Resumo: Movidos pelo clamor social, por espíritos indignados com as recentes e excessivas demonstrações de violência que assolam a sociedade, parlamentares lançam-se numa corrida desenfreada para publicar o mais rápido possível uma “nova lei” que a todos salvará. Esta lei irá dizer o que é Crime Organizado, e como deve ser punido. Mas será que isso é possível. Será possível caracterizar, descrever na lei uma modalidade de crime histórica, porém moderna e atual. Capaz de adaptar-se a qualquer tipo de alteração legislativa antes que se protocole o projeto de lei?
Este artigo pretende apresentar o ponto de vista jurídico de quem trabalha diretamente no combate ao Crime Organizado, mostrando que é desnecessário a alteração da Lei 9.034/95, ou a edição de nova lei.
Sumário: Introdução – 1. Elaboração de um conceito – 2. Teoria da Tipificação – 3. Teoria da “Não-Tipificação” – 4. Projetos de Lei em tramitação – Conclusão.
Introdução
O Brasil é um país adepto ao direito penal de emergência. Tem sido assim sempre que um evento danoso afeta com impacto a sociedade e ocupa por um longo espaço de tempo a mídia televisiva.
Por ocasião dos ataques realizados por grupos de criminosos nas cidades de São Paulo e de Rio de Janeiro, criou-se um verdadeiro alvoroço no nosso Poder Legislativo, também em artigos de revistas, jornais e páginas de Internet, incitando a criação de uma lei salvadora de todas estas mazelas. O que me preocupa, pois há tramitação no nosso Poder Legislativo de Projetos de Lei que pretendem ou criar o tipo penal para organização criminosa, ou conceituar criminalidade organizada.
Desde a alteração da Lei 9.034/95 dada pela Lei 10.217/01, está em pauta uma discussão doutrinária e política, referente ao conceito de organização criminosa. Até então, não existe ponto pacífico sobre número de agentes mínimos, características, e finalidade da organização. A jurisprudência, no entanto, tem aplicado a Lei 9.034/95 sempre em concurso com o artigo 288 (Quadrilha ou Bando) do Código Penal.
Com a inclusão da Convenção de Palermo no ordenamento jurídico brasileiro, surgiu então o conceito de organização criminosa composta por três agentes. Certo é que, uma organização criminosa tem como características básicas a sua forma dinâmica, em constante adaptação ao meio e de grande complexidade, sendo assim, em uma correta interpretação do artigo 1º da Lei 9.034/95 pode-se perceber que uma organização criminosa pode tanto assumir a forma de uma simples associação criminosa, com dois agentes, como o de uma complexa e estruturada quadrilha com mais de três agentes. Por isso, entendo ter sido desnecessária a alteração feita pela Lei 10.217/01 pois sendo associação criminosa o gênero da qual é espécie a quadrilha e o bando, irrelevante constar no texto legal a figura da organização criminosa, que também é uma espécie do gênero associação criminosa[1].
Em trabalho de pesquisa de três anos, para a realização de minha monografia de conclusão de curso, cheguei a seguinte conclusão: o conceito jurídico de organização criminosa é in abstrato, não deve estar limitado a um texto de lei, mas ser elaborado no caso concreto. Conforme pretendendo demonstrar neste artigo.
Elaboração de um conceito[2]
Em Administração de Empresas estuda-se que uma organização é um empreendimento humano criado e mantido para que os indivíduos atinjam certos objetivos e obtenham certos resultados, pois o ser humano, diante dos seus inesgotáveis problemas e da impotência para resolvê-los sozinho, busca a solução de seus problemas nas organizações, ou seja, a organização é um trabalho em grupo que surge em decorrência da existência dos fatores “objetivo, finalidade, associação de interesses e motivação[3]”.
Ainda, no estudo da teoria do desenvolvimento organizacional os administradores de empresas afirmam que:
“uma organização é a coordenação de diferentes atividades de contribuintes individuais com a finalidade de efetuar transações […]. As contribuições de cada participante à organização variam enormemente em função não somente das diferenças individuais, mas também do sistema de recompensas e contribuições pela organização. Toda organização atua em determinado meio ambiente e sua existência e sobrevivência dependem da maneira como ela se relaciona com esse meio. Assim, ela deve ser estruturada e dinamizada em função das condições e circunstâncias que caracterizam o meio em que opera[4]” (grifos nossos).
Sendo assim, podemos dizer que uma organização criminosa é uma espécie de associação criminosa que realiza um trabalho em grupo para melhor atingir seus objetivos. Trabalho este que coordena diferentes atividades dentro de um sistema próprio que gerencia a contribuição de cada indivíduo e distribui as recompensas.
Paulo César C. Borges alerta que o conceito para “crime organizado” não pode ser limitado às organizações que seguem o modelo da Máfia, “ele é também qualquer estrutura sistematizada destinada à prática de delitos, de forma assemelhada à estrutura de uma empresa lícita, com uma direção única e voltada para a realização de objetivos previamente eleitos[5]”. Também Antônio Carlos Lipinski afirma que o conceito de “crime organizado” não é legal ou jurídico pois se trata de um fenômeno social[6], e assim deve ser entendido.
Com isso, levanto a seguinte questão: para um perfeito enquadramento dos dispositivos legais é necessário ou não haver um conceito legal para organizações criminosas?
São duas as hipóteses: A primeira aceita o argumento de que seja necessária a construção de um conceito em lei, o que daria mais legitimidade à investigação e ao processo trazendo uma maior clareza para o aplicador do direito e uma segurança jurídica às partes envolvidas. É a Teoria da Tipificação.
A segunda, considera que um conceito em lei, para organização criminosa, engessaria a persecução criminal, na medida em que, a delinqüência organizada atua em macro e mesocriminalidade, é dinâmica, e está em constante movimento e adaptação aos instrumentos legais, no que a expressão “organizações ou associações criminosas de qualquer tipo” inserida na lei 9.034/95, cumpre a sua função como um tipo penal aberto de conceito jurídico indeterminado. Seria a teoria da Não-Tipificação.
Teoria da tipificação[7]
A primeira teoria, defende a idéia de que sendo o penalismo brasileiro clássico baseado na figura do tipo, conseqüentemente, no princípio da taxatividade, deve haver um conceito que tipifique organização criminosa em lei.
Luiz Flávio Gomes por exemplo, sugere que haja uma definição em lei para organização criminosa[8], para ele, a expressão “organização criminosa” no ordenamento jurídico brasileiro, “é uma alma (uma enunciação abstrata) em busca de um corpo (de um conteúdo normativo, que atenda ao princípio da legalidade)[9]”. Paulo César Corrêa Borges conclui que organização criminosa deve ser definida em lei, tipificando a associação do tipo mafioso, destacando alguns elementos, como a intimidação, a hierarquia e a lei do silêncio[10].
Os adeptos a esta corrente doutrinária argumentam que, para o cidadão ser protegido do arbítrio judicial, dentro dos preceitos adotados pelo movimento do garantismo do Direito Penal, deve o tipo penal ser preciso em sua definição para que o fato concreto seja bem identificado, sendo assim, segundo essa concepção, não pode o tipo penal ser genérico a ponto de deixar ao critério de doutrinadores e de operadores do Direito a qualificação da ação à norma[11].
É preciso respeitar o princípio da legalidade que exige uma lei certa com tipos penais claramente determinados. O princípio da legalidade não admite “tipos ‘abertos’, ou seja, definições de infrações formuladas de uma maneira vaga que, na prática, possam nelas ser incluídos quaisquer atos[12]”.
Pretende esta corrente a aplicação da teoria do tipo penal fechado na Lei de Combate ao Crime Organizado, o que daria uma maior segurança jurídica ao caso em que a referida lei é aplicada. Criticam os adeptos a esta corrente que, ao existir em lei expressões vagas ou imprecisas, o legislador acaba por deixar a própria lei inócua e ao arbítrio do julgador, ficando a lei destinada ao subjetivismo conceitual de cada juiz, todavia, não cabe ao juiz substituir o legislador no que deve o Congresso Nacional definir legalmente a expressão “organizações criminosas[13]”.
Até que isso ocorra, Luiz Flávio Gomes explica que “é caso de perda de eficácia (por não sabermos o que se entende por organização criminosa), não de revogação (perda de vigência). No dia em que o legislador revelar o conteúdo desse conceito vago, tais dispositivos legais voltarão a ter eficácia. Por ora continuam vigentes, mas não podem ser aplicados[14].”
Teoria da “Não-Tipificação”[15]
A segunda teoria defende a não conceitualização em lei para organização criminosa, é principalmente defendida por juízes, entre eles o atual Ministro do STJ Gilson L. Dipp. Para estes juristas, tipificar na lei, conceituar textualmente o que seria uma organização criminosa ou até mesmo criminalidade organizada, seria um erro, pois iria engessar a lei frente a um fenômeno que é extremamente criativo, dinâmico e que está em constante movimento.
Marcelo B. Mendroni diz que “não se pode definir Organização Criminosa” através de conceitos estritos ou mesmo de exemplos de condutas criminosas” pois “não se pode engessar este conceito” uma vez que “as Organizações Criminosas, detém incrível poder variante[16]”.
Na visão de Eduardo Silva o clássico processo de tipificação penal, voltado para condutas individualizadas mostra-se insuficiente para tutelar o complexo e variado número de condutas que compõem a criminalidade organizada[17], no que concordo plenamente. A corrente que defende a aplicação do princípio da taxatividade (tipo penal fechado) na Lei 9.034, deseja a mais perfeita descrição de um fato típico (lex certa), constituindo um limite ao poder punitivo criando uma garantia de igualdade.
No entanto, esquecem-se os defensores desta corrente, que o art. 1º da Lei 9.034/95 não descreve nenhuma conduta típica, mas sim uma norma diretiva que vai guiar o jurista para que, quando houver crimes (condutas típicas) praticados por organizações criminosas, a persecução penal, e a execução penal deverão seguir os preceitos descritos naquela lei. Corrobora este pensamento as palavras de Adhemar Ferreira Maciel ao escrever que: “a Lei 9.034 não define, no que faz bem, o que seja uma organização criminosa, afinal não se trata de figura típica. O conceito de organização criminosa deve ficar, assim, por conta da doutrina e jurisprudência […] embora a lei não esclareça, seu objetivo é a grande criminalidade, e não as quadrilhas de bagatela […] [18]” (grifos nossos).
Agora voltemos às primeiras lições de Direito Penal, ensinadas nas Faculdades, onde se conceitua crime como uma conduta humana típica que produz lesão a bens jurídicos.
Esta tipicidade que está no chamado “tipo penal”, nada mais é do que a descrição em lei, da conduta delituosa. Segundo Luis Carlos de Sá Souza, o tipo penal é predominantemente descritivo, com a função de individualizar condutas humanas penalmente relevantes[19].
Ora, se temos que o tipo penal é a individualização de condutas, correta a afirmação de Adhemar Maciel de que organização criminosa não é uma figura típica.
Ainda, Luis Carlos de Sá Souza ensina que o tipo penal possui três funções[20]:
1ª) – Função indiciária, quando o tipo delimita a conduta ilícita;
2ª) – Função de garantia, onde todo o cidadão antes de cometer um fato, deve ter a possibilidade de saber ser esta ação geradora de um fato tipificado como crime;
3ª) – Função diferenciadora do erro, pois o autor somente poderá ser punido pela prática de um fato doloso quando conhecer as circunstâncias fáticas que o constituem.
Ao nos debruçarmos sobre o artigo 1º da Lei 9.034/95[21] não encontramos nenhuma destas funções, pois o artigo prescreve uma diretriz que define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios, ou seja, não ajusta nenhuma conduta humana classificada como crime. Continua o texto do artigo 1º: que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.
Observe agora que o texto descreve um complemento para a diretriz inicial, determinando que a lei só poderá ser usada para ilícitos decorrentes de ações, novamente, não há uma conduta individualizada, muito pelo contrário, ao determinar que as ações devem ser praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo, a lei está referindo-se ao tipo plurissubjetivo que está fora desta lei, é preciso clarear este foco: não se trata aqui de um artigo de lei penal, mas sim de uma norma processual penal.
Por isso que a corrente doutrinária da não-tipificação propõe a tese da aplicação do chamado tipo penal aberto na Lei de Combate ao Crime Organizado[22].
Conforme escreve Antônio Carlos Lipinski, “a importância da criação de tipos penais abrangentes é muito importante, evitando assim que qualquer nova modalidade criminal fique impedida da sua apuração[23]”. Aplicando o conceito de norma penal aberta teria o jurista, a função de se socorrer na doutrina e na jurisprudência para complementar a descrição da norma, que sempre estaria atualizada, vinculando-se aos postulados da necessidade e adequação.
Os adeptos a corrente doutrinária da não-tipificação entendem que, o tipo penal aberto proporciona uma maior tutela às lesões advindas do desenvolvimento mundial tecnológico e mercadológico cultural, onde se insere a delinqüência organizada[24].
Projetos de Lei em tramitação[25]
Procurei demonstrar no texto acima que é perfeitamente viável a existência de uma norma de conceito jurídico indeterminado, ou de tipo penal aberto, que permita ao aplicador do Direito complementá-la, conforme a atualização de seus conhecimentos e dos próprios fatos sociais.
Na seara jurisprudencial, não encontrei nenhuma discussão a respeito da aplicação ou não da Lei 9.034/95 devido a inexistência de um conceito na própria lei, o que percebi é que os juízes têm aplicado a Lei 9.034/95 como um instrumento processual penal especial sempre em concurso com outro dispositivo, como por exemplo o artigo 288 do CPB.
Meu entendimento é o de que não há necessidade alguma de definir-se em um diploma legal o conceito de organização criminosa, contudo, há no Poder Legislativo a tramitação de proposições com esta finalidade.
O Projeto de Lei 2751/00[26], por exemplo, de autoria do Deputado Federal Alberto Fraga do PMDB/DF, tipifica o crime organizado e o qualifica como crime hediondo, mas não traz um conceito para organização criminosa.
Art. 1º Organizar-se para a prática de crime, ou participar, de qualquer forma, de organização criminosa, ou concorrer, de qualquer maneira, para a sua existência ou atuação. Pena: reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Por sua vez o Projeto de Lei 7223/02[27], de autoria do Deputado Federal Luiz Carlos Hauly do PSDB/PR pretende conceituar organização criminosa utilizando o princípio da taxatividade. O Projeto de Lei 7223/02 inclui o parágrafo único no artigo 1º da Lei 9.034/95 definindo que, só haverá organização criminosa quando a associação criminosa reunir o mínimo de três, das onze características enumeradas.
Art. 2º O art. 1º da Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
Art. 1º […]
Parágrafo único. Considera-se organizada a associação ilícita quando presentes, pelo menos, três das seguintes características:
I – hierarquia estrutural;
II – planejamento empresarial;
III – uso de meios tecnológicos avançados;
IV – recrutamento de pessoas;
V – divisão funcional das atividades;
VI – conexão estrutural ou funcional com o poder público ou com agente do poder público;
VII – oferta de prestações sociais;
VIII – divisão territorial das atividades ilícitas;
IX – alto poder de intimidação;
X – alta capacitação para a prática de fraude;
XI – conexão local, regional, nacional ou internacional com outra organização criminosa.
Este Projeto de Lei surge utilizando a técnica legislativa de criar um rol de características específicas, mas também não traz um conceito para organização criminosa, e não soluciona o problema no caso de surgimento de novas características.
Por sua vez, o Projeto de Lei 2858/00[28], originado da Mensagem 496 do Ministro da Justiça, pretende alterações mais sérias:
Art. 1º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), fica acrescido do seguinte artigo:
Organização criminosa
Art. 288-A. Associarem-se mais de três pessoas, em grupo organizado, por meio de entidade jurídica ou não, de forma estruturada e com divisão de tarefas, valendo-se de violência, intimidação, corrupção, fraude ou outros meios assemelhados para o fim de cometer crime:
Pena – reclusão, de cinco a dez anos, e multa.
§ 1º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o agente promover, instituir, financiar ou chefiar a organização criminosa.
§ 2º O participante e o associado que colaborar para o desmantelamento da organização criminosa, facilitando a apuração do delito, terá a pena reduzida de um a dois terços. (grifo nosso)
Como podemos observar o Projeto de Lei 2858/00 tipifica no Código Penal o crime de “criar, participar ou liderar organização criminosa”, entendida como sendo uma associação formada por três ou mais pessoas que, de forma estruturada, usarem de violência, intimidação, corrupção, fraudes ou meios afins para cometer crimes, é como se o legislador criasse a figura do crime de “quadrilha ou bando qualificado”; isso nos parece incoerente, pois deixa margem para uma fácil desqualificação para o crime de quadrilha ou bando, cuja pena é bem menor (de 1 a 3 anos), na medida em que as quadrilhas “comuns”, também possuem todas as características descritas no art. 288-A do Projeto de Lei 2858/00.
Ademais, o Projeto de Lei segue o mesmo padrão da Convenção de Palermo[29] fazendo uso do requisito estrutural[30] (mínimo de três agentes) conforme segue:
Artigo 2
Terminologia
Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:
a) “Grupo criminoso organizado” – grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material; (grifo nosso).
Com isso, o Projeto de Lei 2858/00 exclui do conceito a possibilidade de existir uma associação criminosa, aquela integrada por apenas dois agentes, e esta intenção fica clara quando vemos que o artigo 3º do Projeto de Lei pretende modificar o texto do artigo 1º da Lei 9.034/95, suprimindo a expressão “associações criminosas de qualquer tipo”[31].
Art. 3º O art. 1º da Lei 9.034, de 3 de maio de 1995, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 1º Esta lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando e de organização criminosa (arts. 288 e 288-A do Código Penal).
Sobre o requisito estrutural, vale lembrar que na União Européia o Conselho de Ministros chegou ao entendimento de que, devido às suas características dinâmicas, atuais, e sofisticadas, não é impossível a existência de organizações criminosas compostas por um mínimo de dois agentes:
“[…] Um grupo de delinqüentes é considerado como organizado quando presentes ao menos seis das características seguintes, sendo obrigatórias às 1, 3, 5 e 11.
1.- Colaboração entre mais de duas pessoas;
2.- Repartição de tarefas;
3.- Atuação prolongada ou indefinida no tempo (constante);
4.- Utilização de algum tipo de controle ou método de disciplina;
5.- Suspeita de cometimento de delitos graves;
6.-Esteja ativo em nível regional, nacional ou internacional;
7.- Uso de violência ou outro meio para intimidar;
8.-Servirem-se de estruturas econômicas ou comerciais;
9.- Envolvimento em lavagem de dinheiro;
10.- Uso de influência política, nos meios de comunicação ou outra forma de corrupção
11.- Busca de benefícios do Poder[32]”. (grifo nosso)
Outro problema que se vislumbra nas alterações pretendidas pelo Projeto de Lei 2858/00 está na inserção no CPB da colaboração processual que já está prevista na Lei 9.034/95, o que seria desnecessário, contudo, observa-se que os dois dispositivos não são idênticos. A colaboração processual prevista no artigo 6º da Lei 9.034/95 exige a espontaneidade do agente, já o texto do artigo 1º do Projeto de Lei 2858/00 não, dando a entender que esta colaboração poderá ser provocada o que geraria conflitos processuais na medida em que, a provocação de uma colaboração processual extrapolaria os limites de atuação do Estado.
Alteração também pretendida pelo Projeto de Lei 2858/00 está na substituição da expressão “ilícitos decorrentes” por “crime resultante”. Com isso, o legislador elimina a existência de organizações criminosas que praticam contravenções penais, como o jogo do bicho, por exemplo.
Outro projeto significativo é Projeto de Lei do Senado Federal (PLS) n. 150/2006[33] apresentado pela Senadora Serys Slhessarenko do Partido dos Trabalhadores do Mato Grosso que revoga por completo a Lei 9.034/95.
Apesar do art. 1º do PLS 150/06 se propor a definir “o crime organizado”, referido projeto não traz conceito algum.
Observa-se no PLS 150/06 um forte apelo ao princípio da taxatividade, a começar pelo requisito estrutural, exigindo um mínimo de cinco pessoas na configuração do delito, obrigando, no caso da organização criminosa ser composta por quatro pessoas, a sua desclassificação para quadrilha; e no extenso rol com mais de cem crimes antecedentes descritos no art. 2º e seus incisos e parágrafos.
Chama atenção no PLS 150/06, que a autora do projeto considera como causas agravantes da pena, aumentando-se de um terço até a metade, os fatores estruturais da organização criminosa (mais de vinte pessoas, concurso de agente público, colaboração de criança e adolescente); os instrumentos utilizados na prática de crimes (arma de fogo); e a destinação dos resultados do crime (ao exterior); mais do que o grau de dano causado a um determinado bem jurídico, como a vida por exemplo.
Sendo assim, ao aplicarmos as regras do PLS 150/06 teremos como resultado disparidades jurídicas que iriam majorar a pena de uma organização criminosa composta por seis pessoas, cujos crimes nunca resultaram na morte de nenhuma pessoa, mas que conta com agente público na sua composição; e por outro lado teremos uma organização criminosa composta por dez pessoas que financiam homicídios e que não sofrerão agravante algum, pois não é composta por mais de vinte pessoas, não tem agente público e nem menores no grupo, não possuem armas de fogo, e não remetem valores ao exterior (jogo do bicho por exemplo).
Outro ponto a ser criticado é a supressão do instituto da infiltração policial que conforme a justificativa do PLS 150/06:
[…] “porque viola o patamar ético-legal do Estado Democrático de Direito, sendo inconcebível que o Estado-Administração, regido que é pelos princípios da legalidade e da moralidade (art. 37, caput, da CF), admita e determine que seus membros (agentes policiais) pratiquem, como co-autores ou partícipes, atos criminosos, sob o pretexto da formação da prova. Se assim fosse, estaríamos admitindo que o próprio Estado colaborasse, por um momento que seja, com a organização criminosa na execução de suas tarefas, o que inclui até mesmo a prática de crimes hediondos[34]”.
Este argumento vai contra a doutrina preponderante e demonstra o total desconhecimento do tema, além do que, se me permite a ousadia, deixar aos sabores do vento uma certa dúvida: a quem interessa uma lei dessas?
Outra alteração que considero marcante, diz respeito a colaboração processual (chamada no PLS 150/06 de ‘colaboração premiada’) que passa a ser uma exclusividade jurisdicional, ou seja, pelo projeto, retira-se do órgão ministerial a competência de propor a redução de pena em troca de informações que permitam o esclarecimento de outros crimes. Pelo projeto, o oferecimento da redução ou do perdão da pena, deverão ser requeridos pelas partes ao juiz, ou oferecido de ofício por este, sem se falar que nomeia de “prêmio” o ato da colaboração, o que se sabe juridicamente que o Estado Democrático de Direito não pode tolerar o cometimento de delitos, e não estimula os delinqüentes com nenhuma premiação.
Pontos positivos no PLS 150/06 estão na criminalização de condutas que propiciam, por exemplo, a “indústria das testemunhas”; a recusa em fornecer dados cadastrais (seguidamente praticado por bancos); e a revelação da identidade ou imagem do colaborador:
Seção IV
Dos crimes ocorridos na investigação criminal e na obtenção de prova
Art. 12. Revelar a identidade, fotografar ou filmar o colaborador, sem sua prévia autorização por escrito. Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.
Art. 13. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de crime organizado que sabe inverídicas. Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa.
Art. 14. Quebrar o sigilo das investigações que envolvam a ação controlada. Pena – reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
Art. 15. Recusar, retardar ou omitir dados cadastrais, documentos e informações eleitorais, comerciais ou de provedores da internet, requisitados por comissão parlamentar de inquérito ou por autoridade judicial. Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Art. 16. Revelar o nome, a qualificação ou demais informações pessoais da vítima, testemunha, investigado ou acusado-colaborador que tenha a sua identidade preservada em juízo, assim como quebrar o sigilo do respectivo procedimento judicial. Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa.
Entendo que as idéias expostas nos projetos de leis são contrárias à correta hermenêutica do art. 1º da Lei 9.034/95, com alteração dada pela Lei 10.217/01. Como já foi apresentado, as organizações criminosas, quadrilhas e bandos, são espécies do gênero associação criminosa, e por isso não há confusão, ou incoerência no texto da lei, já que trata de “ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo”.
O que o intérprete deve valorar são as características de uma organização criminosa e entender que esta organização pode: atuar em qualquer lugar; a qualquer tempo; de qualquer forma; usando qualquer meio, ou seja, ela tanto pode estar configurada aos moldes gigantescos de uma máfia com mais de mil integrantes, como também pode estar estruturada aos moldes de uma quadrilha com apenas quatro agentes; mas também pode estar estruturada com três pessoas ou até mesmo duas e nem por isso deixar de ser menos lesiva para a sociedade.
Conclusão
Acredito ser irrelevante o número de agentes que compõe a organização criminosa, pois seja qual for a sua estrutura esta será atingida pela Lei 9.034/95, e isto se deve a um único fator: o atual texto do artigo 1º que abarca o gênero de associação criminosa e suas espécies.
Qualquer alteração executada não trará benefício algum. Como vimos, todos os projetos em andamento no Poder Legislativo não apresentam a solução do problema a que se propõe: a criação de um conceito para organização criminosa. Todavia, resultarão, se aprovados, em um retrocesso legislativo, desmantelando um diploma que já foi decodificado pelo intérprete e cuja aplicação, se não perfeita, é boa.
Claro que é difícil enfrentar uma espécie de crime que afronta o Estado Administração atacando seus agentes, demonstrando um poder de força extremamente perigoso capaz de levar horror e medo a população de uma metrópole como São Paulo, mas pode a simples criação de um conceito resolver tamanho infortúnio?
Não. O conceito de organização criminosa, seja ele construído pela doutrina ou ditado pela lei não deve ser buscado como uma tábua de salvação.
Para uma perfeita aplicação dos institutos disponibilizados pela Lei 9.034/95 não é necessária a criação de um conceito em lei para definir o que seja uma organização criminosa, primeiro por que as organizações criminosas não possuem características exatas e permanentes que permitam a construção de um conceito estanque, e segundo, por que não cabe ao legislador esta tarefa.
Impossível prever no texto legal todas as possibilidades de abrangência delitiva de uma organização criminosa, jamais o Estado de São Paulo, do Rio de Janeiro, ou qualquer outro Estado poderia prever que a criminalidade organizada poderia gerar grandes prejuízos com a paralisação de empresas, do comércio, do transporte, etc.
A elaboração de um conceito deve levar em conta as características básicas existentes nestas organizações, considerando que estas características não podem ser entendidas como elementos de um check list, onde se pode avaliar uma–à–uma delas para descobrir se um determinado grupo é ou não uma organização criminosa.
Organização criminosa é uma espécie de associação criminosa cuja finalidade precípua é a obtenção de lucro e poder. Para alcançar estes objetivos a organização criminosa vai dedicar-se à prática de crimes rentáveis abusando de sofisticada tecnologia, mantendo a perpetuação destas atividades ilícitas sempre precedidas de um prévio planejamento. Na mantença destas atividades a organização criminosa poderá ou não ser constituída de uma hierarquia definida, podendo haver ou não a restrição de membros, tudo dependerá de como a organização criminosa mantém a divisão de tarefas de seus integrantes, e se possui ou não um planejamento empresarial, considerando que esta atuação delitiva ocorre em dimensões de macro e mesocriminalidade, e que a subsistência desta organização criminosa dependerá exclusivamente da simbiose com agentes públicos; na delimitação da área em que atua; na construção de conexões locais e internacionais; e no alto de grau de intimidação que ela vai gerar como um mecanismo de autoproteção, podendo haver ou não o emprego de violência.
Todas estas características formam um conceito in abstrato que deve ser manipulado pelo jurista conforme se apresente o caso concreto.
O atual texto do artigo 1º da Lei 9.034/95 tal qual encontra-se, permite, hoje, uma perfeita persecução criminal de qualquer tipo de organização criminosa, seja qual for a sua estrutura; sendo ela composta por dois agentes quando a lei refere-se a associações criminosas de qualquer tipo; seja de pequena ou média estrutura quando a lei se refere a quadrilha ou bando; ou seja de uma estrutura gigantesca quando a lei refere-se a organizações criminosas.
Não se pode olvidar que cada organização criminosa possui a sua própria característica dentro de um território próprio, interagindo com o meio que a cerca visando obter o maior lucro possível, é uma questão de adaptação e dinamismo, de complexidade. Por isso, não se pode querer conceituar genericamente todas as organizações criminosas, o Estado vai insistir no mesmo erro falho, tratando o fenômeno de forma isolada sem levar em conta sua natureza multicausal.
O que falta ao Estado Administração é abandonar antigos paradigmas e buscar a elaboração de um planejamento estratégico baseado e valorizado em diagnósticos precisos, e em trabalhos científicos e analíticos.
O combate a criminalidade organizada deve partir de diretrizes mistas, com uma maior participação do Estado Social, com políticas que evitem ao máximo a corrupção de agentes públicos, e um processo incisivo que vise mudar a cultura brasileira no que diz respeito à ética e a moral.
Bibliografia
Notas:
Bacharel em Direito pela UNIRITTER de Canoas, RS – Pós-Graduando em Segurança Pública pela PUCRS de Porto Alegre – Soldado da Brigada Militar – Diplomado Emérito pelo Comando Militar do Sul – Pesquisador do tema Organizações Criminosas.
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