmente, tais como o cerco realizado ao local do evento crítico e as tentativas de negociação, com objetivo de restaurar a ordem pública e prender quem se encontre em flagrante delito, sejam indiferentes às obrigações do Estado. Ao contrário, ocorrem exclusivamente no cumprimento de deveres impostos por lei. No entanto, o agente policial responsável pela execução do tiro de comprometimento, ao nosso sentir, malgrado iniciar sua ação no estrito cumprimento de dever legal, no momento em que recebe autorização para realizar o disparo e o faz, agirá amparado pela excludente de ilicitude da legítima defesa de terceiros, a ser tratada mais a frente.
4.2.1. Do conflito aparente de deveres jurídicos.
Antes de passarmos à análise da legítima defesa de terceiros, é valioso fazer alusão ao entendimento de alguns autores, os quais vislumbram, na análise do estrito cumprimento de um dever, a hipótese de casos em que o agente, na condição de garantidor, estará diante de uma colisão de deveres de igual hierarquia, e sendo assim, será necessária a escolha de salvaguardar um dos bens jurídicos em risco.
Cezar Roberto Bitencourt, ao explanar acerca da excludente de ilicitude do estado de necessidade, reconhece a possibilidade de colisão de deveres, vislumbrada quando o agente, diante da obrigação de proteger bens jurídicos alheios, tem que optar pelo cumprimento de um dever-proteção em detrimento de outro. (2003, p. 258)
O reportado autor, erige discussão curiosa, digna de transcrição:
“Entre o dever de agir e o dever de omitir-se, qual o dever que deve prevalecer? Todos têm o dever de omitir qualquer comportamento que possa lesar interesses alheios. Temos o dever de omitir uma conduta que cause a morte de alguém. Mas, por outro lado, podemos ter o dever de agir para salvaguardar uma vida humana, na condição de garantidor. Só que para salvaguardar essa vida, para cumprir a norma mandamental, o dever de agir, poderemos ter que descumprir o dever de não matar, de não agir. Enfim, para salvarmos a vida de uma pessoa poderemos ter de sacrificar a vida de outra. Das duas uma: ou cumprimos o dever de não matar, e descumprimos o dever de agir, de salvar uma vida humana, ou, ao contrário, cumprimos o dever de salvá-la, e descumprimos o comando proibitivo, matando alguém. É um grande conflito! Temos que optar por um dever ou outro. Ou matamos para salvar ou deixamos de salvar para não matar.” (BITENCOURT, 2003, p. 258 e 259).
O questionamento suscitado pelo autor, quanto ao dever de salvaguardar a vida de uma pessoa em hipótese na qual será forçoso o sacrifício de outra, vem a calhar com o conflito que vive o policial no desempenho da função de atirador de elite (sniper). Ora, por um lado, este poderá agir e realizar o disparo, desprezando a vida do causador da crise e, com isso, proteger e garantir a vida do refém. De outro, considerando o entendimento supracitado, lhe será facultado a hipótese de não matar, de não agir.
Diante da situação de conflito ora apresentada, Bitencourt conclui que, nestes casos, entre um dever de agir e um dever de omitir-se, prevalece este. Entende o autor que “se não salvar aquela pessoa garantida, na verdade, não se está fazendo nada: ela morrerá, mas não pela ação do agente, morrerá pelo não impedimento”. Ao fim, explica que a presente posição, que tem por primazia o dever de não agir, “é mais consentâneo ao Direito”. (2003, p. 259)
Ocorre que, na inteligência do art. 144 da Constituição Federal, o Estado tem o dever de provimento da segurança pública, e esta se traduz na preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, exercida através dos órgãos policiais relacionados taxativamente. Assim, em conta deste mandamento constitucional, que impõe ao Estado e seus agentes o dever de proteger, de garantir a vida e a integridade física das pessoas, como admitir a possibilidade de omissão frente a um evento crítico, em que a única chance de proteger a vida do(s) refém(ns) é desprezando a vida do causador?
Reputando que o tomador de refém é sabedor da ilicitude de seu comportamento, bem como da hipótese de reação da própria vítima ou de terceiros, assume os riscos que envolvem as ações delituosas, e coloca em perigo a própria vida. Sendo assim, particularmente, acreditamos que neste caso, tem o agente policial dever de agir sim, e se, para a solução da crise, apenas restar a utilização do tiro de comprometimento, como ultima ratio, a adoção de tal medida guarda conformidade com o Direito.
Outro tipo de posicionamento, digno de ressalva, é preconizado pelo professor Eugênio Raúl Zaffaroni. Segundo este, o conflito de deveres discutido acima jamais pode ocorrer, posto sempre haver um dever preponderante, ao qual se chega mediante um juízo de ponderação decorrente do princípio da razoabilidade. (2004, p. 523-526)
Na análise da questão, Zaffaroni e Pierangeli fundamentam a posição através de exemplos, e ao final concluem que “todas as colisões de deveres são aparentes, porque na ordem jurídica nunca há colisão de deveres de igual hierarquia. Por mais conflitiva que seja a situação, uma das condutas possíveis deve ser sempre conforme o direito”. (2004, p 526)
Destarte, pode-se declarar com firmeza que as autoridades policiais envolvidas no gerenciamento de um evento crítico (com reféns), ao decidirem pela adoção do tiro de comprometimento, não estarão diante de deveres (preservar vidas) de igual hierarquia. O conflito entre preservar a vida do refém e sacrificar a vida do causador da crise se dá de forma aparente. Ou seja, mediante uma ponderação dos deveres impostos por lei, guardando respeito aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, chega-se facilmente à conclusão de que apenas haverá uma conduta a ser adotada, no caso concreto: garantir, a priori, a vida das vítimas (reféns), mesmo em detrimento da vida do agressor.
4.3. DA EXCLUDENTE DE ILICITUDE DA LEGÍTIMA DEFESA (DE TERCEIROS).
A legítima defesa se revela uma exigência natural, um instinto de defesa, em que o agredido é conduzido a reagir a uma agressão que viola bem jurídico de sua titularidade. Trata-se de uma possibilidade jurídica de autodefesa, reconhecida em diversas legislações e existente desde as formas mais primitivas de sociedade. (BITENCOURT, 2003)
O Estado reconhece a legítima defesa no ordenamento jurídico por saber da sua natural impossibilidade de solucionar todas as violações da ordem pública, ou mesmo, proteger todos os administrados das lesões ou tentativas de lesões aos seus bens jurídicos, admitindo assim, excepcionalmente, a reação imediata a uma agressão injusta, desde que atual ou iminente, contra direito próprio ou de terceiros. (BITENCOURT, 2003)
Grosso, nesse sentido, assevera que:
“A natureza da legítima defesa é constituída pela possibilidade de reação direta do agredido em defesa de um interesse, dada a impossibilidade da intervenção tempestiva do Estado, o qual tem igualmente por fim que interesses dignos de tutela não sejam lesados.” (apud REALE JÚNIOR, 1998, p. 76)
Para Bettiol, age em conformidade com o Direito, sob uma norma permissiva, aquele que reage no intuito de proteger direito próprio ou alheio, ao qual o Estado, dada as circunstâncias do caso, não é capaz de prover a proteção devida, ou falha na prestação desta. (citado por BITENCOURT, 2003, p. 265)
De outro lado, interpretação diversa é encontrada nas lições de José Cezero Mir:
“A impossibilidade de atuação do Estado não é sequer um pressuposto ou requisito da legítima defesa. Se a agressão coloca em perigo o bem jurídico atacado, a defesa é necessária com independência de que os órgãos do Estado possam atuar ou não nesse momento de um modo eficaz. Se o particular, ao impedir ou repelir a agressão, não vai mais além do estritamente necessário e concorrem os demais requisitos da eximente, estará amparado pela mesma, ainda que um agente da autoridade houvesse podido atuar nesse mesmo momento, do mesmo modo.” (apud ROGÉRIO GRECO, 2006, p. 363)
O próprio Código Penal preocupou-se em fornecer aos operadores do direito a definição de legítima defesa, acompanhada de todos os elementos necessários ao reconhecimento desta causa de justificação. Senão vejamos:
“Art. 25. Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”
Dessa forma, não se observa dentre os elementos caracterizadores descritos na lei, a impossibilidade de atuação do Estado. Malgrado alguns doutrinadores definirem a legítima defesa utilizando-se desta argumentação, não podemos considerá-la como requisito de caracterização da legítima defesa, mas sim uma necessidade face o direito de todo cidadão não ser obrigado a suportar passivamente o sofrimento de uma agressão injusta.
Ademais, a realidade denota que os agentes estatais, como longa manus do Estado, quando no estrito cumprimento de deveres legais, podem também se valer desta causa excludente de antijuridicidade, com vistas a defender direitos próprios ou de terceiros. Então, se o agente policial representa o próprio Estado seria um equívoco afirmar que a autorização para agir em legítima defesa decorre da impossibilidade de atuação estatal.
No caso do agente policial, não obstante compor categoria profissional em que o risco faz parte da própria atividade, ninguém pode ser privado de defender a própria vida ou a de terceiros, nem mesmo o policial, a vida é um bem jurídico indisponível. E se considerarmos o dever de prestação da segurança pública, e de proteção, os policiais deverão na verdade agir em defesa de terceiros, vítimas de um injusto. Destarte, neste caso, estaria o próprio Estado, na figura dos seus agentes, utilizando-se do permissivo legal.
Então, pode-se inferir do exposto, que a legítima defesa corresponde ao direito que todos dispõem de refutar uma injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de terceiros, usando para tanto os meios necessários com a devida proporcionalidade, num único sentimento: o de defender.
No escólio de Diego-Manuel Luzón Pena (apud BITENCOURT, 2003, p. 265), a legítima defesa constitui uma causa de justificação lastreada no fundamento individual de necessidade de defesa dos bens jurídicos em face de uma agressão, e no fundamento social de defender o próprio ordenamento jurídico, que se vê contrariado ante uma agressão ilícita.
De outro modo, ao falarem sobre o fundamento deste permissivo legal, Zaffaroni e Pierangeli, afirmam que:
“Na realidade, o fundamento da legítima defesa é único, porque se baseia no princípio de que ninguém pode ser obrigado a suportar o injusto. […] O fundamento individual (defesa dos direitos e dos bens jurídicos) e o fundamento social (defesa da ordem jurídica), não podem ser encontrados simultaneamente, porque a ordem jurídica tem por objetivo a proteção dos bens jurídicos, e se, numa situação conflitiva extrema, não consegue lográ-lo, não pode recusar ao indivíduo o direito de prover a proteção dos bens por seus próprios meios.” (2004, p. 549)
Este último posicionamento parece-me mais objetivo e consegue demonstrar a verdadeira essência (fundamento) da legítima defesa. Norma permissiva, que deverá ser utilizada de forma subsidiária, pois, caso existam outros meios jurídicos e menos lesivos para provimento da defesa dos bens jurídicos ameaçados, estes deverão ser esgotados antes da reação propriamente dita. É o entendimento da legítima defesa sob o princípio da proporcionalidade.
4.3.1. Dos bens suscetíveis de defesa
Em sua origem a legítima defesa surgiu ligada aos crimes contra as pessoas, principalmente ao homicídio e lesões corporais. Contudo, ao passar do tempo, ganhou espaço e atualmente está prevista nas legislações contemporâneas de diversos países como um direito de defesa que alcança qualquer bem jurídico. (ZAFFARONI, 2004)
Ora, a própria expressão a direito seu ou de outrem, capitulada no art. 25 do Código Penal, ao nosso sentir, já abarca a possibilidade de defender legitimamente qualquer bem jurídico.
Por fim, vale ressaltar que foi o industrialismo o fator motivador para a extensão da legítima defesa a todos os bens jurídicos, mesmo daqueles não tutelados penalmente. E que o alargamento do rol de bens defensáveis também sofreu influência do poder dominante, no desejo de garantir segurança às riquezas acumuladas diante da ameaça representada pelas classes menos favorecidas. (ZAFFARONI, 2004)
4.3.2. Requisitos legais para reconhecimento da legítima defesa
Nos termos propostos na legislação penal, o reconhecimento da legítima defesa exige a presença dos seguintes requisitos: agressão injusta, atual ou iminente; direito próprio ou alheio; meios necessários usados moderadamente; e o ânimo de defender-se (elemento subjetivo).
Ao conceituar agressão, Rogério Greco se vale das lições de dois grandes tratadistas: Maurach, o qual ensina que “por agressão deve entender-se a ameaça humana de lesão de um interesse juridicamente protegido”; e Wezel, que define agressão como “a ameaça de lesão de interesses vitais juridicamente protegidos (bens jurídicos), proveniente de uma conduta humana”. (2006, p. 366)
Assim sendo, agressão não pode ser entendida como uma simples provocação. Enquanto esta é uma mera turbação, de efeitos psíquicos ou emocionais, aquela é o efetivo ataque contra os bens jurídicos de alguma pessoa.
A legítima defesa pressupõe uma agressão composta em um ataque provocado e praticado por pessoa humana. Ou seja, não incorrem em legítima defesa as reações contra ofensa de animais ou de movimentos reflexões, destituídos de vontade. Diante desses, apenas poder-se-á invocar o estado de necessidade como causa de justificação.
A lei também impõe a necessidade da agressão ser injusta. Entenda-se por agressão injusta aquela não autorizada e contrária ao Direito. Se a agressão for devidamente autorizada por lei não há que se falar na possibilidade de legítima defesa. Ademais, tal norma permissiva não precisa necessariamente estar prevista na legislação penal, poderá ser imposta por outros ramos do Direito. (GRECO, 2006)
Rogério Greco (2006, p. 367), quanto a natureza da agressão, acrescenta que “não é preciso que a conduta praticada seja criminosa para que possa ser reputada como injusta”, basta que seja contrária ao Direito (contrária à norma de direito civil ou administrativo, por exemplo).
É indispensável, ainda, que a agressão injusta seja atual ou iminente. Sendo atual, a agressão presente, que está ocorrendo; e iminente, a agressão que está prestes a acontecer. Vale lembrar que a agressão iminente não deve ser confundida com a agressão futura, enquanto esta não se sabe ao certo se ocorrerá ou não, aquela, caso não seja evitada, se concretizará. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007)
Ao tratar a respeito da atualidade e iminência da agressão injusta, Eugenio Raúl Zaffaroni observa que:
“O requisito da iminência é coerente se por tal se entende que o agressor pode levá-la a cabo quando quiser, porque é inequívoca sua vontade de fazê-lo e já dispõe dos meios para isto, mas não deve ser entendida no mero sentido de imediatismo temporal. Assim, não sabemos em que momento vai disparar quem nos aponta uma pistola e nos mantém contra um muro, mas sabemos quais são suas intenções e estamos a sua mercê, mesmo que ele nada nos diga. A situação não muda pelo fato de que demore cinco segundos ou cinco horas para disparar”. (2004, p. 552)
É justamente o que acontece numa crise em que o agente delituoso subjuga pessoas como reféns para concretização do seu intento, isto decorrente de planejamento ou por imprevisto (chegada de força policial), ou mesmo por questões pessoais e emocionais, como o último caso ocorrido no Estado de São Paulo estampado na mídia, em que um jovem utilizando-se de arma de fogo fez refém duas adolescentes no período de quase cinco dias (caso Eloá).
Assim sendo, em tais casos, nada obsta que a possibilidade de agir em legítima defesa se protraia no tempo, já que estamos diante de uma violência permanente. Pelo menos, acredita-se que enquanto o agente agressor permanecer apontando uma arma de fogo para alguém, a todo tempo afirmando de forma ameaçadora da pretensão de matar, sempre estará presente o requisito da iminência da agressão, se tal fato não já for tido como uma agressão injusta, que é o mais prudente.
Outro requisito para o reconhecimento da legítima defesa é o uso moderado dos meios necessários. Entenda-se por meio necessário, aquele que estando ao alcance do agente é totalmente hábil para repelir a injusta agressão, no momento em que a sofre. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007)
Quanto ao dever de uso moderado dos meios necessários, é pacífico na doutrina que tal requisito decorre do princípio da proporcionalidade. Ora, já é sabido que todo bem jurídico pode ser tutelado pela legítima defesa, porém é necessário haver uma ponderação de valores entre o bem juridicamente protegido e o agredido pela reação de defesa.
Na explicação dessa ponderação dos bens jurídicos, Zaffaroni propõe um exemplo interessante: na hipótese de uma pessoa paralítica, que vive numa cadeira de rodas, fazer uso de uma espingarda para defesa de seu pomar, com vistas a evitar que uma criança se apodere de uma maçã, por mais necessário que seja, uma vez que o sofredor da lesão ao patrimônio é uma pessoa impossibilitada de andar, e que apenas dispõe deste meio para defesa de sua propriedade, não será sua ação amparada pela legítima defesa. Pois, não é razoável proteger um bem patrimonial de pequeno valor em detrimento de uma vida. (2004, p. 550)
Destarte, infere-se do exposto, que é indispensável a análise e identificação da proporcionalidade entre o bem jurídico a ser atingido e o bem agredido pela reação de defesa. Interpretação que pode ser estendida à hipótese de utilização do tiro de comprometimento, na qualidade de medida extrema na solução de um evento crítico, convertendo-o num meio necessário e moderado, pois são bens jurídicos de mesmo valor em conflito, a vida dos reféns e a vida do causador da crise.
Por fim, é importante observar que quando o Direito cobra o uso moderado dos meios necessários na legítima defesa, é porque estes “devem ser empregados da maneira menos lesiva possível, isto é, apenas para repelir a agressão”. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007, p. 121)
Quanto ao titular do bem jurídico injustamente agredido, que decorre da expressão a direito seu ou de outrem (outro requisito), a legítima defesa poderá ser classificada em legítima defesa própria ou legítima defesa de terceiros. No presente trabalho a análise da defesa de terceiros ganha maior espaço, já que se traduz em um dos requisitos jurídicos para utilização do disparo de precisão.
Na legítima defesa de terceiros o entendimento é de que a lei penal estabelece a possibilidade de defesa por alguém que não seja o titular do bem jurídico que sofre a injusta agressão. É importante ressaltar que a lei não exige, para a defesa de terceiros, relação de parentesco ou afetiva entre o defensor e a vítima da agressão, qualquer um tem a faculdade e poder de, respeitando os requisitos do art. 25, realizar a defesa de bens jurídicos de outrem. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007)
Mas, qual seria o tratamento com relação aos bens jurídicos disponíveis? Seria possível a proteção através da defesa de terceiros? A doutrina majoritária entende que se for o bem, objeto da agressão injusta, um bem disponível, o agente apenas poderá defendê-lo com anuência do seu titular.
O mesmo não ocorre quando o bem jurídico a ser defendido é a vida – este, um direito indisponível. Portanto, os agentes policiais que atuam no processo de gerenciamento de crises, havendo risco de vida ou de lesão, diferente do particular que possui a faculdade de atuar ou não, serão obrigados a agir em defesa da(s) vítima(s) e no fim de restaurar a ordem pública.
Outro ponto que não se deve olvidar é que, malgrado a legislação penal autorizar a defesa de direito próprio ou de terceiros, é importante considerar, na análise das circunstâncias que envolvem o injusto, as condições da vítima e do defensor, no intuito de delinear as possibilidades de execução da defesa com respeito aos critérios do princípio da proporcionalidade.
Cezar Roberto Bitencourt, atento à exigência da defesa ser proporcional, afirma que não é necessário uma adequação perfeita e milimetrada, entre ataque e defesa, para configuração da necessidade e moderação dos meios utilizados, e nesta análise, reconhece “a dificuldade valorativa de quem se encontra emocionalmente envolvido em um conflito no qual é vítima de ataque injusto”, concluindo que “a reação ex improviso não se compatibiliza com uma detida e criteriosa valoração dos meios necessários à repulsa imediata e eficaz”. (2003, p. 268)
Tem toda razão o autor. Ao reconhecer que a exigência de uma ação defensiva bem ponderada, e criteriosa, não pode ser cobrada da vítima sem levar em conta o estado emocional de quem sofre ou está prestes a sofrer uma agressão contra si, em contrapartida, nos conduz à reflexão de que o agente defensor (por exemplo, a autoridade policial) deverá trilhar sua atuação com maior comedimento, vez que não se encontra nas mesmas circunstâncias de domínio e risco de vida ou de lesão à integridade física, como a vítima, alvo do agente agressor.
A lógica é que o indivíduo que assiste ao fato criminoso (agressão injusta) encontra-se em situação mais tranqüila para ponderar qual a medida a ser tomada em defesa da vítima. Esta sim, a depender do caso concreto, não dispõe de tempo para ponderação, e às vezes, terá de agir por instinto de sobrevivência, ou poderá até encontrar-se em situação de domínio tal que impossibilite qualquer chance de defesa.
Ademais, para admitir como legítima a defesa própria ou de terceiros, além dos requisitos de natureza objetiva já elencados, é imperioso a incidência de um requisito subjetivo, qual seja: o animus defendendi. Este elemento subjetivo é definido, por Cláudio Brandão, como: “a vontade de, com a realização da reação de defesa, defender os bens jurídicos atacados”. (2007, p. 122)
Há doutrinadores que não reconhecem a legitimidade da defesa quando esta se realiza desprovida do animus defendendi. Para ilustração, Rogério Greco explica que:
“Se o agente, percebendo que o seu maior inimigo está prestes a matar alguém e, aproveitando-se desse fato, o elimina sem que tenha a vontade de agir na defesa de terceira pessoa, mesmo que tenha salvo a vida desta última, responderá pelo delito de homicídio, porque o elemento subjetivo exigido nas causas de justificação encontrava-se ausente, ou seja, querer agir na defesa de terceira pessoa. Aqui, a agressão injusta que era praticada pelo desafeto do agente contra terceira pessoa foi uma mera desculpa para que pudesse vir a causar a sua morte, a ele não se aplicando, portanto, a causa excludente da ilicitude.” (2006, p. 376)
Em contrapartida, adotando posicionamento oposto, e rejeitando a tese da exigência do elemento subjetivo como requisito para configuração da legítima defesa, Nelson Hungria dizia que esta norma permissiva “só pode existir objetivamente, isto é, quando ocorrem, efetivamente, os seus pressupostos objetivos. Nada têm estes a ver com a opinião ou crença do agredido ou do agressor. Devem ser reconhecidos de um ponto de vista estritamente objetivo”. (apud GRECO, 2006, p. 377)
Ocorre que tal interpretação, estritamente objetiva, do instituto da legítima defesa, assim como assevera Rogério Greco, contrapondo a posição de Hungria, só era lógica à época em que vigia em nosso Direito Penal a teoria causalista da ação, ou seja, quando o injusto penal (dolo ou culpa) era analisado no juízo de culpabilidade realizado sobre quem praticou a ação, e não sobre a ação (conduta). Com o advento da teoria finalista, majoritariamente aceita, o elemento subjetivo (dolo ou culpa) passou a ser analisado na conduta do agente, no juízo de tipicidade feito sobre a ação do agente, e como a legítima defesa é um tipo de causa de exclusão de antijuridicidade que autoriza uma ação (conduta), nesta também há de incidir o elemento subjetivo, traduzido na vontade de defender-se. (GRECO, 2006, p. 376-378)
Sendo assim, não pode a autoridade que autoriza o tiro de comprometimento, ou o policial responsável pela sua execução, utilizar de força letal dessa natureza no intento exclusivo de matar o causador da crise apenas pelo fato de se tratar de um criminoso (agressor), ou mesmo de um desafeto, mas por dever legal e vontade única de defender e salvaguardar uma vida.
4.3.3. Do excesso doloso e culposo
O parágrafo único do art. 23, do Código Penal, estabelece a possibilidade de no exercício de quaisquer das causas de justificação previstas, o agente responder por excesso doloso ou culposo. Isto ocorre quando o sujeito não faz uso dos meios estritamente necessários para evitar a agressão injusta, ou quando os utiliza de forma imoderada.
O excesso na forma proposta, em outras palavras, significa ultrapassar os limites impostos pela lei. Para tanto, o agente precisa ter iniciado sua ação dentro dos requisitos legais da eximente de antijuridicidade, e no decorrer da ação vir a excedê-los. Isto ocorre, por exemplo, na legítima defesa, quando a ação desenvolvida, em resposta à injusta agressão, persiste mesmo depois de cessado a ação do agressor. (CLÁUDIO BRANDÃO, 2007)
Na legítima defesa haverá ocorrência de excesso doloso quando o sujeito no exercício de sua defesa, conscientemente, causa no agressor uma lesão maior do que a necessária para repelir o ataque. Uma vez reconhecida a incidência de excesso doloso, a ação deixa de ser amparada pela excludente de antijuridicidade da legítima defesa, e o autor responderá penalmente pelo resultado da ação excessiva. (NUCCI, 2007)
Para Bitencourt, ocorre excesso doloso quando:
“o agente, deliberadamente, aproveita-se da situação excepcional que lhe permite agir, para impor sacrifício maior do que o estritamente necessário à salvaguarda do seu direito ameaçado ou lesado. Configurado o excesso doloso, responderá o agente dolosamente pelo fato praticado, beneficiando-se somente pela atenuante do art. 65, III, letra c, ou com a minorante do art. 121, §1º, quando for o caso.” (2003, p. 254)
Desta forma, pode-se afirmar que o agente ao persistir na repulsa do ataque mesmo depois de cessada a ação do agressor, tem o ânimo de defesa, motivador inicial da sua reação, substituído pelo ânimo de matar, causando resultado morte, por exemplo. Nesta hipótese, há o reconhecimento do excesso e o agente responde por homicídio doloso consumado.
Quanto ao culposo, o excesso é decorrente da falta do dever de cuidado na repulsa da agressão, o agente acaba empregando maior violência que a necessária para garantir a defesa. Neste caso, responderá o agente culposamente pelo resultado provocado, isto quando previsto legalmente a modalidade culposa. (NUCCI, 2007)
Para Cezar Roberto Bitencourt, o excesso culposo ocorre quando “for involuntário, podendo decorrer de erro de tipo escusável, ou mesmo de erro de proibição evitável (quanto aos limites da excludente)”. E somente decorrerá de erro (avaliação equivocada por parte do agente) quando, nas circunstâncias do fato concreto, lhe era possível avaliar adequadamente. (2003, p. 254)
Por fim, o excesso punível em nosso ordenamento, seja a título de culpa ou de dolo, será derivado do uso não moderado ou desnecessário de determinado meio de defesa, que por ventura venha a causar resultado mais grave do que admitido nas circunstâncias de um caso concreto.
Conceituado o que seja excesso doloso ou culposo, pode-se concluir pela possibilidade de incidência de excesso punível ao agente policial executor do disparo de precisão, nos casos em que ultrapassar os limites impostos por lei, causando uma lesão maior do que a necessária para repelir a agressão (excesso doloso), ou quando, faltar-lhe a observância de dever de cuidado e o resultado decorrer de erro (excesso culposo).
Exemplo ilustrativo de excesso culposo no tiro de comprometimento ocorreu em São Paulo, no dia 19 de março de 1990, quando a família Caringi fora tomada como refém durante assalto em sua própria residência. Neste episódio, o atirador de elite, Cabo PM Marcos Antônio Furlan, por falta de observância de ordem técnica na escolha da munição a ser utilizada, ou mesmo pelo mau uso de uma arma de grosso calibre numa curta distância, acabou atingindo, num único disparo (e de forma isolada), a cabeça do causador da crise (Gilberto Palhares), bem como a refém (Adriana Caringi), causando a morte em ambos[13]. O excesso culposo, a nosso ver, fica configurado na morte da refém (um caso de culpa consciente).
Sendo assim, no momento em que se decide pelo uso do tiro de comprometimento como alternativa tática de solução de uma crise, além de esgotar as medidas menos lesivas aos bens jurídicos envolvidos, a vida principalmente, impõe-se ao policial que o executa, a ponderação sobre a pertinência e sucesso do disparo, sob pena de responsabilidade.
4.4. DOS EFEITOS CIVIS DAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE
Apesar de não compor o objeto principal dessa pesquisa, é necessário tecer breves comentários acerca dos efeitos civis que por ventura possam decorrer de uma ação policial lastreada nas excludentes de ilicitude apresentadas: estrito cumprimento do dever legal e legítima defesa.
O novo Código Civil prescreve a obrigação de indenizar ou de reparar àquele que, por ato ilícito, venha a causar dano a terceiros (inteligência do art. 927, CC/02).
Ademais, traz fundado no art. 186, o conceito de ato ilícito, qual seja: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Contudo, preconiza hipóteses em que, malgrado a incidência de ação voluntária do agente e a ocorrência de dano, não haverá necessariamente o dever de indenizar. É a inteligência do art. 188:
“Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;
II – a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.”
Não obstante o referido dispositivo prever expressamente apenas a legítima defesa e o estado de necessidade, a doutrina entende que a excludente do estrito cumprimento do dever legal, estar nele contido, através de uma interpretação extensiva dos atos praticados no exercício regular de um direito reconhecido. (BANDEIRA DE MELLO, 2005)
Destarte, pode-se inferir que os danos decorridos da utilização do tiro de comprometimento, quando adotado como último recurso, e na égide da legítima defesa de terceiros, não são passíveis de indenização.
4.5. DO ERRO NA EXECUÇÃO
O erro na execução ou aberratio ictus é um tipo de crime aberrante previsto em nosso ordenamento no art. 73, do Código Penal, in verbis:
“Art. 73. Quando por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.”
A primeira parte do dispositivo conceitua o erro na execução como um desvio no golpe, ou aberração no ataque. Não se confunde com o erro quanto à pessoa, em que ocorre equívoco por parte do agente, acreditando que a pessoa atingida é realmente a que se desejava atingir. (GRECO, 2006)
O erro na execução, nas palavras de Bitencourt, corresponde ao “erro no uso dos meios de execução, proveniente de acidente ou de inabilidade na execução (pode até ser hábil, mas circunstâncias alheias a sua vontade podem provocar o erro)”. Isto ocorre quando o agente deseja atingir determinada pessoa, mantendo sua conduta exclusivamente com este objetivo, contudo, por um erro num dos atos executórios, sua vontade concretiza-se em outra pessoa. (2003, p. 574)
Na inteligência do art. 73, supracitado, ocorrendo o erro na execução, o agente responde pela conduta realizada como se tivesse a praticado contra a pessoa visada, em todas as suas qualidades, dado a previsão de se aplicar a regra do art. 20, § 3º, do Código Penal, o qual prescreve:
“§ 3º O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra a quem o agente queria praticar o crime.”
Colham-se por oportuno os entendimentos do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, a seguir transcritos, quanto ao conceito e regras a serem aplicadas às hipóteses de erro na execução:
“Ocorre a aberratio ictus quando por acidente ou erro o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, devendo pois, responder pelo crime como se tivesse atingido a pessoa visada, considerando-se então as qualidades dessa pessoa para a caracterização do delito.” (TJMG, Processo nº 1.0000.00.343709-2/000(1), Rel. Reynaldo Ximenes Carneiro, Pub. em 20/09/2003)
“Não há que se falar em aberratio delicti, e sim, em erro na execução se a agente tenta contra a vida de um desafeto seu e acidentalmente acaba matando outrem. Verificada a ocorrência de aberratio ictus com unidade complexa impõe-se a aplicação da regra do concurso formal no momento da fixação da pena, e não a de crime continuado”. (TJMG, Processo nº 1.0003.01.003349-0/001(1), Rel. José Antônio Baía Borges, Pub. em 13/09/2005)
Tratando-se de um erro de pessoa para pessoa, o sujeito pode atingir apenas a pessoa não visada, bem como atingir, ao mesmo tempo, tanto a pessoa que visava ofender como um terceiro. Assim, a doutrina divide o erro na execução em: aberratio ictus de unidade simples e aberratio ictus de unidade complexa. (GRECO, 2008)
No primeiro tipo, o agente ao invés de atingir a pessoa que visava ofender, atinge pessoa diversa, produzindo assim um único resultado, por isso ser classificado como erro de execução com unidade simples. Neste caso, havendo o resultado morte de pessoa diversa da que visava atingir, responderá por um único crime, ou seja, homicídio doloso consumado, levando-se em conta as condições e qualidades da vítima que se visava ofender. (GRECO, 2008)
Já na hipótese de aberratio ictus de unidade complexa, ocorre um resultado duplo, isto é, o agente além de atingir a pessoa visada atinge também uma terceira pessoa. Exemplo prático, pode se tomar da pessoa que, além de atingir o seu desafeto, objetivo exclusivo do ataque, também atinge uma terceira pessoa. (GRECO, 2008)
Neste caso, com uma só conduta o agente incorre em dois crimes, e, diante da unidade de atividade criminosa, aplica-se a regra do concurso formal de crimes, prevista no art. 70, do Código Penal:
“Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.”
Esclarecido a diferença entre os tipos de erro na execução, pergunta-se: se um policial, ao disparar sua arma de fogo em legítima defesa própria ou de terceiros, atinge pessoa diversa da que visava (a exemplo, defendendo-se de um assaltante que reage à prisão atinge um transeunte) por erro na execução do disparo, causando-lhe a morte, qual a solução a ser adotada?
Infere-se das regras dispostas no art. 73 e art. 20, § 3º, que o policial responderá pelo fato como se tivesse atingido o assaltante, movido pela vontade de se defender.
Contudo, cabe saber, se há viabilidade entre a excludente de antijuridicidade da legítima defesa com o erro na execução. Para Rogério Greco, é perfeitamente viável. Vejamos o que diz a respeito:
“Pode ocorrer que determinado agente, almejando repelir agressão injusta, agindo com animus defendendi, acabe ferindo outra pessoa que não o seu agressor, ou mesmo a ambos (agressor e terceira pessoa). Nesse caso, tenha sido ferida ou mesmo morta outra pessoa que não o seu agressor, o resultado advindo da aberração no ataque (aberratio ictus) estará também amparado pela causa de justificação da legítima defesa, não podendo, outrossim, por ele responder criminalmente.” (2006, p. 392 e 393)
Sendo assim, na hipótese de erro na execução do tiro de comprometimento realizado por policial sniper, em que o disparo venha atingir apenas o refém (unidade simples) ou ambos, causador da crise e refém (unidade complexa), esta apenas quando decorrente de causa absolutamente independente, a nosso ver, nada obsta em analisarem-se os fatos sob a égide da causa de justificação da legítima defesa.
Contudo, na hipótese de unidade complexa, há que se considerar o disposto na 2ª parte do art. 73, do Código Penal, em que será aplicada a regra do concurso formal de crimes. Ora, quando com um único disparo (ou ação) o atirador atinge o causador da crise e o refém, ocorrem dois resultados danosos, justificando a aplicação de tal regra.
Assim, considerando que o dano provocado contra o causador da crise se dá mediante a excludente de antijuridicidade da legítima defesa de terceiros, não há que se falar em responsabilização do atirador, restando para análise apenas o resultado danoso provocado contra o refém. Neste, se verificado que o atirador persistiu em sua ação convicto de que o resultado danoso contra o refém não ocorreria, acreditando seriamente no afastamento de tal possibilidade, a conduta do atirador se configura na modalidade culposa, guiada pela culpa consciente, havendo, portanto, responsabilidade penal por crime culposo.
De outro modo, se no momento da execução do tiro de comprometimento, o policial investido da função de sniper, não se importa ou assume o risco de produzir um resultado (morte ou de lesão) diverso do previsto e aceito, será sua ação guiada pelo dolo eventual, e neste caso, não há que se falar em erro na execução. Tanto o dolo eventual como o dolo direto são incompatíveis com a aberratio ictus.
Nesse sentido, também, a doutrina e jurisprudência:
“Não se poderá, pois, conceber um comportamento doloso qualquer com respeito à pessoa atingida e não visada. Em outras palavras: a pessoa diversa não poderá estar compreendida na esfera representativa ou volitiva do sujeito agente, quer porque o art. 73 não põe a seu cargo as agravantes que respeitam a individualidade do ofendido, quer porque se trata de uma divergência entre desejado e realizado devido a um acidente ou erro no uso dos meios de execução do crime. Nem mesmo o dolo, em sua forma eventual, de menor intensidade, poderá configurar-se com atinência à pessoa diversa. Qualquer forma de dolo é incompatível com as hipóteses previstas pelo art. 73, escapando ao âmbito da aberratio ictus.” (COSTA JÚNIOR apud GRECO, 2006, p. 663 e 664)
“Ocorrendo a figura da aberratio ictus, mas com dolo eventual, em face da previsibilidade do risco de lesão com relação a terceiros, conquanto se tenha concurso formal de crimes dolosos, as penas são aplicadas cumulativamente, de conformidade com a norma do art. 70, parte final, do Código Penal.” (STF, HC 73548/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, 1ª T., P. DJ em 17/05/1996, p. 16328)
“O cometimento de uma só conduta, que acarreta em resultados diversos, um dirigido pelo dolo direto e outro pelo dolo eventual, configura a diversidade de desígnios. Precedente do STF. Hipótese em que se verifica o concurso formal imperfeito, que se caracteriza pela ocorrência de mais de um resultado, através de uma só ação, cometida com propósitos autônomos.” (STJ, REsp. 138557/DF, Rel. Min Gilson Mendes Dipp, 5ª T., P. DJ em 10/06/2002, p. 239/RT 807, p. 577).
Infere-se de todo o exposto, que na aberratio ictus é a execução que se encontra viciada, e não a vontade, devido aos atos executórios (por erro) não corresponderem ao representado pela vontade do agente. Por isso, uma vez previsto a possibilidade de atingir terceira pessoa ao repelir uma agressão injusta, e ainda assim o agente persiste na reação, assumindo o risco de produzir um resultado danoso, este estará agindo com desígnios autônomos, de se defender e de causar dano a terceiro, conduta incompatível com o instituto do erro na execução. Assim, poderá responder pelo crime de homicídio doloso consumado em face da morte de terceiro.
Por fim, visto a viabilidade da legítima defesa com a aberratio ictus, e que esta causa de justificação também exclui a ilicitude dos danos decorrentes de uma reação legítima (inteligência do art. 188, I, CC/02), bem com a possibilidade de indenização, resta-nos, para finalizar, pontuarmos como é tratado a questão da responsabilidade civil quando a ação de defesa legítima, enquadrada no erro de execução, acaba causando dano a terceiros. Para tanto, nos valemos do seguinte julgado:
“Responsabilidade Civil. Legítima Defesa. “Aberratio Ictus“. O agente que, estando em situação de legitima defesa, causa ofensa a terceiro, por erro na execução, responde pela indenização do dano, se provada no juízo cível a sua culpa. Negado esse fato pela instância ordinária, descabe condenar o réu a indenizar o dano sofrido pela vítima. Arts. 1.540 e 159 do CC. Recurso não conhecido.” (STJ, REsp 152030/DF, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., P. no DJ em 25/03/1998)
4.6. DA OBEDIÊNCIA HIERÁRQUICA E DA RESPONSABILIDADE PENAL DO TIRO DE COMPROMETIMENTO.
Tomando por base a doutrina de gerenciamento de crises, e com objetivo de melhor delimitação da responsabilidade penal dos atores envolvidos na realização do tiro de comprometimento, é importante a análise da obediência hierárquica e dos seus efeitos na hipótese de ocorrência do disparo, individualizando a conduta e responsabilidade de cada um.
O instituto da obediência hierárquica como excludente de culpabilidade encontra-se previsto no art. 22 do Código Penal, in verbis: “se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem”.
Não se deve confundir coação irresistível com a obediência hierárquica. Aquela, corresponde a uma coação moral, uma ameaça grave, que exige do agente uma ação contrária ao Direito, sem possibilidade de escolha. Nas palavras de Bitencourt, a “coação irresistível é tudo o que impressiona a vontade impondo determinado comportamento, eliminando ou reduzindo o poder de escolha”. (2003, p. 314)
Já a obediência hierárquica, como assevera Cláudio Brandão, é tida como uma causa de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta “porque, nas relações de Direito Público, o dever de obediência é uma imposição do próprio Estado”. Entende o autor que se há um dever de obediência, não existe liberdade de escolha, sendo vedado a censura do agente por ter se comportado de forma contrária ao Direito. (2007, p. 180)
No mesmo sentido, Frederico Marques leciona que, para reconhecimento desta excludente de culpabilidade, é preciso que “exista dependência funcional do executor da ordem dentro do serviço público, em relação a quem lhe ordenou a prática do ato delituoso”, condição que ocorre na hipótese do tiro de comprometimento entre o atirador de precisão e o comandante do teatro de operações. (apud ROGÉRIO GRECO, 2008, p. 99)
Fica claro que a obediência hierárquica, como causa excludente de culpabilidade, é incidente apenas nas relações de hierarquia e subordinação de Direito Público. Não se aplica às relações de Direito Privado.
No caso do agente policial que, no exercício da função de atirador de elite, receber uma ordem para o disparo, emanada de superior hierárquico competente (comandante do teatro de operações), terá sua ação amparada pela excludente de culpabilidade da estrita obediência a ordem hierárquica?
Infere-se do art. 22, segunda parte, que a estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico afasta a culpabilidade do agente em virtude de não lhe ser exigível, nessas condições, um comportamento conforme o Direito.
Segundo Rogério Greco (2008, p. 98 e 99), para que o agente possa ser beneficiado com a causa legal de exclusão da culpabilidade em comento, é imperioso a presença dos seguintes requisitos: “a) que a ordem seja proferida por superior hierárquico; b) que essa ordem não seja manifestamente ilegal; c) que o cumpridor da ordem se atenha aos limites da ordem”.
A execução do tiro de comprometimento começa na ordem para que o sniper atire e se consuma com o disparo em si. Este entendimento decorre do fato do atirador de precisão ser tolhido de escolher o momento de utilização desta alternativa tática para solução do evento crítico, cabendo exclusivamente ao comandante da crise. Contudo, este deverá, inicialmente, esgotar os meios menos lesivos disponíveis, para então, poder decidir, como medida extrema, pela realização ou não do tiro de comprometimento. Como dito no capítulo específico, somente com a ordem para que o disparo seja realizado é que o sniper poderá fazer uso de sua arma.
Como esta doutrina é permanentemente treinada, tão rigorosamente quanto possa ser numa situação real, o atirador de elite e todos os integrantes do grupo tático devem manter uma subordinação absoluta nas situações de crise. Afinal, a autoridade que detém a responsabilidade pelo desenrolar preciso da ocorrência e, para tanto, dispõem de todas as informações possíveis, na verdade, é o comandante do teatro de operações.
Apesar do atirador de elite ser o agente que cometerá a conduta típica, ou seja, matar alguém, pode-se afirmar que não é dele a autoria plena desta conduta.
Ora, entende a doutrina que “é autor o que tem domínio do fato”, e “possui domínio do fato, aquele que possui o poder de determinar se, como e quando o fato ocorrerá” (grifos nosso). Em determinados casos, pode ocorrer uma divisão de tarefas para consecução do fato, possuindo cada qual uma tarefa. É o que se chama de “domínio funcional do fato”. (PEGORARO, 2008)
Nesse diapasão, é o comandante do teatro de operações a autoridade policial competente para autorizar e determinar a realização do disparo, e será o sniper o subordinado competente para executar o tiro de precisão. Então, há que se levar em conta, que, uma vez autorizado, será o atirador que possui o domínio da execução do tiro de comprometimento, dado as questões técnicas inerentes à sua realização.
Dessa forma, é correto o entendimento de que, na verdade, ocorre uma divisão das atribuições, pois o sniper determina o quando, mas é o comandante do teatro de operações quem determina o se e como os fatos ocorrerão.
De acordo como o art. 29, do Código Penal: “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Assim, se o atirador comete a conduta típica, o comandante concorre de maneira preponderante para que o fato ocorra, pois, apenas sob ordem deste, aquele agirá.
Nesse sentido, há que ser considerado também o quanto prescrito no art. 13, do CP, in verbis: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
Ora, mesmo tendo sido o atirador, no momento do disparo, quem deu causa eficiente para o resultado morte, também houve ação por parte do comandante do teatro de operações para que o resultado ocorresse. Bruno Pegoraro (2008), ao tratar em artigo dos aspectos penais que envolvem o tiro de comprometimento, assevera que “é o comandante quem determina o se e o como o tiro será realizado, possuindo, assim, o domínio do fato”, e quanto ao sniper, defende que este, na verdade, “possui o domínio funcional do fato”, por praticar a conduta típica.
Sendo assim, em que pese a excludente de culpabilidade levantada (estrita obediência a ordem hierárquica), conclui-se que o atirador também pode ser responsabilizado. Pois, resta patente que, tanto o comandante do teatro de operações como o atirador de precisão, à luz do art. 29 do Código Penal, estarão sujeitos à responsabilidade penal.
Por fim, outro aspecto relevante no estudo da obediência hierárquica, é a discussão dos efeitos de uma ordem manifestamente ilegal para o executor do tiro de comprometimento.
Vale salientar que, em caso de cumprimento de uma ordem manifestamente ilegal, tanto o superior hierárquico quanto o subordinado são passíveis de punição. Entende a doutrina que, no cumprimento de uma ordem o subordinado pode questionar apenas a ilegalidade, ou seja, não fica a cargo do subordinado discutir a conveniência ou oportunidade desta, pois cabe à autoridade superior tal poder discricionário. Apenas deverá cumpri-la sob pena de incorrer em desobediência. (BITENCOURT, 2003)
Destarte, considerando que o tiro de comprometimento ocorre sob amparo de uma norma permissiva (legítima defesa de terceiros), não poderia o atirador de elite questionar a legalidade da ordem que autoriza e determina o disparo, vez não se tratar de ordem manifestamente ilegal.
Enfim, pontuado os aspectos penais que envolvem a execução do tiro de comprometimento, chega-se à reta final deste estudo: enquadramento jurídico dos resultados que poderão advir das hipóteses de seu emprego num evento crítico.
5. ANÁLISE DOS CASOS HIPOTÉTICOS DE UTILIZAÇÃO DO TIRO DE COMPROMETIMENTO EM FACE DO DIREITO PENAL BRASILEIRO.
A utilização do tiro de comprometimento quando adotado como medida tática de solução da crise, dado ao treinamento exaustivo e aperfeiçoamento técnico que os profissionais responsáveis por tal ofício se submetem, tende na maioria das vezes, atingir apenas o causador da crise, garantindo a vida e a integridade física do(s) refém(ns).
Todavia, em face dos inúmeros fatores que envolvem a execução do disparo, localização das pessoas envolvidas na crise, armamento e munição utilizada, distância do alvo (tomador de refém), condições climáticas, velocidade do vento e outros, vários desdobramentos ou resultados podem ocorrer quando da utilização desta medida.
Dentre os resultados de maior probabilidade de ocorrência, assinalamos seis hipóteses, em que pode se desdobrar o tiro de comprometimento, a serem enquadradas, juridicamente, tomando por base os institutos de Direito Penal discutidos no capítulo anterior.
5.1. DISPARO AUTORIZADO QUE ATINGE APENAS O CAUSADOR DA CRISE.
O primeiro caso a ser examinado trata-se do efetivo sucesso no tiro de comprometimento, isto é, quando na situação concreta se recomenda a adoção deste recurso, depois de esgotada todas as tentativas de negociação e utilização de meios não letais, no intuito de salvaguardar a vida do refém, a qual corre grave risco.
Assim, dada a ordem pelo comandante do teatro de operações, o policial responsável realiza o disparo, atingindo exclusivamente o causador do evento crítico.
Diante do fato não restam dúvidas quanto a existência de uma conduta humana e tipicidade (matar alguém, art. 121, do CP), restando-nos a análise acerca da antijuridicidade.
Como assentado pela doutrina, o fato típico é, presumivelmente, antijurídico, ou seja, contrário ao Direito, salvo quando expresso um permissivo legal, o que retira o caráter antijurídico da conduta.
Destarte, a partir da análise dos permissivos penais previstos no art. 23, do Código Penal (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito), revela-se neste caso a possibilidade de ocorrência da legítima defesa de terceiros, da forma exposta no capítulo anterior.
É que ninguém é obrigado a suportar o injusto, o que ocorre, no caso do policial, quando a este se impõe o dever de agir para cessar ou impedir o ilícito. Sendo autorizado por lei o uso de força letal quando não há outra forma de preservar os bens juridicamente tutelados.
Dessa forma, na hipótese aventada, está caracterizada a causa de justificação da legítima defesa de terceiros, afastando, portanto, a antijuridicidade da conduta.
Para tanto, deve-se apresentar a seguinte situação: utilização do disparo de precisão dentro dos parâmetros do princípio da proporcionalidade – esgotados todos os meios de negociação e não letais, estando a vida dos reféns em risco imediato ou iminente e ainda com a possibilidade concreta do sucesso do tiro de comprometimento. Atendidas tais condições, o comandante do teatro de operações emite a autorização (ou ordem) para o disparo, que é prontamente cumprida pelo atirador, havendo sucesso pleno na missão. Neste caso, o agente policial que executa o tiro de comprometimento, bem como o comandante que o autoriza, não comete crime.
Pode-se afirmar que tal permissivo legal representa um aparato jurídico necessário para a legitimação da atuação policial no desempenho de seu ofício constitucional, qual seja: garantia de segurança e da incolumidade física das pessoas e do patrimônio.
5.2. DISPARO AUTORIZADO DIRIGIDO AO CAUSADOR DA CRISE, MAS QUE ATINGE APENAS O REFÉM.
A segunda situação é a do disparo que, realizado mediante autorização e em momento adequado, dirigido ao causador do evento crítico, acaba por atingir o refém, o levando a óbito.
Se o dito disparo atingisse tão somente o alvo desejado (causador da crise), recair-se-ia no caso anteriormente estudado, em que se concluiu pela legítima defesa de terceiros. Contudo, estamos, neste outro caso, diante da possibilidade de uma falha na execução da qual resulta em erro quanto à pessoa atingida.
Feita essa constatação, veja-se o que dispõe o artigo 73, do Código Penal, em sua primeira parte:
“Art. 73. Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do artigo 20 deste Código.”
Trata-se do erro de execução, ou, como se convencionou chamar, aberratio ictus: o agente visa atingir determinada pessoa, mas, por erro, atinge pessoa diversa.
Em conseqüência, como dispõe o §3º, do art.20, do Código Penal, o agente responde como se tivesse praticado o delito contra a pessoa visada, ou seja, o causador da crise. Considerando-se assim, na aferição dos elementos caracterizadores do ilícito, as condições ou qualidades do tomador de refém, senão vejamos:
“§ 3º. O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime”.
Desse modo, embora o disparo tenha atingido o refém, por questão de ficção jurídica, devidamente expressa em lei, considera-se, para fins penais, como se o tiro tivesse acertado o causador do evento crítico, isto é, as condições e qualidades deste último é que serão consideradas. Ou seja, a ação do atirador de elite estará amparada pela excludente da legítima defesa de terceiros, que, como dito no capítulo anterior, é perfeitamente viável aos casos de erro na execução.
Nesse sentido, é o que recomenda a jurisprudência pátria:
“Se o agente estava procedendo em legítima defesa e houve erro na execução, nem por isso deixa a justificativa invocada de ser admissível, se comprovada. Em relação ao terceiro atingido terá havido mero acidente ou erronia no uso dos meios de execução. E quem diz acidentalidade diz causa independente da vontade do agente” (MARREY apud FRANCO et al., 2001, p. 1370).
Parece-nos, inclusive, que tal raciocínio seria também aplicável ao comandante do teatro de operações que emanou a ordem para o tiro, posto que amparado também pelo objetivo final de salvaguardar a vida do refém.
E, nesse ponto, há de se alertar a referência aqui apenas ao âmbito penal, persistindo a possibilidade de apuração da conduta nas demais esferas de responsabilização, civil ou administrativa, de acordo com as normas jurídicas aplicáveis. Nesse sentido é o entendimento do STJ, como já demonstrado anteriormente:
“Responsabilidade Civil. Legitima Defesa. “Aberratio Ictus“. O agente que, estando em situação de legitima defesa, causa ofensa a terceiro, por erro na execução, responde pela indenização do dano, se provada no juízo cível a sua culpa. Negado esse fato pela instância ordinária, descabe condenar o réu a indenizar o dano sofrido pela vítima. Arts. 1.540 e 159 do CC. Recurso não conhecido.” (STJ, REsp 152030/DF, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª T., P. no DJ em 25/03/1998)
Destarte, ainda que reconhecida a excludente de ilicitude na esfera penal, pela relativa independência, pode ser pleiteado direito à reparação cível decorrente do dano provocado por culpa.
5.3. DISPARO AUTORIZADO DIRIGIDO AO CAUSADOR DA CRISE, QUE ATINGE O CAUSADOR E O REFÉM.
Nesse momento, colocamos a possibilidade do disparo devidamente autorizado, realizado em momento oportuno, atingir, além do causador do evento crítico, a vítima.
Referida situação parece se encaixar perfeitamente na previsão estabelecida na última parte do art. 73, do Código Penal:
“Art. 73. […] No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do artigo 70 deste Código.”
Há de se aplicar ao caso, portanto, a regra do concurso formal (art.70, do Código Penal), o que se justifica por ter havido uma só conduta, causando mais de um resultado.
Sendo os dois resultados morte, poder-se-ia concluir pela ocorrência de dois homicídios. Contudo, como já examinado, a conduta do atirador se dá em legítima defesa de outrem, afastada, de plano, a responsabilidade pela morte do causador da crise.
E, quanto ao refém atingido, a conduta também estaria abrangida pela excludente da legítima defesa de terceiros?
Entendemos que não haveria como ampliar a norma de extensão a ponto de abranger o refém atingido, em virtude do excesso cometido pelo agente, vez que extrapolou o campo de sua atuação, ainda que não tenha desejado tal fato.
Como não queria esse resultado nem lhe foi aceitado como possível, vez que acreditava realmente que não fosse ocorrer, estaremos diante da figura da culpa consciente, somente respondendo o atirador pelo crime na modalidade culposa.
Como disposto no parágrafo único do art. 23, do Código Penal, “o agente, em qualquer das hipóteses desse artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”
No caso de a vítima ter ido a óbito, ou apenas ter sido lesionada, há previsão no CP, nos artigos 121, §3º e 129, §6º, do homicídio culposo e da lesão corporal culposa, respectivamente, pelas quais deve o agente responder de acordo com o resultado. Sendo que, no termo agente inclui-se aqui apenas o material, ou seja, o que possui o domínio funcional do fato: o atirador de elite. Pois, quanto ao comandante do teatro de operações, este não poderia ser responsabilizado por um erro que se deu tão somente na fase executória, por erro de cálculo do atirador; o que lhe competia, a decisão que autoriza o disparo de precisão, fora tomada dentro dos parâmetros legais, justificando sua exclusão da responsabilidade penal nesta situação hipotética.
O mencionado excesso e responsabilização por crime culposo podem decorrer de imprudência ou negligência do atirador, por não ter atirado com a precisão necessária, ou mesmo por ter deixado de observar algum fator previsível que poderia ter percebido (como o tipo de munição a ser utilizada, a existência de obstáculos possíveis de mudar a trajetória do projétil, a velocidade do vento), dado o treinamento que possui.
Há, todavia, de ser um fato previsível, pois se a morte da vítima decorre de causa absolutamente independente, não há como determinar o resultado ao atirador. É o caso de falha oriunda de circunstâncias adversas que não dizem diretamente com os executores da ação, não podendo haver responsabilização.
Primeiramente, deverá ser perquirido se houve falha humana ou provocada por um fator externo. Constatada a existência de erro, há ainda de se examinar se o erro foi escusável ou inescusável, o que influirá na responsabilização dos agentes.
Em uma dada situação pode ocorrer, como dito, da falha derivar de uma circunstância desconhecida pelo agente e sem possibilidade de previsão por este, como se verificaria quando um objeto metálico, uma moeda, por exemplo, no bolso do alvo (causador do evento crítico) gerasse o ricochete do projétil e este viesse a atingir a vítima.
Parece fácil, neste caso, a conclusão de que o agente não responderia pelo resultado morte ou lesão da vítima, vez que a causa foi absolutamente independente de sua vontade.
Portanto, deve se ter muita cautela no exame das situações que se apresentem, a fim de se determinar a existência ou não de culpa dos agentes, em razão da invencibilidade do erro. O disparo de precisão trata de ação policial dependente da utilização de equipamentos especiais e treinamento diferenciado, aplicados em situações de crise, devendo sua conduta ser avaliada circunstanciadamente em relação à utilização do meio adequado e da moderação no seu emprego, levando-se em consideração até mesmo fatores naturais externos, como velocidade do vento e superveniência de um obstáculo.
Sendo assim, conclui-se que na hipótese aventada não há crime com relação ao dano causado ao criador da crise, ao passo que, quanto ao dano causado à vítima (refém), deve o atirador de elite ser responsabilizado culposamente pelo evento, quando presente a culpa consciente, caso contrário, se o dano advier de causa absolutamente independente, carecerá de fundamentação para responsabilidade penal do agente. Ademais, convém ainda esclarecer que, provada a culpa, nesse caso também poderá haver a responsabilização administrativa e civil.
5.4. DISPARO OCORRIDO EM MOMENTO INADEQUADO (NÃO OPORTUNO).
Uma outra possibilidade aventada diz respeito à realização do tiro de comprometimento em momento não adequado.
Encontrando-se o gerenciador da crise na posição de garante, cabe a este examinar o momento adequado e oportuno para a utilização do tiro de comprometimento.
Deve-se, antes da tomada de decisão, examinar as circunstâncias do caso concreto e as conseqüências que podem advir, bem como da real e efetiva necessidade do uso de força letal.
Via de regra, o momento que se mostra mais adequado para adoção do tiro de comprometimento, em razão do risco real ou iminente de vida e integridade física do refém, e sob os parâmetros do princípio da proporcionalidade, ocorre após ter esgotado todas as possibilidades de utilização dos meios menos lesivos, ou seja, as negociações já não surtem mais efeito e resta desacredita a solução da crise sem desfecho letal.
Isto, quando não iniciado o processo de violência real do agressor contra a vítima, hipótese em que será suspensa qualquer negociação e dar-se-á início, imediatamente, à intervenção tática (através de grupo tático de assalto ou mesmo o tiro de comprometimento, a depender das circunstâncias) com vistas a neutralizar a ação agressiva.
De outro modo, o comandante do teatro de operações poderá antecipar a execução do tiro de comprometimento, havendo ainda outros recursos que poderiam ser utilizados, seja por ter perdido o momento oportuno, ou por ter examinado mal o ambiente de crise, sem que as condições justificadoras de tal medida estejam satisfeitas. Neste caso, poderá se configurar o excesso na conduta adotada, vez que lhe faltou a moderação na escolha dos meios necessários disponíveis para solução do evento crítico, respondendo assim a autoridade que determina a execução do disparo.
Vale lembrar, que neste caso será responsabilizado apenas o autor intelectual, ou seja, o comandante do teatro de operações. Pois, é esta a autoridade que, de forma imoderada, decide pelo uso de força letal (o tiro de comprometimento) em momento que ainda era possível uma solução menos lesiva, ferindo assim o princípio da proporcionalidade. Enfim, isto ocorre porque a não observância da moderação poderá descaracterizar a legítima defesa, incorrendo assim em excesso punível nos moldes do parágrafo único do art. 23, do CP, e respondendo por crime doloso.
Pode ainda ocorrer, em outra situação, que na realidade não exista absoluto perigo à vida do refém, mas as autoridades envolvidas no processo de gerenciamento da crise supõem que efetivamente exista, gerando uma situação de legítima defesa (de terceiros) putativa, conforme se depreende da leitura do art. 20, § 1º, do Código Penal:
“§ 1º. É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.”
Nesse caso, sendo o erro justificável, ou seja, que poderia ocorrer com qualquer pessoa devido à situação apresentada, não haverá apenação dos agentes, mas se houver culpa na apreciação do fato, responderão pelo crime na modalidade culposa, se previsto em lei.
Nas palavras de Bruno Pegoraro (2008):
“Veja-se a seguinte situação: o causador do evento crítico ameaça, veementemente, desferir tiros contra o refém, restando inviabilizada a utilização de métodos não letais.
Autorizado, o disparo é realizado com sucesso.
Depois disso, ao analisar o local, percebe-se que o causador do evento crítico portava, em verdade, uma arma de brinquedo, com aparência muito assemelhada das armas reais.
Ora, o erro é plenamente justificável, sendo que não era possível, antes do tiro de comprometimento, a verificação do real potencial ofensivo da arma portada pelo causador do evento crítico.
Supunha o comandante, bem como o atirador, tratar-se de uma arma real, havendo, pois, risco iminente à pessoa do refém.
Aplicar-se-ia, portanto, no presente caso, a primeira hipótese delineada, devidamente combinada com o contido no artigo 20, § 1º, do Código Penal, supra transcrito.
Se a apreciação equivocada deste momento oportuno ocorrer por culpa, responderão, tanto o comandante como autor do disparo, pelo crime de homicídio culposo.
A situação é curiosa, isso porque, embora o crime seja doloso, será a responsabilização como se culposo fosse.”
Destarte, se o comandante supõe a existência de risco real ou iminente ao refém, e por não haver, como na situação apresentada, meios para que este deduza ser a arma de brinquedo (temor da vítima, distância do fato, dentre outros), justificada se mostra a utilização do meio mais gravoso para solucionar a ocorrência, quando esgotado os meios menos lesivos.
Retomando a possibilidade inicial, disparo em momento inadequado, sem existência de descriminante putativa já examinada, tendo o comandante ou o atirador decidido agir em momento que se mostrou inoportuno, resta-nos analisar a hipótese do atirador de elite agir isoladamente, isto é, sem autorização para realização do disparo, e quando ainda havia medidas menos lesivas a serem esgotadas, ou mesmo quando o processo de negociação surtia efeito (momento inoportuno para uso de força letal).
Aqui, o sniper policial assume inteiramente os resultados advindos de sua ação, vez que não autorizada e, pior, ocorrida em momento inoportuno, portanto, com possibilidade de configuração da desproporcionalidade no uso dos meios, e responder assim por excesso doloso ou culposo. Isto, considerando o atirador de elite inserido no contexto de um grupo especial, em que cada um desenvolve funções previamente delimitadas no processo de gerenciamento de crises.
Enfim, é importante atentar que a discussão nesse tópico se refere ao momento de utilização da força letal, de forma a analisar a proporcionalidade e moderação no uso dos meios disponíveis ao efetivo policial, especializado, para solução de um evento crítico. Caso a decisão não atenda ao requisito da moderação no uso dos meios, aí sim, poderá falar-se em responsabilização penal dos envolvidos. Contudo, não excluímos a possibilidade de reconhecimento da eximente de ilicitude da legítima defesa de terceiros, haja vista a violência do causador da crise contra o refém ser real, justificando a medida. Em outras palavras, para que a responsabilização penal por excesso se configure, a ponto de justificar a apenação dos envolvidos, é necessário que haja prova cabal da imoderação no uso dos meios necessários, pois, na dúvida, com base nos princípios da intervenção mínima e do in dubio pro réu, do Direito Penal, há que se reconhecer a excludente em questão, excluindo a responsabilidade penal dos agentes.
5.5. DISPARO NÃO AUTORIZADO.
Examinaremos neste tópico a eventualidade de o atirador realizar o disparo sem ter existido a ordem superior (do comandante) para tanto, bem como as conseqüências advindas.
Ora, como já explicitado em diversos momentos ao longo deste trabalho, quem possui a prerrogativa de autorizar a realização do tiro de comprometimento é o comandante do teatro de operações, devendo o atirador aguardar tal ordem, para assim, executar o disparo de precisão.
E se ocorrer de o atirador se antecipar, agindo por iniciativa própria, sem autorização do comandante, quando entender que o momento é o oportuno para a realização do disparo?
Estará agindo sozinho e, consequentemente, assumindo a responsabilidade total por sua ação. Pegoraro (2008) entende que há, nesse caso, irremediavelmente, prática de homicídio. Não havendo como acobertá-lo juridicamente, vez que não estaria no cumprimento de seu dever, pois não haveria ordem a ser cumprida. Afirma o autor que: “não é dado ao atirador realizar esta apreciação, de modo que incorrerá, irremediavelmente, no crime de homicídio”.
É possível, até mesmo, que o atirador esteja com a razão, mas, naquele momento, não lhe é permitida esta análise, pouco importando, a partir daí, se possui ou não razão no que verificou. Esta é a hipótese de o sniper atirar sem que tenha recebido a ordem, quer por entender que está em um momento oportuno, quer por vislumbrar um risco iminente ao refém e os requisitos para agir em legítima defesa de terceiros.
No mesmo sentido, Marcelo Veigantes (2008):
“Neste caso, como é o comandante da operação quem detém o poder de determinar se, quaisquer dos meios à disposição no teatro de operações, serão empregados, é óbvio que o atirador, agindo por conta própria, além do homicídio doloso, pratica também, no caso de ser policial militar, o crime de insubordinação previsto pela legislação castrense no artigo 163 do Código Penal Militar; ou no caso de atirador civil, o crime de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal.
É caso de quebra de subordinação hierárquica, que implica em perda do controle sobre as ações que se desenrolam sobre o teatro de operações, excluindo a responsabilização do comandante pela absoluta falta de vinculação com a autoria do disparo.”
Pedimos vênia aos citados estudiosos para discordar de tal posicionamento. Embora não esteja no estrito cumprimento do dever legal, isso não impede o reconhecimento da legítima defesa de terceiro em sua atuação, como defendemos ao longo desse trabalho.
Nessa dada hipótese ora apresentada a distinção está na autoria do tiro de comprometimento. Aqui autorias intelectual e material se confundem na figura de uma só pessoa: o atirador. Mas a ação ainda estará dirigida ao fim de salvaguardar a integridade física e a vida de uma vítima de agressão injusta, seja atual ou iminente, com o claro propósito de agir em defesa de outrem.
Destarte, particularmente, acredita-se que a discussão gira em torno da moderação e necessidade do uso de força letal. Caberá apurar se o disparo ocorreu quando ainda restavam outras medidas menos lesivas, por exemplo, durante um processo de negociação que demonstrava surtir efeito, em que a ameaça contra o refém encontrava-se ainda em estado latente, controlada, sem sinais de violência física real. Aqui sim, será hipótese de responsabilização tão somente do atirador por homicídio doloso, pois agiu isoladamente e por iniciativa própria, de forma não moderada e desnecessária.
Caso contrário, agindo moderadamente e utilizando a arma de fogo como meio necessário para a defesa do refém, no âmbito penal, não será responsabilizado o agente em razão da configuração de descriminante legal, ressalvadas as implicações civis e administrativas de sua conduta, principalmente, quanto à administrativa, pelo descumprimento de ordem superior e da doutrina que rege o processo de gerenciamento de crises e do tiro de comprometimento no âmbito policial.
5.6. DISPARO DIRIGIDO AO CAUSADOR DO EVENTO CRÍTICO, QUE NÃO O ATINGE, MAS QUE PROVOCA REAÇÃO IMEDIATA CONTRA A VÍTIMA.
A situação que se coloca nesse ponto é a do atirador que não atinge o alvo (causador da crise), mas provoca, com o tiro, a reação imediata deste em direção à vítima, a qual vem a óbito.
O atirador não matou nem o agressor, nem a vítima, mas acabou influenciando na ação do causador da crise que imediatamente após seu disparo, mata o refém.
A priori, parece que não há como excluir a conclusão lógica de que o atirador causou a morte da vítima, isto, pela teoria da equivalência das condições, em que se faz um juízo hipotético de supressão e se determina o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado.
Contudo, essa causa (a ação do atirador de elite), na forma aventada, seria relevante no âmbito penal?
Segundo parte da doutrina, em situações como esta não haveria o vínculo subjetivo do agente porque não houve a previsibilidade do resultado, nem mesmo a possibilidade deste, pois o atirador não tinha como prever que erraria, e que, ao errar, geraria a reação imediata do agressor.
Nesse ponto, salutar transcrever a lição do ilustre doutrinador Cezar Roberto Bitencourt:
“Toda conduta que não for orientada pelo dolo ou pela culpa estará na seara do acidental, do fortuito ou da força maior, onde não poderá configurar crime.
Com a consagração da teoria finalista da ação, situando o dolo ou, quando for o caso, a culpa, no tipo penal, já se estabelece um primeiro limite à teoria da equivalência das condições. Ora, segundo essa orientação, pode ser que alguém dê causa a um resultado, mas sem agir com dolo ou com culpa. E fora do dolo ou da culpa entramos na órbita do acidental, portanto, fora dos limites do Direito Penal. Com efeito, uma pessoa pode ter dado causa a determinado resultado, e não ser possível imputar-se-lhe a responsabilidade por esse fato, por não ter agido nem dolosa nem culposamente, isto é, não ter agido tipicamente. Essa atividade permanece fora da esfera do Direito Penal, sendo impossível imputá-la a alguém pela falta de dolo ou culpa, constituindo a primeira limitação à teoria da conditio sine qua non.” (2003, p. 183).
Há doutrinadores, como Rogério Greco, entretanto, que interpretam o art. 13, do Código Penal, da seguinte forma:
“Para que possamos falar em causa, como vimos, é preciso que, de acordo com o processo hipotético de Thyrén, o fato suprimido mentalmente modifique o resultado. Mas a segunda parte da redação do caput do art. 13 do Código penal diz: considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Será, assim, que somente se considera como causa aquela que na realidade do caso concreto modifica efetivamente o resultado?
A título de raciocínio, suponhamos que determinado agente venha caminhando pela estrada e comece a ouvir gritos de socorro. Aproxima-se do local de onde vêm os gritos e, para sua surpresa, encontra, num precipício, abraçado a um finíssimo galho de árvore, prestes a se romper, o seu maior inimigo. Como não havia mais ninguém por perto, o agente, aproveitando aquela oportunidade, sacode levemente a árvore fazendo com que a vítima caia no despenhadeiro e venha a falecer. Mesmo que o agente não tivesse sacudido a árvore, a vítima, da maneira como colocado o problema, não teria salvação. O galho já estava se rompendo quando o processo foi agilizado pelo agente. Daí, perguntamos: Mesmo que o agente não tivesse balançado a árvore, o resultado teria ocorrido? Sim, porque o galho se romperia de qualquer forma. Mas o resultado teria ocorrido como ocorreu? Não, porque o agente interferiu no acontecimento dos fatos, e, mesmo que o resultado, de qualquer forma, não pudesse ser modificado, parte dele foi alterada. Aqui, o agente antecipou a morte da vítima sacudindo o galho onde esta se encontrava agarrada. Deve, portanto, responder pelo resultado a que deu causa, ou seja, pelo delito de homicídio.
O agente – concluindo – não deve, como vimos, interferir na cadeia causal, sob pena de responder pelo resultado, mesmo que este, sem a sua colaboração, fosse considerado inevitável.
Então, devemos acrescentar a expressão como ocorreu na redação final do caput do art. 13 do Código Penal, ficando, agora, assim entendido: “Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, como ocorreu”.
Partilhamos desse entendimento, em razão de que na situação ora examinada, havia um risco pré-existente que deveria ter sido analisado pelo atirador, que, com sua conduta, acabou aumentando o risco a que estava exposta a vítima, influenciando consideravelmente na ação do agressor.
Por tal razão, não há como excluir a responsabilidade penal do atirador, recaindo sua conduta de forma culposa ou dolosa a depender do liame psicológico que o ligou ao fato: se ele confiou que sua conduta não influenciaria o agente porque acertaria o alvo (o que parece mais aplicável ao caso), responde culposamente, ou se assumiu o risco de produzir o resultado (dolo eventual), responde por homicídio na modalidade dolosa.
Esta análise é razoável se considerarmos as condições que envolvem a função do atirador de elite, seja o treinamento e especialização que se submete o policial encarregado desse ofício, ou os equipamentos colocados à sua disposição (fuzis de precisão equipados com luneta óptica de grande resolução), havendo assim que se ter a certeza da eficiência do disparo.
Mesma interpretação não pode ser dispensada ao agente policial desprovido de tal suporte que, diante de uma situação de flagrante ou iminência agressão injusta, decida agir em defesa de terceiro, ocorrendo ao fim a hipótese discutida. Neste caso, seria mais razoável a aplicação do entendimento exposto por Bitencourt, ou seja, por se tratar de acidente, não sendo possível a identificação de dolo ou culpa na conduta, o fato permaneceria fora do âmbito do Direito Penal.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
A presente pesquisa teve por finalidade analisar juridicamente, em sede de Direito Penal, os aspectos que envolvem o tiro de comprometimento realizado pelo atirador de elite como medida de solução de um evento crítico durante seu processo de gerenciamento por parte da Polícia (órgão público competente), levantando os resultados hipotéticos possíveis de sua utilização e sugerindo o tratamento jurídico que pode ser dispensado a cada um dos casos apresentados.
Ao se falar em Polícia como órgão competente para o gerenciamento de uma crise, é porque resta fundamentado desde o início do trabalho a sua necessidade e importância para o Estado e a sociedade.
Não há como idealizar a convivência social, humana, sem uma força pública que transmita uma mínima sensação de segurança. O ser humano, como ser social que é, necessita da segurança jurídica para manutenção de suas relações na sociedade. É preciso que o Estado Democrático de Direito garanta esta sensação de ordem, e faz isto através das leis, as quais dispõem de um caráter de proteção-coerção traduzido na possibilidade de intervenção do Poder Público na manutenção da ordem social.
E como firmado, inicialmente, não poderia o Estado exercer esta espécie de controle sem uma força policial. Força esta legitimada pelo povo, pela soberania popular, que prover aos representantes eleitos o poder de criação das leis e normas limitadoras dos direitos e liberdades individuais, garantindo a supremacia do interesse coletivo e a convivência social harmônica.
Assim, chegou-se a uma exposição constitucional da importância da segurança pública, como direito fundamental devidamente positivado, sendo dever do Estado o exercício da preservação e proteção da ordem pública e da incolumidade física das pessoas e do patrimônio, através dos órgãos policiais taxativamente relacionados no art. 144, da nossa Carta Magna. Sem excluir, logicamente, a responsabilidade que todos os cidadãos também possuem nesse desiderato.
Tratado a respeito do poder de polícia da Administração Pública e das atividades de polícia administrativa, facilmente se chegou às funções e responsabilidades das Polícias de Segurança e Polícias Judiciárias, não restando dúvidas quanto à competência do poder estatal no gerenciamento de uma crise com o fim de restaurar a ordem pública. Isto ocorrendo no exercício do poder de polícia da Polícia de Segurança (ostensiva), responsável diretamente pela manutenção da ordem. Não se exclui, é claro, a possibilidade de intervenção da Polícia Judiciária, que malgrado possuir função investigativa, também poderá auxiliar na resolução de um evento crítico.
Nesse diapasão, cumpre ressaltar que somente o Estado pode exercer a função de garante na resolução de uma crise, através de agentes policiais devidamente capacitados e especializados em atendimento de ocorrências não rotineiras, com alto risco de vida para os envolvidos, principalmente em situações em que hajam pessoas tomadas como reféns.
Conclui-se logicamente pela carência de respaldo jurídico, por exemplo, de religiosos, advogados, parentes das vítimas, particulares de uma forma geral, que se aventuram na função de negociadores, acreditando que podem chegar a uma solução aceitável. Um questionamento é fundamental: de quem seria a responsabilidade por um fim danoso da crise (morte dos reféns)? O particular que se aventura na função de negociador, ou o Estado que possui a obrigação de restaurar a ordem pública e garantir a incolumidade física das pessoas e do patrimônio?
Não restam dúvidas que a responsabilidade é do Estado. Então, as funções ligadas diretamente ao gerenciamento de uma crise não podem ser desenvolvidas por particulares, é de competência da Força Policial.
Como princípios norteadores da atividade de polícia foram apresentados os da dignidade da pessoa humana, legalidade, proporcionalidade e, como destaque e decorrente deste último, o princípio do uso progressivo da força. Princípio de fundamental importância no escalonamento das medidas a serem adotadas no gerenciamento de um evento crítico, a impor, por fundamentação constitucional e penal, a necessidade de esgotar os meios menos lesivos antes de decidir pela adoção de força letal na defesa de direitos de terceiros (reféns).
Aqui se chega a um ponto importante da pesquisa: a adoção do tiro de comprometimento na resolução de um evento crítico, com vistas a salvaguardar a vida do refém, mesmo em detrimento da vida do causador da crise. E para legalidade desta medida, concluiu-se pela necessidade de perseguir os elementos do princípio da proporcionalidade (pertinência, necessidade e proporcionalidade estricto sensu), bem como preenchimento dos requisitos da excludente de antijuridicidade da legítima defesa (de terceiros), aduzindo em ser o disparo de precisão uma medida extrema, adotada como ultima ratio, na solução de uma crise.
No tratamento da legítima defesa, chega-se a uma análise sob a ótica do defensor, o qual, por não ser o alvo direto da agressão, possui comodidade na escolha das medidas a serem tomadas, e assim, lhe é exigido maior ponderação na consecução dos meios necessários e disponíveis, para não que torne a ação de defesa uma ação imoderada ou desproporcional.
Esta é a função importantíssima desenvolvida pelo comandante do teatro de operações, e subsidiariamente, pelo atirador de elite, seu subordinado, os quais iniciam suas ações no estrito cumprimento de um dever legal de restauração da ordem pública e prisão dos infratores ou infrator, e ao adotarem o tiro de comprometimento como última medida, o realizam lastreado no permissivo legal da legítima defesa de terceiros, como decorrente do cumprimento de um dever imposto por lei. É o caso, como visto, de uma excludente dentro da outra.
Na análise dos aspectos penais, ainda ficou patenteado a discussão acerca do conflito de deveres que se apresenta ao comandante do teatro de operações e ao atirador de elite, quando, para exercer a função de garantidor e protetor do bem jurídico da vida do refém, é necessário desconsiderar uma outra vida (a do causador da crise), é o dilema de causar a morte de um para salvaguardar a vida de outro.
Nesta análise, malgrado verificar-se que em nosso ordenamento não há imposição do dever de matar, foi possível chegar a uma solução razoável da questão, pactuando com o entendimento de que o conflito de deveres ou de bens suscitado não passa de um conflito aparente, pois sempre haverá um dever preponderante sobre outro, que ao fim guardará conformidade com o Direito.
É o que ocorre no caso concreto: mais importante se torna garantir a vida das vítimas da ação agressiva e injusta, pois o causador da crise ao decidir trilhar uma ação delituosa sabia do risco que corria, colocou em risco a própria vida, e assim não seria justo permitir a vitimização de terceiros em prol de um intento contrário ao Direito.
Do estudo dispensado à legítima defesa, infere-se, como sua essência e fundamento, o fato de que ninguém é obrigado a suportar uma agressão injusta, seja contra si ou contra terceiros, sendo conferido pela ordem normativa o direito de autodefesa através do uso moderado dos meios necessários. E neste rol de pessoas, também se inserem os agentes policiais. Ora, apesar de comporem uma categoria profissional em que o risco faz parte da própria atividade, não são obrigados a atuarem passivamente quando vítimas de uma agressão injusta, ou mesmo assistirem um terceiro ser vítima de ação agressiva e contrária ao Direito, principalmente quando está em jogo o bem jurídico da vida, bem indisponível, e, por isso, digno de ser defendido mesmo com uso de força letal.
Outro ponto também aventado e de importância crucial para configuração da legítima defesa no uso do tiro de comprometimento, é a conclusão de que a ação agressiva promovida pelo causador da crise ao longo do evento se protrai no tempo, sem perder sua atualidade e iminência. Pode concluir que se trata de uma violência permanente, não havendo espaço para suposição de um tempo limite a ser aplicado a qualquer evento crítico. Cada um possui características peculiares, podendo a violência durar horas, ou mesmo dias. Enfim, o importante é a identificação da iminência e atualidade na ação agressiva, com risco real de lesão ao refém e esgotadas outras formas menos lesivas de resolução da crise, para que se possa adotar o disparo de precisão dentro dos ditames legais.
Assim sendo, vale registrar cada crise é única, e carece de gerenciamento único, empregando soluções únicas, não havendo como prever sua durabilidade. “E é óbvio que quanto mais tempo perdurar uma crise, melhor será a estrutura do teatro de operações para enfrentá-la” (VEIGANTES, 2008).
Pode-se concluir de todo o estudo apresentado, que um evento crítico, dado suas características, alto risco de vida dos envolvidos, deve ser encarado com profissionalismo e seriedade pelo aparato policial, fomentando-se estudos e treinamentos constantes, com o fim de que a legalidade e proporcionalidade sejam identificados facilmente durante toda a evolução da ocorrência policial de gerenciamento de crises. Conclusão que pode e deve ser estendida a qualquer ação policial, não apenas às tratadas neste trabalho.
É percebido também a necessidade de desenvolvimento de uma doutrina jurídica a ser seguida pelas forças policiais acerca das especificidades do gerenciamento de crises, visto a carência de posicionamentos jurídicos acerca do uso do tiro de comprometimento na doutrina policial, e que as condutas do comandante e do atirador de elite, bem como de todos imbuídos na solução de uma crise, não são conduzidas pelo mesmo dolo do autor de uma ação criminosa – tratam-se de condutas movidas pelo sentimento único de cumprimento do dever e de defesa de terceiros.
Ademais, há que se ressaltar os objetivos maiores do gerenciamento de crises: preservação de vidas e cumprimento da lei. Dessa forma, no tiro de comprometimento, o policial age movido pelo ânimo de defender e garantir a vida do refém, acobertado pela excludente da legítima defesa de terceiro. Existe o dolo, mas este se traduz na intenção de eliminar a ação agressiva, neutralizando o agente agressor do evento crítico, e com o fim último de garantir a vida do refém, bem como a segurança social.
Assim, o combustível que os move é o cumprimento da lei, daí a importância do estudo e a conclusão de que a adoção do tiro de comprometimento, nos moldes apresentados, é possível e autorizado juridicamente.
E aproveita-se o momento para afirmar ainda que não apenas o tiro executado pelo atirador de elite deve ser um disparo de comprometimento, imbuído no acerto e realizado com eficiência e responsabilidade com objetivo único de defesa própria ou de terceiros, mas todo e qualquer uso de força letal (arma de fogo) por parte dos agentes policiais em geral, seja no atendimento de ocorrências extraordinárias (situações de crise com reféns) ou convencionais (de rotina). Os policiais, como agentes da força pública, devem atentar para o respeito dos princípios e requisitos legais que justificam o uso da arma de fogo, sob pena de trilharem pelo caminho do arbitrário e ilegal. O uso real da arma de fogo em si deve, em qualquer hipótese, ser tida como último recurso.
O presente estudo cuida-se de uma oportunidade de trazer para o meio acadêmico a discussão sobre alguns aspectos jurídicos e penais específicos e afeitos à atividade policial de gerenciamento de crises, muitas vezes explorados tão somente de forma empírica pelos elementos midiáticos com o fim maior de comercializar informações, quando, na verdade, o tema é digno de um tratamento mais sério e profissional, e porque não, acadêmico.
Por fim, é válido registrar que este trabalho em hipótese alguma pretendeu esgotar o assunto. O tema proposto é atual e passível de ser ainda mais explorado, vez que não dispomos em nossa doutrina jurídica e policial muitas discussões a respeito. Mas, humildemente, espera-se que possa contribuir como instrumento orientador para o desenvolvimento da atividade policial do tiro de comprometimento e de ações táticas, dentro do processo de gerenciamento de crises, nas instituições policiais do Estado – fim social desta pesquisa.
Oficial da Polícia Militar da Bahia, Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e com Especialização em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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