Os Conselhos profissionais (Ordem dos Advogados, dos Contabilistas, Conselhos Estaduais e
Federais de Medicina, Farmácia e quejandos,
constituem herança do período medieval. Naquele tempo, forçados pela
necessidade de organização e de resistência aos senhores feudais, os mestres em
diversas profissões (obreiros, construtores de igrejas, armeiros e outros “eiros”) fundaram as denominadas “corporações”, instituindo
normas para a inscrição de seus filiados. Havia exames, sim, alguns deles
severíssimos, realizados sob formalidades estritas. Daquele tempo vetusto da
cavalaria andante ao mundo hodierno sobreviveu pouca coisa. A
Europa mantém a tradição legislativa atinente à espécie. Nos Estados Unidos,
somente a título de exemplo, resta uma sobra daquele formalismo. Tocante
a advogados, inexiste, lá, a Ordem respectiva, substituída por entidade privada
(Bar Association), cuja atividade é sancionadora,
sim, mas não constitui pressuposto para o exercício da profissão. O
Brasil se mantém numa postura clássica, embora haja tentativas legislativas
reiteradas de reduzir a influência dos Conselhos Profissionais.
Fundamentalmente, a razão é simples: a Ordem dos Advogados, mesmo punindo
severamente os transgressores do Código de Ética, exerce atividade protetora,
exigindo, nas hipóteses de submissão dos mesmos a processos criminais,
julgamentos justos e adequados à Constituição. Outro não poderia
ser o procedimento, porque a origem dos Conselhos Profissionais, como já
assentado, diz respeito ao cinturamento, dentro das
respectivas Câmaras, da atividade punitiva.
Acontece às vezes, entretanto, fenômeno
que polui, e muito, a finalidade primacial das chamadas Corporações
Profissionais. Há condutas de filiados ferindo, em princípio,
dispositivos do Código de Ética Médica e do Código Penal. Vêem-se os Conselhos,
conseqüentemente, dentro de angustiante dilema: apuram as hipóteses de infração
com muito cuidado ou se deixam arrastar pelo estrépito publicitário, procurando
proteger-se do rescaldo a tisnar a respeitabilidade. A apuração, assim, é
levada a termo com extrema rispidez, tendo-se como comprovado o que sequer
foi compactado em procedimento regular. Em suma, o filiado é punido antes
de ser a hora de punir, é execrado antes da execração
e é apontado à comunidade, antes do julgamento, como réu já censurado
formalmente. Não é correto, não pode ser aprovado e não há de ser admitido tal
comportamento. As corporações – e corporações são – precisam
compenetrar-se da função censória primordial que lhes
foi atribuída, ou seja, aquela de processar e julgar, com extrema compostura,
aqueles profissionais que, por hipótese, se conduziram mal. Para isso,
é indispensável muita coragem da instituição censória.
Já se disse, e é voz corrente, que em períodos de crise é muito mais fácil a
condenação. Satisfaz-se o povo, representado este último pela ficção denominada
vontade popular, desvencilha-se a instituição de um sério problema e já pode
encarar o futuro com postura imaculada. No meio disso tudo, as garantias de defesa vão às tintas, parte-se para
comportamento absolutamente ilegal e se coloca o acusado em posição totalmente
desequilibrada. A título de mera exemplificação, surge pelos jornais
(curiosamente, é a imprensa a divulgadora das providências processuais) a
notícia de que o médico seria submetido a perícia
psiquiátrica por comissão instituída pelo Conselho Regional de Medicina do
Estado de São Paulo. Em suma, três eminentes psiquiatras visitariam o
indiciado Eugênio no podre Distrito Policial em que foi posto com absoluto
desprezo a premissas processuais, perscrutando-lhe os segredos da
alma e sobre o todo emitindo laudo atinente aos fatos em perquirição
(confissão ou negativa), motivos, realidades concretas e virtuais
etc., isso sob a conotação do segredo exigido pelos Estatutos da Corporação.
Nesse meio tempo, o paciente será examinado através de uma grade microperfurada, como se fosse um animal chafurdando
em lamaçal malcheiroso. A ilustre comissão comparecerá com aventais brancos,
tomando cuidados imensos para não os conspurcar na sujeira existente no
dito “cárcere especial”. O indiciado, certamente, há de confiar nos
peritos, porque peritos são. O único problema subsistente, a
par dos remanescentes adstritos à extravagância do local
reservado ao exame psiquiátrico, é o segredo profissional
exigido do médico, do advogado e daqueles que se dão a outros ministérios
diferenciados. Segundo o noticiário, os peritos se dispõem a examinar, em data
ainda não conhecida, aquilo que se passa nas entranhas da mente do periciado. Hão de lhe cutucar a mente, assemelhadamente
à aferição das gorduras dos bichos enclausurados. Depois, relatarão o que viram, o que ouviram e o que sugerem ao plenário, fazendo-o
sob o pressuposto das duas primeiras regras exigidas ao exercício
da medicina: respeito ao corpo, à mente do examinado e
confiabilidade. A seguir, as conclusões seguem à Justiça Penal. Ou não,
dependendo da capacidade de resistência da Instituição. Parece brincadeira de
criança. Mas não é.
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.
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