Autor: TENÓRIO, José Mateus dos Santos. E-mail: mateustenorioxavier@gmail.com. Acadêmico do curso de Direito na Faculdade de Integração do Sertão – FIS, Serra Talhada – PE.
Orientadora: Profª. Ana Maria Xavier.
Resumo: Todos os anos, milhares de pessoas são vítimas do tráfico de seres humanos em todo o mundo. Mulheres, homens, crianças, adolescentes e idosos. Mesmo sendo as mulheres e as crianças as principais vítimas desse tipo de crime atualmente, o tráfico não escolhe raça, sexo, orientação sexual etc. A maioria das vítimas estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica, resultantes de um contexto marginalizado, por más condições de vida e de trabalho. Vitimados(as) nas armadilhas do tráfico, são submetidos(as) à exploração sexual e ao trabalho forçado. Nesse contexto, políticas de enfrentamento são extremamente necessárias, juntamente com a efetivação dos protocolos e da legislação vigente.
Palavras-chave: tráfico de seres humanos. vulnerabilidade socioeconômica. más condições de vida. políticas de enfrentamento.
Résumé: Chaque année, des milliers de personnes sont victimes de la traite des êtres humains dans le monde entier. Les femmes, les hommes, les enfants, les adolescents et les personnes âgées. Même si les femmes et les enfants sont aujourd’hui les principales victimes de ce type de crime, la traite ne choisit pas la race, le sexe, l’orientation sexuelle, etc. La plupart des victimes se trouvent dans une situation de vulnérabilité socio-économique, résultant d’un contexte de marginalisation, en raison de mauvaises conditions de vie et de travail. Les victimes dans les pièges de la traite sont soumises à l’exploitation sexuelle, au travail forcé etc. Dans ce contexte, des politiques de confrontation sont extrêmement nécessaires, ainsi que la mise en œuvre des protocoles et de la législation en vigueur.
Mots-clés: traite des êtres humains. vulnérabilité socio-économique. mauvaises conditions de vie. politiques de confrontation.
Abstract: Every year, thousands of people are victims of human trafficking around the world. Women, men, children, adolescents and the elderly. Even though women and children are the main victims of this type of crime today, trafficking does not choose race, sex, sexual orientation, etc. Most of the victims are in a situation of socioeconomic vulnerability, resulting from a marginalized context, due to poor living and working conditions. Victims in the traps of trafficking are subjected to sexual exploitation, forced labor, etc. In this context, policies of confrontation are extremely necessary, together with the implementation of protocols and legislation in force.
Keywords: human trafficking. socioeconomic vulnerability. bad living conditions. confrontation policies.
Sumário: Introdução. 1. Dignidade da pessoa humana: mácula. 1.1. Dignidade da Pessoa Humana e a constante desvalorização. 1.2. A escravidão contemporânea. 2. Vulnerabilidade: uma questão socioeconômica. 2.1. A problematização do termo. 2.2. Pobreza e vulnerabilidade. 3. O tráfico de pessoas após a lei nº 13.344/2016: uma nova perspectiva. 3.1. Alterações arraigadas pela lei nº 13.344/2016. 3.2. Controvérsias. 4. Estado e proteção: nortes. 4.1. O “Estado-garantia”. 4.2. Políticas de enfrentamento e redução ao tráfico de seres humanos. Conclusão. Referências.
Introdução
Hodiernamente, o tráfico de pessoas vêm se tornando um crime cada vez mais recorrente, não só no Brasil, mas também em toda comunidade internacional, proporcionando aos sequestradores um leque de “oportunidades” para com aquela vítima, seja para fins sexuais, de escravidão, para a remoção de órgãos, para o comércio de drogas etc. Tem-se chamado até de “escravidão dos tempos modernos”, porque possui o mesmo cerne da escravidão de séculos atrás: vender, laborar e/ou servir.
Muitas vezes, as vítimas desse tipo de crime são iludidas com a oferta de uma boa qualidade de vida e de um bom emprego, mas com a condição de se mudar para outra localidade, normalmente, outro país. A maioria das vítimas é induzida a se deslocar do seu país de origem, vislumbrando o “sonho europeu”, sendo a Europa o continente mais utilizado para o criminoso ludibriar suas vítimas, em decorrência das boas condições de vida e do padrão elevado da maioria dos países do continente. Ao chegar ao destino, a vítima se depara com uma dívida imensa a pagar e com um sonho dissipado.
Um fator preponderante para que alguém se torne vítima do tráfico é a situação de vulnerabilidade. Em especial, as pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade socioeconômica se caracterizam com um “atrativo” aos criminosos, pois, pessoas que estão à margem da sociedade e em más condições financeiras se tornam mais passíveis a aceitar qualquer oferta e qualquer tipo de trabalho, em troca e com o intuito de “uma vida melhor” e de “melhores condições financeiras.
Ao abordar a vulnerabilidade como característica principal das vítimas do crime de tráfico, enfrentamos questões sociológicas e filosóficas, que vão muito além do mero conceito de vulnerabilidade e que maculam o princípio da dignidade da pessoa humana, tais como: raça, cor, escolaridade, gênero, problemas socioeconômicos e políticos. No Brasil, mesmo com a redução da taxa de pobreza, várias pessoas ainda vivem na linha extrema, estimando uma taxa de 23,3 milhões de pessoas somente entre 2014 e 2017, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Nesse sentido, qual o papel do Estado brasileiro diante do tráfico de pessoas, seja em âmbito nacional ou em caráter internacional? Há a necessidade de maior participação em protocolos internacionais? Como o Estado pode garantir a dignidade da pessoa humana e promover políticas de enfrentamento diante desse problema?
1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: MÁCULA
Neste tópico, aborda-se como o princípio da dignidade da pessoa humana é maculado e como o ser humano tem sido alvo de objetificação ao longo do tempo, resultando na escravidão “modernizada” ou contemporânea.
1.1 Dignidade da Pessoa Humana e a constante desvalorização:
Não é de hoje que a sociedade anseia por direitos mais justos, com uma sociedade mais igualitária e abrangente, mesmo sendo tão diversificada. O princípio da dignidade da pessoa humana é considerado o cânone máximo do ser humano, sendo que todos os outros princípios devem ou derivam de tal. Sua característica de irrenunciabilidade revela a imponência que ele traz, principalmente no que tange a carga valorativa.
A dignidade da pessoa humana não é um princípio com fundamentação absoluta, pois ele vem de uma construção social, tendo em vista que a sociedade está em constante transformação e assim, seus valores e princípios. Buscar um fundamento absoluto converteria o princípio em uma ideologia conservadora. Efetivando essa justificativa, Norberto Bobbio (2004) argumenta que:
“Basta pensar nos empecilhos colocados ao progresso da legislação social pela teoria jusnaturalista do fundamento absoluto da propriedade: a oposição quase secular contra a introdução dos direitos sociais foi feita em nome do fundamento absoluto dos direitos de liberdade. O fundamento absoluto não é apenas uma ilusão; em alguns casos, é também um pretexto para de fender posições conservadora” (BOBBIO, 2004, p. 15).
Caracterizando-se como essencial na vida de qualquer cidadão, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser, obrigatoriamente, ofertado pelo Estado. Primeiramente, todo Estado democrático de direito deve visar a dignidade do cidadão e o seu bem-estar, assegurando uma vida digna e proporcionando ao cidadão a capacidade de gozar de direitos e liberdades. Para que o cidadão goze de uma vida digna, ele necessita de oportunidades, condições e, principalmente, de um emprego digno. Esse papel deveria ser efetivado pelo Estado o que, infelizmente, não se reflete na realidade.
Estimativas do Instituto Fiscal Independente (IFI) do Senado apontam uma taxa de desemprego de até 14,2% até o final de 2020. O cenário só não possui um índice maior devido ao momento atual em que a sociedade se encontra, que é a pandemia de coronavírus. Devido às restrições, muitas pessoas não estão saindo de suas casas à procura emprego.
É nesse espectro que as pessoas estão sujeitas a se submeter a trabalhos desumanos, insalubres, de baixo custo e indignos, justamente devido a situação de vulnerabilidade em que se encontram e para não passar necessidades, marginalizam a sua dignidade e, muitas vezes, se colocam em ocasiões que não imaginavam se encontrar, enganados e iludidos para o tráfico humano.
1.2 A escravidão contemporânea
É de plena consciência que a escravidão é considerada inadmissível atualmente, sendo objeto de repúdio e indignação em diversos tratados e protocolos internacionais, a exemplo do Tratado de Paris entre França e Inglaterra (1814) e da Convenção de Genebra (1956). O ano era 1888 e no Brasil era sancionada a Lei n.º 3.353, pela então princesa imperial do Brasil, Isabel de Bragança, abolindo a escravidão no país. Anterior a Lei Áurea, os escravos eram tidos como propriedade dos senhores e, segundo Leonardo Sakamoto (2020):
“A partir de 13 de maio de 1888, por meio da Lei Áurea, o Estado brasileiro deixou de reconhecer o direito de propriedade de uma pessoa sobre outra. Contudo, persistiram estratégias de submissão dos trabalhadores, as quais, a despeito de não terem respaldo oficial, negavam a eles liberdade e, sobretudo, dignidade. Chamamos de dignidade o conjunto básico de garantias a que devemos ter acesso simplesmente pelo fato de fazermos parte do gênero humano. Quando negada, pessoas são tratadas como instrumentos descartáveis de trabalho” (SAKAMOTO, 2020, p. 7).
Para Sakamoto (2020), apesar de sancionada a Lei Áurea em 1888, não foram criadas políticas públicas para que os negros traficados e escravizados fossem reintroduzidos na sociedade brasileira, obrigando-os a continuar nas fazendas, pois, não haviam condições para que eles pudessem recomeçar em outro lugar, com educação e moradia digna, sendo contínua a submissão e o trabalho cruel e desumano.
Ainda, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seu art. IV, “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.”
Anualmente, milhares de pessoas são submetidas a condições deploráveis de trabalho, consideradas análogas à escravidão, através do tráfico de pessoas, caracterizando um óbice na relação entre empregado e empregador, sofrendo essas vítimas pressões psicológicas, torturas físicas e, muitas vezes, até a morte.
Estima-se que entre os anos de 1995 e 2019 mais de 54 mil pessoas foram encontradas em situação análoga à escravidão, em bordéis, fazendas, oficinas de costura etc. Não obstante, essa situação também tem projeção nos grandes centros urbanos, sendo adotada muitas vezes por empreendimentos que visam um maior lucro e larga escala de produção, mesmo que de forma cruel, mas que não querem lidar com a legalidade dos direitos trabalhistas modernos.
Muitos “trabalhadores” aliciados são impedidos de se desligarem da empresa até que cumpram a tarefa imposta ou paguem a “dívida” que contraíram coercitivamente com os aliciadores.
As formas de trabalho escravo contemporâneo estão elencadas no art. 149[2] do Código Penal brasileiro, ressaltadas quatro espécies, sendo: condições degradantes de trabalho; restrição de liberdade; trabalho forçado em decorrência de dívida e jornada exaustiva. As condições degradantes se caracterizam como aquelas que são contrárias à dignidade da pessoa humana, colocando em risco a sua saúde e segurança. A restrição de liberdade pode ser entendida como a impossibilidade da quebra de vínculo com o aliciador, podendo ocorrer tortura, ameaças etc. Por trabalho forçado em decorrência de dívida, entende-se aquele em que a pessoa é obrigada a trabalhar para outrem, porque o foi imposto uma dívida fraudulenta, obrigando-o a quitar tal dívida. Por fim, a jornada exaustiva será toda aquela que resultar no esgotamento físico e mental do trabalhador, impedindo-o de possuir vida social e convívio familiar.
2. VULNERABILIDADE: UMA QUESTÃO SOCIOECONÔMICA
Será analisado neste item os motivos que incorrem na situação de vulnerabilidade socioeconômica, abordando quais são os fatores que potencializam os riscos a esse problema.
2.1 A problematização do termo
Para que se possa compreender o conceito de vulnerabilidade, devemos entender que ele possui inúmeras vertentes, as quais exploram sentidos de raça/etnia, gênero, orientação sexual, classe social etc. Este termo que antes era comumente utilizado nas ciências humanas/sociais e saúde vêm sendo abrangido também pelo legislador brasileiro. O mais importante texto legal brasileiro, sobre o qual abrange o termo vulnerável, está alocado no Código Penal, mais especificamente no contexto dos “crimes contra a dignidade sexual”, a partir da alteração trazida pela lei nº 12.015/09.
O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, adotado em Nova York em 15/11/2000, incorporado ao direito interno brasileiro, publicado pelo Decreto 5.017, de 12/03/04, considera mulheres e crianças como pessoas vulneráveis ao tráfico de pessoas.
A problematização do termo, enfatizada neste subtítulo, se traduz na ausência desta temática nas discussões sobre a adição do Protocolo no direito interno brasileiro, uma vez que afasta a vulnerabilidade como uma das possíveis causas de anulação do consentimento. Isso se reflete quando o anteprojeto da Comissão de Juristas para o Código Penal, ao definir o tipo legal do tráfico de pessoas, não abarca a hipótese de vulnerabilidade como invalidação do consentimento da pessoa. A ausência sequer é justificada no relatório final.
O preâmbulo do Protocolo de Palermo (2003) enfatiza ao declarar que o intuito do Protocolo é o combate e a prevenção ao tráfico de pessoas, em especial, mulheres e crianças. Mesmo que não haja referência à proteção de homens maiores de 18 anos, o protocolo também não expressa a exclusão destes. Ou seja, ao enfatizar que a proteção se dá a mulheres e crianças, o documento não afirma explicitamente que são essas as pessoas consideradas vulneráveis, mas depreende-se.
Sob outro olhar, o Protocolo estabelece que a “situação de vulnerabilidade” é utilizada como premissa para que o(s) traficante(s) obtenham o consentimento da vítima para o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas.
Assim, define:
“a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso[3] de autoridade ou à situação de vulnerabilidade[4] ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (grifo nosso);
Como é perceptível, o Protocolo afirma que só haverá o crime se a pessoa em questão está em situação de vulnerabilidade. Esta situação de vulnerabilidade, em especial, das mulheres e crianças, exprime-se no artigo 9º, item 4 do Protocolo, que caracteriza a vulnerabilidade por fatores como “a pobreza, o subdesenvolvimento e a desigualdade de oportunidades”[5]. As condições de vulnerabilidade são variáveis em cada país, transmutando os fatores em cada cenário, seja econômico, racial/étnico, gênero, orientação sexual, dependendo também do tempo e da conjuntura social.
2.2 Pobreza e vulnerabilidade
O êxodo rural nos anos 70 provocou um acentuado número de pessoas nos grandes centros urbanos[6] em busca de trabalho nas grandes indústrias que ali se localizavam. Visto que as cidades não comportariam tamanho número de pessoas, muito menos as indústrias comportariam esse alto número de empregado, muitas dessas pessoas se acomodaram nos contornos da cidade, ou seja, às margens. Eram lugares sem estrutura básica, com amontoados de pessoas, sem oferecer nenhum saneamento ou vida digna àqueles que se alocavam nessas regiões (cortiços, favelas etc.).
Uma das grandes consequências do aumento exponencial de residentes em ambientes com más condições de vida é o aumento de mazelas sociais e, consequentemente, a situação de vulnerabilidade dessas pessoas. Essa consequência acarreta ligeiramente outra, sendo o aumento de trabalhadores informais no mercado. Somente em 2019, estima-se que 38,4 milhões de brasileiros viviam na informalidade, segundo o IBGE.
Dessa forma, pessoas vivendo em condições precárias se tornam o “alvo” preferido dos traficantes, que utilizam dessa vulnerabilidade socioeconômica para ludibriar as vítimas, tornando-as escravas em outras regiões ou países, seja sexual, seja laboral, para remoção de órgãos etc.
Como o tráfico de pessoas é produto de crime organizado, não é possível calcular e demonstrar com exatidão o número de pessoas que se encontram nessas terríveis situações. Em 2003, dados da Fundação Helsinque[7], dos Estados Unidos, revelaram que mais de 75 mil mulheres brasileiras estariam inseridas no mercado do tráfico de pessoas para fins sexuais, na União Europeia.
Estimativas da Polícia Federal declaram que o estado de Goiás (GO) se caracteriza como o principal exportador do tráfico de pessoas, sendo essa lista seguida pelo estado do Rio de Janeiro (RJ) e de São Paulo (SP). Com um alto teor de desigualdade e pobreza, as regiões Norte (76 rotas) e Nordeste (69 rotas) do país se configuram também como rotas do tráfico.
Também, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), afirma que entre 2012 e 2014 foram detectadas pessoas de 106 países e territórios a situação de tráfico. Contatou-se 63,2 mil pessoas. Embora as mulheres sejam a maioria, em virtude da exploração sexual, o número de homens vítimas do tráfico aumentou, com cerne no aumento do trabalho forçado em condições análogas à escravidão. Considera-se, ainda, que as crianças —depois das mulheres —, ainda é o grupo mais afetado pelo tráfico, com um aumento significativo nesse período, refletindo entre 25% a 30% do total.
Infelizmente, a ausência do Estado na assistência de pessoas que estão em situação de vulnerabilidade, promovendo as garantias constitucionais — celebrando o princípio da dignidade da pessoa humana —, exprime essa realidade avassaladora que milhares de brasileiros precisam enfrentar para não morrer de fome, sujeitando-se a mínimas condições de vida e emprego. Ter que viver à “míngua” e em situações de margem, empobrece e mácula o ser humano.
3. O TRÁFICO DE PESSOAS APÓS A LEI Nº 13.344/2016: UMA NOVA PERSPECTIVA
Após a lei nº 13.344 de 2016, o tráfico de pessoas ganhou outros nortes, alterando o Código Penal e revogando alguns artigos. Estas afirmações serão desenvolvidas abaixo, apresentando as inovações e as controvérsias da novel lei.
3.1 Alterações arraigadas pela lei nº 13.344/2016
Com efeito, as alterações trazidas pela lei nº 13.44/2016 foram muito bem-vindas na comunidade jurídica, uma vez que expande as possibilidades de punição acerca do tráfico de pessoas que se limitava unicamente à exploração sexual de mulheres, quando da criação do Código Penal brasileiro, em 1940.
Tendo em vista o lucro exorbitante que o tráfico de pessoas gera anualmente (em torno de bilhões de dólares), se fazia necessária e urgente a visualização de uma legislação nacional que penalizasse este crime, pois, os artigos 231 e 231-A[8] se mostravam insuficientes para tamanha complexidade.
Conforme Rogério Sanches (2017):
“A Lei 13.344/2016, adaptando nossa legislação à internacional, em especial à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, revogou formalmente os arts. 231 e 231-A. Criou novo tipo, retirando-o do Título VI – dos crimes contra a dignidade sexual –, migrando-o para o Título I – dos crimes contra a pessoa –, Capítulo IV – dos crimes contra a liberdade individual –, abrangendo a exploração sexual, o trabalho ou ser viços forçados, práticas similares à escravatura, a servidão, adoção e a remoção de órgãos” (SANCHES, 2017, p.12).
Segundo Rogério Sanches, sancionada a novel lei, foram revogados dois artigos do Código Penal, sendo o 231 e o 231-A. Essa revogação, advinda da lei nº 13.44/2016, ocorre justamente em decorrência dos tratados e protocolos assinados pelo país, que tratam o tráfico de pessoas de forma bem mais ampla e não somente com a finalidade sexual, que era o teor desses dois artigos já mencionados.
Com tal revogação, a nova lei criou um outro artigo para abarcar de forma mais ampla o tráfico de pessoas. O artigo 149-A, presente na parte especial do Código Penal, Título I — Dos Crimes Contra A Pessoa — Capítulo IV — Dos Crimes Contra A Liberdade Individual; agora trata do tráfico de pessoas não somente a finalidade sexual, mas também para as pessoas em condição análoga à escravidão, adoção ilegal e qualquer tipo de servidão.
3.2 Controvérsias
Em seu art. 1º, a lei nº 13.344/2016 se preocupa em abordar o tráfico de pessoas cometidos no país contra vítimas brasileiras ou estrangeiras (territorialidade, art. 5º, CP)[9] e fora do país contra vítima brasileira (extraterritorialidade, art. 7º, CP)[10]. Entretanto, o legislador comete uma falta grave ao especificar as vítimas, excluindo de forma clara os apátridas.
Como largamente mencionado no decorrer deste artigo, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico abrange todos os seres humanos em relação à proteção ao tráfico, sem limitação alguma. Outro erro vislumbrado se condiciona ao princípio da extraterritorialidade, quando visa proteger somente a vítima brasileira.
Para Sanches (2017):
“Essas duas falhas, porém, são facilmente corrigidas pelo operador do Direito, bastando lembrar que o Brasil, na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, se obrigou a reprimir o tráfico de seres humanos, não importando onde e contra quem foi praticado, desde que o agente seja capturado no nosso país (princípio da justiça penal universal ou cosmopolita)” (SANCHES, 2017, p.14).
Ainda, o doutrinador cita que “nos crimes cometidos contra apátrida no nosso país ou no estrangeiro, ainda que praticado contra não brasileiro, a nossa lei será aplicada, desde que o traficante seja capturado no nosso território.
Outro ponto considerado controvertido nessa nova temática é a cominação das penas. Vale destacar o pensamento de Cezar Roberto Bitencourt (2017):
A nova previsão legal, cuja pretensão, repetindo, era ampliar a proteção e punição do crime de tráfico de pessoas, incorre ainda em mais um erro grave, pois contrariando a sua “vontade”, ao revogar os arts. 231 e 231-A, transforma referida infração penal em outra similar, e menos grave, com menor punição, ainda que tenha cominado como pena-base um ano acima da lei revogada. Contudo, essa punição superior é puramente ilusória, pois se deixou de prever as majorantes especiais contidas no inciso III e IV do art. 234-A, as quais aumentavam a pena somente para as infrações constantes no VI Título da Parte Especial do Código Penal, aliás, onde se encontrava disciplinado o tráfico de pessoas, interna e externamente, para exploração sexual. […]. Essas omissões revelam, inegavelmente, o desconhecimento da anatomia do Código Penal brasileiro não apenas por parte do legislador, mas também do próprio Ministro da Justiça que subscreve o presente diploma legal. Ora, a omissão de todas essas causas especiais de aumento […] torna a novel infração penal, ao fim e ao cabo, menos grave em relação aos dispositivos revogados (BITENCOURT, 2017, p. 475-476).
Segundo o autor, o legislador se precipitou na cominação das penas, especificamente em diminuir elas, ao invés de se considerar os princípios de proporcionalidade e razoabilidade do bem jurídico tutelado, indo em controvérsia e infamação, principalmente, ao Protocolo de Palermo em que o Brasil é Estado-Parte
É possível que se considere recente tal alteração legislativa, então, o que se espera é que a doutrina e a jurisprudência possam guiar e suprir os erros da novel legislação, enquanto não haja uma revisão nos artigos para corrigi-los.
4. ESTADO E PROTEÇÃO: NORTES
Aqui se busca elencar e compreender o papel do estado na produção de políticas que proporcionem ao cidadão a segurança e uma vida digna, para que assim ele não precise permear pela informalidade e, na busca de um melhor emprego, caia nas garras do tráfico de seres humanos.
4.1 O “Estado-garantia”
Que o Estado é detentor da segurança dos cidadãos que nele habitam, com a promoção de políticas de enfrentamento à violência e ao tráfico de seres humanos, promovendo a dignidade da pessoa humana e garantindo os direitos constitucionalmente previstos, isso é fato. Mas e quando essas medidas não reverberam na realidade?
Nesse sentido, afirma Paulo Bonavides (2007) que:
“Os direitos humanos nas bases de sua existencialidade primária são os aferidores da legitimação de todos os poderes sociais, políticos e individuais. Onde quer que eles padeçam lesão, a sociedade se acha enferma. Uma crise desses direitos acaba sendo também uma crise do poder constituinte em toda sociedade democraticamente organizada” (BONAVIDES, 2007, p. 384).
Aduz o autor que não basta somente formalizar a norma jurídica e deixar que ela se complete e se concretize sozinha. Essa ideia se coadunou no Brasil, e segundo Bonavides, isso gerou uma crise de inconstitucionalidade no país. Há uma enorme crise programática governamental, no que tange a concretude das normas elaboradas, pois, o escopo teleológico não é efetivado. Ou seja, as normas não estão alcançando a finalidade social para as quais são criadas.
Bonavides ainda expressa que o maior problema para que essas normas se concretizem é a utilização de técnicas retrógradas do antigo Estado de Direito para efetivar as normas do Estado Democrático de Direito moderno.
Portanto, o que se observa no Brasil é a ausência de políticas públicas que viabilizem a efetividade das normas já existentes no nosso ordenamento jurídico. Dessarte, estas normas tornam-se meras expectativas de direitos, deixando os cidadãos a verdadeira “espera de um milagre”, com simples promessas que nunca se concretizam e sempre esperando que o poder público tenha a boa vontade de agir e cumprir as demandas.
No caso do tráfico de seres humanos, é essencial que para que haja o efetivo enfrentamento deste crime, o Estado cumpra, inicialmente, os direitos supremos de um Estado Social (direitos prestacionais — ou de 2ª dimensão) para satisfazer as necessidades sociais, como saúde, assistência social e, principalmente, proporcione o trabalho digno.
4.2 Políticas de enfrentamento e redução ao tráfico de seres humanos
Inicialmente, é necessário dizer que qualquer que seja o tipo de recrutamento, alojamento, submissão a trabalhos, que sejam de forma ilegal e que incorram abusos e ameaças, se caracterizará tráfico de seres humanos. Há uma grande problemática na lei penal brasileira em individualizar os casos do crime de tráfico. Isso decorre principalmente no crime de tráfico para a exploração sexual de mulheres, pois, de certa forma a lei penal se nega a incluir estas vítimas, pois, havendo o “consentimento” dessas vítimas, o crime não se caracterizaria. É certo que poder-se-ia até haver o consentimento da vítima em ser deslocada para outra região ou outro país, mas a finalidade para tanto sempre é mascarada.
Nessa perspectiva, seria interessante que esses óbices e erros da legislação penal fossem retificados para que, a posteriori, elaborasse mais políticas de enfrentamento a este mal.
Superados os obstáculos na legislação vigente, se faz essencial a criação de políticas de enfrentamento produzidos pela União em conjunto com os estados, sem que ignore a cooperação da comunidade internacional, para uma maior abrangência e efetividade. A discussão em conjunto se faz necessária, porque cada estado possui uma particularidade e a colaboração dos governadores e prefeitos seriam extremamente importantes para o combate.
Políticas que possuam um maior olhar sobre as áreas mais pobres e carentes de cada estado, cidade, são necessárias, pois, a maior ferramenta para se combater as mazelas sociais é implantar projetos efetivos e contínuos especificamente nessas áreas de maior vulnerabilidade econômica e social.
Deve-se atentar e investir mais em programas sociais, visto que as normas programáticas vigentes possuem somente efetividade no papel, não refletindo na sociedade a real intenção e a melhor finalidade que elas buscam (ou deveriam).
É importante ressaltar que a principal finalidade que essas políticas sociais devem proporcionar é a redução da vulnerabilidade, não se limitando somente às mulheres e às crianças, visto que o Protocolo de Palermo visa firmar o combate ao tráfico de seres humanos, independente de raça, gênero, orientação social, classe etc.
Em suma, é extremamente urgente a criação de uma política social que seja abrangente e que não crie especificidade, mas que consiga atingir, com efetividade, todos aqueles que se encontram vulneráveis ao tráfico de seres humanos.
Conclusão
Observado e analisado tudo o que foi exposto no que decorrer deste artigo, infere-se que o tráfico de seres humanos, infelizmente, é uma realidade nacional e internacional, devendo ser duramente combatido para que se faça efetivo o princípio da dignidade da pessoa humana e a efetividade do Protocolo de Palermo.
Entretanto, encontram-se alguns empecilhos no combate a este crime, seja legislativo, seja de políticas sociais, devendo o Estado manter mais a atenção e procurar alternativas e meios mais eficazes para o combate ao crime do tráfico de seres humanos.
No Brasil, a alteração legislativa 13.344/2016 trouxe novidades no que tange a abrangência do crime e dos bens jurídicos tutelados, mas também ressaltou alguns erros cometidos pelo legislador, como por exemplo, a cominação da pena.
Dessa forma, é necessária a integração dos diversos órgãos de combate e repressão ao tráfico de pessoas para a elaboração e execução de políticas de enfrentamento, visto que há uma certa incomunicabilidade e irresponsabilidade do poder estatal na articulação de medidas de prevenção e execução.
Algumas pessoas sobrevivem ao tráfico de seres humanos para contar sua história e incentivar o combate e à repressão, mas infelizmente, outros se findam nas estatísticas e são “convertidas” em “objeto” de estudo científico.
Referências
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SOUZA, Ana Paula Lemes de. Dignidade humana através do espelho: o novo totem contemporâneo. In: TRINDADE, André Karam (Org.); SOARES, Astreia (Org.); GALUPPO, Marcelo Campos (Org.). Direito, arte e literatura: XXIV Congresso Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte: CONPEDI, 2015. p. 22-41. Acesso em: 26 de jul. 2020.
[1] Artigo. Acadêmico do curso de Bacharelado em Direito da Faculdade de Integração do Sertão – FIS, em Serra Talhada. 2020. E-mail: mateustenorioxavier@gmail.com.
[2] Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).
Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).
(…)
[3] O dicionário Aurélio abarca cinco definições sobre abuso: uso mau, excessivo ou injusto; ausência de justiça; transgressão de bons costumes e; algo, situação ou circunstância que causa aborrecimento; desgosto.
[4] O texto original traz “position of vulnerability”.
[5] Na versão original, “lack of equal opportunity”.
[6] BUNDE, Mateus. Urbanização no Brasil: A Urbanização no Brasil está diretamente relacionada ao êxodo rural, ocorrido após a segunda metade do século XX.
[7] JESUS, Damásio de. Op. cit. p. 72
[8] Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual
Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato;
III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou
IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude.
Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual
Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato;
III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou
IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude;
[9] Art. 5º – Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984).
[10] Art. 7º – Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 1984).
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