Resumo: Critica a decisão de legalização do aborto até o terceiro mês de gestação proferida pela 1a. Turma do STF no HC 124.306.
Sumário: 1. Introdução 2. Abortando a tripartição dos poderes 3. Abortando o bom senso a prudência a realidade e o senso de proporção em favor de "slogans" politicamente corretos 4. Conclusão. Referências.
1-INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem em mira a crítica ao julgamento proferido no HC 124306, da 1ª. Turma do STF, não em relação à matéria que efetivamente compunha o pedido (revogação de Prisão Preventiva), mas com referência ao teor extrapolante, especialmente do voto condutor do Ministro Luiz Roberto Barroso, que passou da análise exigida no caso (que era de conteúdo formal ou processual) para adentrar em matéria de mérito, embrenhando-se pela tipicidade ou não da conduta envolvida, em franca violação à tripartição dos poderes, inclusive porque o caso a isso não se referia.
Efetivamente, apenas este aspecto já seria mais que suficiente para inquinar a atuação do STF nessa decisão, transformando-o, mais uma vez, em carrasco da Constituição ao invés de seu protetor. No entanto, embora esse exercício já se torne por demais cansativo, tendo em vista a caracterização de uma conversa de surdos, onde impera a ideologia em lugar da consideração da realidade dos fatos, será preciso repisar a absoluta falta de sustentação para as alegações de violação de direitos fundamentais das mulheres por causa da incriminação do aborto.
Ao final, serão repassadas as principais ideias desenvolvidas no texto e apresentadas as conclusões respectivas.
2-ABORTANDO A TRIPARTIÇÃO DOS PODERES
Infelizmente o Brasil se torna cada vez mais uma “República das Bananas”, onde impera tão somente a vontade de poder e o capricho de momento. Não há mais regras, não há mais princípios, tudo é moldado de acordo com as conveniências do grupelho interessado ou que gera mais atração em dadas circunstâncias.
A Tripartição dos Poderes é algo secular, um pensamento que tem permeado a ciência política desde os tempos mais longínquos. Aristóteles já previa uma divisão de poderes em sua obra “A Política”. Em estreito resumo dividia as funções estatais em “poder deliberativo”, “executivo” e “judicial”. [1] Também Locke tripartia os poderes em “legislativo”, “executivo” e “federativo”, praticamente subordinando os dois últimos ao primeiro. [2] Mas, aquele que imprimiu uma face mais proporcionada e definida à tripartição de poderes foi Montesquieu ao asseverar na sua divisão entre “executivo”, “legislativo” e “judiciário”:
“Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares”. [3]
Mas, será que essas não são velhas lições repetidas desde tempos quase imemoriais que precisam ser desconstruídas, reformadas por uma visão nova e vanguardista como a de alguns componentes “iluminados” do nosso Supremo Tribunal Federal?
O relativismo doentio disseminado por uma atitude de crítica e desconstrução de toda tradição, de toda lição tradicional que tem seu auge na famosa Escola de Frankfurt [4], indicaria realmente a impropriedade de ater-se a ensinamentos seculares. Ao reverso, seria importante destruí-los até a medula e criar algo novo, não se sabe bem o que, mas algo novo em seu lugar.
Infelizmente esse pensamento obtuso tem dominado muito da suposta intelectualidade contemporânea. Enquanto isso, o conservadorismo tem sido visto como sinônimo de atitude reacionária, teimosia, alienação etc. Tanto é assim que a palavra é utilizada como uma espécie de desqualificação para teorias e pessoas. Ocorre que, na verdade, o conservador não comunga das utopias do revolucionário (que enxerga um futuro paradisíaco) nem das utopias do reacionário (que enxerga um passado de ouro). O conservador, em poucas palavras, sabe valorar as crenças, os costumes, os usos, as leis, as normas, tudo de acordo com o chamado “teste do tempo”. Importa-lhe a sobrevivência das tradições ao “teste do tempo” porque essa sobrevivência revela a “qualidade e validade dessas mesmas tradições” a recomendarem seu reconhecimento e proteção no presente. Realmente não se pode admitir um pensamento segundo o qual muito pouco ou nada foi feito de bom antes de seu tempo, de forma que a antiguidade das tradições seria motivo suficiente para que fossem rechaçadas e destruídas. Ao contrário da virtude da passagem pelo “teste do tempo”, a antiguidade das instituições seria um motivo adequado para que “fossem inapelavelmente destruídas”. [5] Nada mais óbvio que essa espécie de pensamento somente pode levar a resultados desastrosos e que desprezar ou deturpar toda a teorização secular da tripartição dos poderes é uma atitude, no mínimo, estúpida e irresponsável.
No entanto, é exatamente isso que vem ocorrendo quando, de forma reprovável e irresponsável, cheia de “hybris” ou “hubris” [6], se implanta, especialmente no STF, um ativismo judicial pernicioso com franca e descarada invasão de atribuições do legislativo.
Muito embora no bojo do HC124.306 a manifestação sobre a legalidade do aborto até o terceiro mês de gestação tenha sido incidental e não gere, ao menos em tese, vinculação dos demais tribunais, juízes e funcionários da administração da Justiça (v.g. Promotores, Delegados etc.), fato é que houve uma declaração escancarada dessa legalidade e do acatamento de um viés ideológico específico sobre o tema do aborto.
É assustador quando um tribunal superior se arvora a tratar de um tema que sequer era objeto da ação (no caso um “Habeas Corpus”) para simplesmente invadir a seara do legislativo e dar uma “opinião” acerca da validade de uma lei vigente, aproveitando-se claramente de uma ocasião para impor uma ideologia e declarar incidentalmente sim, mas declarar, a invalidade de uma norma legal. Frise-se que a questão discutida no HC julgado não era a respeito da validade ou vigência dos artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro, mas tão somente sobre a legalidade do decreto de prisões preventivas, matéria estritamente processual penal e não de direito material (penal). Houve total desvio do tema que devia ser deslindado na ação de Habeas Corpus para que se adentrasse em considerações acerca da validade dos artigos 124 e 125, CP. O intento, mais que manifesto, foi a criação de uma norma pelo Judiciário em lugar do legislativo, pois que não há a menor dúvida de que o auto – aborto, o aborto consentido e o aborto com o consentimento da gestante, afora o aborto sem o consentimento da gestante, são criminalizados no Brasil. Não se trata de tema duvidoso, tanto que nem mesmo era a questão debatida no respectivo HC.
É claro que sempre se pode dizer que o STF não “descriminalizou” o aborto até o terceiro mês, mesmo porque não o poderia, já que somente uma lei posterior revoga lei anterior vigente. Mas, é preciso ser por demais ingênuo para acreditar que o impacto de uma decisão como a do HC 124.306 não será intensa e não gerará uma enxurrada de decisões de primeiro e segundo graus nela baseadas. Pior, é preciso ser mais ingênuo ainda para não perceber que tais decisões serão efetivas, pois que tendem a serem, na prática, mantidas pelo STF. Isso quer dizer que, na realidade, a despeito de quaisquer teorizações, em não havendo modificação da posição do STF, aquele pretório simplesmente descriminalizou o aborto até o terceiro mês de gestação no Brasil com uma canetada, desrespeitando acintosamente a tripartição de poderes e, desta forma, sutilmente, afrontando a Constituição Federal que deveria defender. Mais que isso, a sutileza do mal é tanta que o faz sob o pretexto de dar concretude à própria Constituição, afirmando, por exemplo, o Ministro Barroso, que ali empregava uma “interpretação de acordo com a Constituição”! Por meio de jogos de palavras se procura ocultar um ataque direto à tripartição dos poderes e um total desarranjo dos chamados “freios e contrapesos”, transformando o Judiciário em uma espécie de extinto “Poder Moderador” outrora existente na Constituição Imperial (1824). Ainda que se diga que há neste caso um simples ato de controle de constitucionalidade difuso (porque concentrado não é, já que não houve ação hábil), é visível que se trata de um ativismo que macula a inércia característica do poder judicial. E mais, se o tema é controverso, como é afirmado no próprio “decisum” criticado, mais um motivo para que o debate seja amplo com a manifestação da sociedade e de um poder com legitimação popular, que é o legislativo. Não cabe ao STF e nem a juiz algum, simplesmente desconsiderar a legislação à qual está atrelado e que constitui um freio ao exercício arbitrário e caprichoso da função judicial.
Neste ponto da discussão pouco ou nada importa se os argumentos sobre a inadequação, necessidade e proporcionalidade da criminalização do aborto são válidos ou não (isso será visto mais adiante). A questão é que o Judiciário, especificamente o STF, enveredou por área que não é de sua competência e desrespeitou os limites que lhe são impostos pela divisão de poderes.
Não sem razão afirma Eros Grau (Ministro aposentado do STF) em artigo cujo título é bastante adequado e sugestivo (“Juízes que fazem as suas próprias leis”), o seguinte:
“A Constituição do Brasil afirma, em seu artigo 2º., a independência e harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário, o que supõe que cada um dos três poderes se limite a exercer as funções que lhe cabem. Daí que o Judiciário não pode legislar. Essa é uma prerrogativa do Legislativo. Não obstante seja assim, a invasão da competência do Legislativo pelo Judiciário é, atualmente, alarmante”. [7]
E prossegue, com grande felicidade na formulação das expressões, descrevendo o fato de que hoje vivemos uma transição medonha de um “Estado de Direito” para um “Estado de Juízes”, em que estes se apropriam absurdamente e de forma estarrecedora “do poder de fazer leis e alterá-las”. Mais uma vez com acerto e parcimônia, Grau esclarece que não se trata de pôr em questão a independência jurisdicional, mas de não perder o foco do fato indiscutível de que em uma democracia os juízes, de qualquer grau, “hão de ser submissos às leis, garantindo sua aplicação” e não demiurgos ungidos de super ou suprapoderes para fazer e desfazer o ordenamento jurídico do país. [8]
Ao tratar da descriminalização transversa do aborto pelo STF via HC 124306, afirma, com acerto, Eros Grau, que “os juízes de hoje em dia, sem saber o que é Direito, fazem suas próprias leis”! [9]
A verdade é que, sem necessitar discutir o mérito, o STF criou por conta própria duas espécies de aborto legal no Brasil nos últimos tempos, passando por cima como um trator do processo legislativo e, consequentemente, da Constituição Federal. O primeiro caso de ampliação do rol do artigo 128, CP foi o dos anencéfalos (ADPF n. 54, de 2012). Agora vem com o aborto até o terceiro mês de gestação no HC 124306. Se diz que não é preciso discutir o mérito, ou seja, que não é preciso avaliar a correção ou não, a conveniência ou não dessas legalizações, porque elas já são viciadas na forma, na origem, por causa do órgão de que emanam (Judiciário e não Legislativo). Fato é que os únicos abortos legais previstos na legislação brasileira são elencados no artigo 128, I e II, CP (para salvar a vida da gestante e no caso de gravidez resultante de estupro). Os demais casos são criações pretorianas teratológicas sob o ponto de vista da divisão de poderes.
3-ABORTANDO O BOM SENSO, A PRUDÊNCIA, A REALIDADE E O SENSO DE PROPORÇÃO EM FAVOR DE “SLOGANS” POLITICAMENTE CORRETOS
Os fundamentos para a proposta de descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, expostos com maior agudeza no voto do Ministro Luís Roberto Barroso, são nada mais que um apanhado de lugares – comuns repetidos, inclusive permeados de frases impactantes tão comuns nos discursos pró – aborto.
É interessante notar que quanto mais rasos os argumentos, mais estes têm chance de impressionar aqueles que não contam com as devidas informações que lhes possibilitem a formação de uma massa crítica. O apelo, por exemplo, ao falso embate entre ciência e religião, nesta e em outras muitas questões, é claramente um recurso utilizado e que não conta com validade intelectual alguma. Muito ao reverso: ou revela má fé de quem o utiliza ou, na melhor das hipóteses, uma ignorância formatada por anos e anos de intoxicação por discursos que abraçam as palavras de ordem politicamente corretas e transformam o discurso público, inclusive o universitário e o supostamente intelectual, em um monólogo repetitivo à exaustão.
O seguinte trecho do voto do Ministro Barroso é suficiente para resumir em linhas gerais toda sua argumentação que, como já foi dito, não passa de uma compilação de velhos argumentos, os quais, agora vindos do chamado “Pretório Excelso” (sic) brasileiro, exsurgem como se fossem uma grande novidade brotada da mente de um ou mais “iluminados”. Esses argumentos rasos e comuns passam a ser dotados de “autoridade” e se transformam naquilo que em retórica se chama de “Argumento de Autoridade”, pois valem, não por sua coerência inerente, mas pela fonte de onde emanam, [10] o que, obviamente, nada tem de científico e muito menos de validade intelectual. Eis o conteúdo:
“A criminalização nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que os homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. A tudo isso se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade, por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o númer de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália”.
Duas observações devem ser feitas antes mesmo de adentrar aos comentários sobre o descabimento e irrealidade dessas argumentações. Primeiro a estapafúrdia menção à violação à proporcionalidade. Isso porque somente pode caber uma violação tal neste caso em uma mente virada no avesso. Ora, então é desproporcional punir criminalmente a mulher que aborta e o abortista, os quais destroem uma vida humana em gestação, a primeira por capricho pessoal, o segundo por dinheiro? O capricho e a cupidez postos em uma balança pesam mais que a vida humana em gestação? Certamente há algo de muito errado com esse tipo de pensamento tresloucado. Em segundo lugar é interessante ver como, além do uso de argumentações ordinárias, que só podem impressionar quem não as conhece de longa data e já sabe de sua absoluta inconsistência, é possível entrever no discurso de Barroso a característica comum a toda abordagem da questão do aborto e que demonstra uma espécie de tática de fuga do problema debatido, uma tática desonesta, diga-se de passagem. Trata-se de uma espécie de “novilingua” orwelliana [11] em que termos mais fortes como “eliminação”, “abortamento”, “morte”, “destruição” etc. são evitados e trocados deliberadamente por expressões assépticas tais como “interrupção voluntária da gravidez” ou, nas palavras de Barroso, “interrupção da gestação”.
Após essas considerações iniciais, passa-se a analisar as argumentações postas para o afastamento da criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, fazendo uso de trabalho já desenvolvido por este autor em outra oportunidade, pois que, como já frisado, os argumentos não são novos, são ordinários e recorrentes na discussão e já exaustivamente desmentidos. [12]
Anote-se, em breve digressão, que Barroso e outros defensores da liberalização do abortamento não tiveram a percepção das consequências nefastas dessa transformação de um fato da natureza em objeto de pura vontade humana. Não perceberam que ao acenarem com a igualdade feminina, empoderavam as mulheres desproporcionalmente a um ponto de gerar, do outro lado, uma desigualdade masculina no que tange ao “direito de não ser pai”, de não “querer” ser pai, direito este que pode ser exercido sem necessidade de eliminação de qualquer vida. A liberação do aborto nos países “desenvolvidos” citados por Barroso, gerou uma polêmica nova e quase tão torpe quanto a morte de conceptos indefesos. A discussão em torno do direito do homem a negar a paternidade; não é o caso de discutir se é ou não o pai biológico, não se está falando de investigação de paternidade, mas da pura e simples negação da paternidade por ato de vontade pelo homem quando a mulher engravida e tem um filho que é, não se discute isso, biologicamente seu. Tudo isso pode soar absurdo, mas o que se pode esperar da criação de um absurdo antecedente senão a multiplicação de absurdidades?
Já é objeto de discussão ferrenha na Europa essa questão a fim de impor um equilíbrio entre os direitos de procriação do homem e da mulher. Barroso cita Portugal e é de lá um dos exemplos de discussão doutrinária dessa questão inusitada, a qual somente poderia surgir onde a maternidade pode ser negada, ceifando uma vida. Se assim é, então por que a paternidade não poderia ser negada também, sem sequer destruir vida alguma, apenas através de uma declaração cartorária? Liberdade, liberdade total, libertinagem geral, pois onde a liberdade não tem correlata responsabilidade é isso que ocorre. Homens e mulheres querem exercer seus direitos sexuais à vontade e jamais arcar com as responsabilidades respectivas. Isso é bonito para falar num discurso feminista, perante uma plateia adequada. Também será “lindo” ver a negação da paternidade por ato de puro capricho ser apoiada pela doutrina, jurisprudência e pela lei. Este é o mundo que se pretende construir sobre os destroços do que é velho, do que é antigo e, só por isso, inservível.
Bruckner já diagnosticou esse mal da contemporaneidade, chamando-o de “tentação da inocência”, com o que designa uma patologia do individualismo consistente no desejo constante de fugir das consequências de seus atos numa tentativa doentia de aproveitar ao máximo as benesses da liberdade, sem arcar com qualquer de seus ônus. Essa “tentação da inocência” produz no ser humano contemporâneo o “infantilismo e a vitimização”. [13] E com isso nasce esse “império espúrio da vontade” que desconsidera qualquer norte moral objetivo, fato este já vaticinado por C.S Lewis ao afirmar que “quando se desbanca quem diz ‘É bom’, permanece o que diz ‘Eu quero’”. [14]
Em obra específica sobre o tema da negação voluntária da paternidade, o autor lusitano, Jorge Martins Ribeiro pontifica:
“Os homens têm sido desconsiderados no respeitante à defesa da sua autodeterminação procriacional, positiva ou negativa, quando em confronto com a vontade da mulher. Os direitos reprodutivos da mulher merecem toda a atenção e em muitos ordenamentos jurídicos, como o português, esses direitos incluem não procriar através da interrupção da gravidez. Os direitos do homem têm sido esquecidos, para dizer o mínimo.
De fato, poderia dizer-se que os seus direitos têm sido negados por uma sociedade que não só decide que uma mulher tem o direito de terminar com uma vida, abortando, mesmo que contra a vontade do presumido pai, mas que também aceita que a mesma mulher, se for o caso, tenha o direito de impor uma criança ao homem, independentemente de saber de antemão que a procriação é contra a vontade dele.
A mulher tem o direito de por fim a uma vida, o homem não tem sequer o direito menos gravoso de rejeitar a paternidade. Ninguém deveria estar inteiramente dependente da vontade de outra pessoa numa sociedade regida pelos princípios da igualdade e da liberdade, todos deveriam se beneficiar da igualdade e liberdade possível em termos de procriação”. [15]
E isso não é uma lucubração de um português lunático. O tema tem sido enfrentado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pelos Tribunais Superiores do Reino Unido e dos Estados Unidos, conduzindo ao reconhecimento da grande relevância dos elementos da intenção e assentimento para a procriação, valorizando sobremaneira o direito decisório do homem quanto ao prosseguimento de um projeto de procriação. [16]
Mas, não seria uma perversão essa permissividade? Sim, claro que sim. No entanto, o que se pode esperar de uma perversão inicial, senão uma ladeira escorregadia de perversões similares ou até piores?
Contudo, será que as argumentações requentadas de Barroso em seu voto condutor não mereceriam alguma acolhida? É o que veremos a seguir:
Nessa temática a primeira abordagem deve ser denunciar a falsidade de algumas argumentações que se apresentam no discurso pró – aborto nem mesmo como argumentações, mas como se fossem pontos incontroversos a partir dos quais toda a discussão deveria necessariamente partir. Um desses pontos é aquele que diz respeito a uma diversificação extremada entre “vida intrauterina” e “vida extrauterina”. Normalmente, quando se inicia um debate e alguém pretende tocar na validade ou no grau de intensidade exagerado dado a essa distinção, de imediato ocorre uma desqualificação por parte do interlocutor que passa a silenciar o adversário com epítetos como “fundamentalista religioso”, “acientífico”, “anti – científico”, “ignorante”, dentre outras afirmações similares. Esse é um claro exemplo daquilo de Fiss chama de “efeito silenciador do discurso”, porque retira arbitrariamente o tema do debate ao mesmo tempo em que desqualifica o outro debatedor por meio das chamadas “fighting words” (“palavras incitadoras de luta” ou injuriosas), “intimidation” (“intimidação”) ou “harassment” (“assédio”). [17]
Um exemplo da distorção a que essa diversificação arbitrária, impensada e exagerada entre vida intrauterina e extrauterina provoca no campo jurídico é bem visível em passagem de decisão do Tribunal Constitucional de Portugal, citada por Ribeiro:
“Só as pessoas podem ser titulares de direitos fundamentais – pois não há direitos fundamentais sem sujeito – pelo que o regime constitucional do direito à vida como um dos ‘direitos, liberdades e garantias pessoais’, não vale diretamente e, de pleno direito para a vida intrauterina e para os nascituros. A verdade é que o feto (ainda) não é uma pessoa, um homem, não podendo por isso ser diretamente titular de direitos fundamentais enquanto tais”. [18]
É assustador perceber como pessoas sobre as quais se supõe ou espera algum nível intelectual ao menos mediano podem ser contaminadas por uma cegueira ao ponto de não perceber que a desumanização sempre tem sido, ao longo da história, o primeiro passo para os genocídios, a extinção de grupos humanos. A desumanização do humano e a sua equiparação a coisas ou animais tem sido, sempre e invariavelmente, o primeiro pretexto e mecanismo psicológico para sua eliminação impiedosa.
Já afirmou Farias em estudo das motivações para matar que a principal delas é
“a negação pelo sujeito da humanidade de seu semelhante, do que resulta a dessubjetivação, a massificação que conhecemos na atualidade seja pelas ações que culminam no extermínio direto – qualquer que seja a modalidade técnica empregada para tal fim -, seja pelo exercício constante da demonstração de poder com o objetivo de intimidar e provocar horror”. [19]
Na verdade, a distinção extremada entre “vida intrauterina e extrauterina” deve necessariamente ser um dos pontos a serem seriamente questionados no que tange à liberação do aborto. É claro que há uma diferença morfológica acentuada entre um homem ou mulher e um ovo, embrião ou feto ou mesmo entre estes e uma criança já nascida. Contudo, com base nessa diversidade meramente morfológica pretende-se erigir uma distinção no campo do “ser em si”, no campo da essência do ser intrauterino ao ponto de destituir a vida intrauterina da proteção legal que a extrauterina possui.
Da observação dessas óbvias diferenças morfológicas se pretende erigir argumentação para afirmar que o ser intrauterino não é um ser humano. Afirma-se com elevado despudor que um ovo, por exemplo, não passa de um “conglomerado de células”. Que os embriões de um macaco, de um rato, de um cachorro ou de um porco são morfologicamente praticamente idênticos e indistinguíveis de um embrião humano, razão pela qual esse embrião poderia ser reduzido ao estatuto das coisas, já que os animais são coisas. Opera-se aí, descaradamente, uma reificação do humano.
O que não se percebe ou não se quer perceber é que a adoção de uma noção como esta, de que um ovo humano é apenas um conglomerado de células, fará com que consequentemente um ser humano adulto ou uma criança nascida também não passe de um conglomerado de células, somente maior. É como se a dimensão, o tamanho fosse o que conferisse humanidade. Nessa toada para chegar ao infanticídio legalizado e ao genocídio dos anões não será muito difícil!
Mais que isso, essa espécie de argumentação revela um despreparo terrível, uma confusão tremenda e diabólica entre essência e acidente. O formato de um ser humano não é aquilo que estabelece sua humanidade. O homem se diferencia das coisas, “não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas”, na dicção de Bubber, [20] não devido ao seu formato em dado momento de sua biografia, mas porque dotado desde o início de humanidade que se revela por um “eu substancial” que a sustenta sempre desde o início de sua existência. A hipótese do despreparo ou ignorância profunda sobre essência e acidente não é a única, embora já fosse suficientemente lamentável. Fato é que pode ser o caso de pura má fé e uso deliberado de uma espécie de falácia, identificada por Aristóteles como “accidentis fallacia”, a qual deriva “da identificação de uma coisa com um seu acidente ou atributo acidental”. [21]
A descoberta daquele “eu substancial” é tão fácil que se torna difícil compreender como uma puerilidade que confunde essência e acidente pode por em cheque a vida humana intrauterina. Qualquer pessoa sabe da presença constante desse “eu”, mesmo nas fases de sua vida das quais não se recorda. Isso pelo simples fato de que (salvo os esquizofrênicos não medicados) não existe ninguém que tenha experimentado ser um dia si mesmo e noutro momento outra pessoa. Esse “eu” imutável permanece sempre e estava presente quando cada um de nós era aquele ovo ou como gostam de dizer “aquele pequeno conglomerado de células”, que hoje é um “conglomerado maior ambulante e pensante”.
O método da eliminação hipotética, tão íntimo dos penalistas, serve como uma das demonstrações claras e evidentes do acima mencionado. Digamos que o ovo que qualquer um de nós foi um dia houvesse sido eliminado. Nós existiríamos neste instante? Obviamente que não.
Outro exercício interessante é ter em mente que todos nós passamos o tempo todo por processos de renovação celular, de modo que se olharmos uma foto nossa na infância, além da praticamente total diferença morfológica, física e fisionômica, não há mais em nosso corpo uma única daquelas células. Então, por isso, nos tornamos outra pessoa e amanhã seremos outra ainda e outra depois de amanhã numa mutação infinita, lembrando o filósofo pré – socrático Heráclito que afirmava:
“Não se pode descer duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai. (…). Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos”. [22]
Será que tomar ao pé da letra as palavras de Heráclito pode ser uma boa solução para o problema da existência, do “eu”? É claro que não! Nem mesmo o filósofo imaginou isso sob pena de criar um pensamento segundo o qual não existe identidade alguma. Ele teve sim o “insight” sobre a “impermanência” da matéria. Mas, não é a matéria que imprime identidade ao ser humano, o que sustenta nossa existência é um “eu substancial” que transcende o corpo e até mesmo a mente. Esse algo imutável que constitui o que somos essencialmente e que somente pode ser captado metafisicamente. Por isso todos nós éramos o ovo, depois o embrião, depois o feto, depois a criança, o adolescente, o jovem, o adulto e o ancião. Morfologicamente mudamos ao longo dessa escala temporal, mas nosso “eu substancial” não se submete a escala alguma e é ele que garante objetivamente que eu sou eu mesmo, que eu existo e não sou nem posso ser outro, assim como não posso me reduzir a nada. E para o reconhecimento claro e evidente disso não é preciso ser adepto de qualquer crença religiosa. Apenas é preciso enxergar o óbvio, o notório.
O formato ou a morfologia é mero acidente, ele não diz nada, absolutamente nada a respeito do “ser”. No entanto, opera-se essa horrorosa confusão entre o mero acidente e a essência da humanidade do homem. É preciso indagar de onde provém tamanho engano. E a resposta já foi mencionada várias vezes no decorrer deste texto.
Especialmente a partir do Século XIX, com o evento do “Positivismo” em suas diversas faces (científico, social, político, religioso, jurídico etc.) [23] operou-se uma sobreposição do Saber Científico, restando aos demais Saberes uma posição subalterna, senão de total exclusão. Desse reducionismo resulta uma perversão da Ciência e de todo o Saber Científico, que é o “Cientificismo”, ou seja, exatamente a redução de todo saber válido ao Saber Científico. O restante não passa de elucubrações inúteis, superstições ou ignorâncias. Esse reducionismo é prejudicial inclusive para a própria Ciência, cuja natureza é a de um saber sempre aberto, jamais fechado sobre si mesmo e movido por preconceitos. Daí em diante torna-se fácil compreender como se pode chegar a um absurdo como a negação da própria identidade. Isso mesmo, porque todo aquele que diz que um ovo no útero materno não é um ser humano, confunde acidente com essência e acaba por negar a própria identidade e desconhecer o próprio “eu substancial” que o compõe. Uma pessoa assim não sabe o básico para que se possa ter um mínimo de sanidade mental, ou seja, não sabe que ela é ela mesma. Porque, seguindo seu raciocínio, essa pessoa não é aquela criança que foi, é outro, não é o adolescente, o jovem, é sempre outro e, como de hoje para amanhã vários milhões de células serão trocadas, inclusive em seu cérebro, então amanhã será outra pessoa (Imagine o problema que isso causaria nos Institutos de Identificação, quantos RGs precisariam ser emitidos por segundo?). É o reino da loucura! E nesse reino o louco será aquele que tem segurança de sua identidade, no reino da loucura a inversão é a regra. Acontece que essa é a consequência do cientificismo porque se a ciência é o único conhecimento válido então se fica refém de seus estreitíssimos limites. E que limites são esses? São os limites do fenômeno, daquilo que é mensurável, classificável, palpável, material, quantificável. A Ciência não tem instrumentos para o acesso ao ser em si, ela permanece e permanecerá sempre na epiderme do fenômeno que se apresenta aos olhos e às mãos e são olhos que enxergam, mas não veem, mãos que tocam, mas não sentem. Realmente, fechado no mundo científico que só analisa e leva em conta aquilo que é capaz de acessar, ou seja, o formato, o tamanho, o peso, a composição material, conclui-se facilmente que um ovo ou mesmo um embrião ou feto podem ser descartados como coisas em meio a outras coisas do mundo material.
Há um movimento paradoxal em tudo isso, pois na base do cientificismo encontra-se uma degradação do humano e, concomitantemente, uma pretensa divinização do homem conforme constata Girard:
“Nos sécs. XVIII e XIX, por outro lado, os ocidentais fazem da ciência um ídolo para melhor adorar a si mesmos. Creem em um espírito científico autônomo, do qual seriam simultaneamente os inventores e o produto. Substituem os antigos mitos pelo mito do progresso, em outras palavras, pelo mito da superioridade moderna propriamente infinita, o mito de uma humanidade se libertando e se divinizando pouco a pouco por seus próprios meios”. [24]
Além disso, a contraposição entre Ciência e Religião, especialmente a Católica no que diz respeito ao estatuto do produto da concepção, não passa de uma falácia das mais aberrantes. Em primeiro lugar foi com o desenvolvimento da embriologia que a Igreja Católica alterou ao longo do tempo sua ideia a respeito do início da vida humana intrauterina. É a genética que demonstra a identidade diferenciada entre a mulher e o produto da concepção que ela carrega.
Preleciona Meilaender:
“O pensamento católico medieval, fortemente influenciado por Tomás de Aquino, inclinava-se por uma diferenciação entre o feto formado e o informe e pela visão criacionista de que a alma era infundida por Deus no feto formado. Porém, com o passar do tempo, sob pressão tanto do argumento teológico (i.e. pontos de vista traducionistas, que tornavam relativamente irrelevantes as distinções entre os estágios de desenvolvimento fetal) e os novos dados do conhecimento científico, a criação da alma retrocedeu ao momento da concepção, amenizando assim a importância de qualquer distinção entre o feto formado e o informe. George H. Williams observa que ‘a teologia moral católica, em sua modificação do criacionismo de Tomás de Aquino a Pio XII. , manteve-se na realidade muito próxima dos fatos genéticos e embriológicos’ à medida que a compreensão desses fatos foi mudando paulatinamente” (grifo nosso). [25]
A conclusão de que a vida humana existe no momento da concepção é adotada após estudos da Academia de Ciências do Vaticano, no seio da qual há nada menos que 29 prêmios nobel, dentre 80 cientistas categorizados. Quantos prêmios – nobel há no Brasil ou, pior, no STF? [26]
Algumas simulações mentais podem aclarar ainda mais a essencialidade do produto da concepção, distinguindo-o totalmente do acidente.
Inicie-se com a vida não – humana. Imagine-se que um dia os movimentos ambientalistas ganhem uma dimensão tal que nunca mais seja cortada uma única árvore, nem mesmo um pé de alface seja colhido e ninguém mais sequer se alimente de verduras. Os vegetais são então reconhecidos como dotados do direito intocável à vida. No entanto, concomitantemente, todas as sementes que surjam são imediatamente destruídas. Qual o resultado disso? Um mundo florido e verde? Não. Um deserto de dimensões globais. Por quê? Porque na semente está a árvore em potência. Se a potência é cortada, a árvore não brota. Então, numa semente reside a essência de uma árvore ou de um vegetal qualquer, de modo que olhar para o seu formato e concluir que isso não é verdade consiste no erro de confundir essência com acidente.
Agora vamos para a vida humana. Digamos que em dado momento o pacifismo também adquira foros de universalidade absoluta. Não há mais guerras, genocídios, homicídios, chacinas, agressões ou quaisquer espécies de violência. A paz impera em todo o globo. Contudo, sempre que uma mulher engravide, o ovo é retirado de imediato, não se permitindo mais nenhum nascimento. Dessa forma a Terra será um paraíso de paz e prosperidade onde a humanidade habitará para sempre? Claro que não! Em pouco mais de cem anos não haverá mais um único ser humano perambulando sobre a superfície do globo. Por que isso ocorre? Nenhum homem, mulher ou criança foi morto? O que aconteceu? Foram destruídos todos os ovos fecundados no útero de mulheres e a humanidade sumiu. Por que sumiu? Porque no ovo fecundado humano está a essência da humanidade. Se ele não tem ainda o formato de um ser humano desenvolvido isso é mero acidente. Veja que se no produto da concepção não houvesse algo de essencial, sua eliminação em nada afetaria a existência da humanidade. Quando o acidental é eliminado, o essencial permanece, mas o inverso não é verdadeiro.
O fato insofismável é que, conforme observa Machado, somente é possível erigir uma legitimação para direitos individuais, personalidade, dignidade humana, dentre outras conquistas seculares, mediante o apoio no transcendente e não no mero materialismo. Nas palavras do autor:
“A partir do momento em que os seres humanos se autodefinem como meros animais inteligentes e a dignidade assume um caráter convencional e contratual, sem qualquer fundamento transcendente, a mesma começa a ceder em domínios importantes como o aborto, a eutanásia ou o infanticídio. No quadro de uma visão do mundo sem Deus, a afirmação da dignidade humana, constante da generalidade das constituições, é uma construção social desprovida de um significado que não seja ilusório. A ‘morte de Deus’ conduz, inexoravelmente, à morte do Homem”. [27]
Fato é que, desde que se passou, à revelia do conceito original de pessoa advindo do cristianismo e que acabou servindo de base para o mesmo conceito iluminista laico, para o qual basta ser nascido de homem e mulher para adquirir o estatuto do humano e ser considerado uma pessoa e não uma coisa ou animal, a levar em conta alguns caracteres específicos para reconhecer o indivíduo como pessoa (v.g. capacidade de comunicação, de autodeterminação, condições de saúde física e mental, racionalidade, vida de relacionamento etc.). Desde que se passou a elencar caracteres ou pressupostos para catalogar uns como pessoas e alijar outros, cada vez mais se opera uma seletividade muito similar aos racismos, às mentalidades excludentes e genocidas de toda espécie, no bojo das quais uns são humanos outros não, uns são mais humanos, outros menos. O homem já não é humano porque simplesmente o é, ontologicamente. Ele o será se detiver certas características físicas e mentais. Assim se justificam tratamentos indignos da humanidade e até mesmo a eliminação pela morte.
Como bem salienta Meilaender:
“Em décadas recentes, tornou-se comum definir a pessoalidade segundo determinadas capacidades. Para ser pessoa é preciso ter ciência e autoconsciência e ser produtivo. O esquema de classificação será maior ou menor dependendo do volume de critérios empregados na definição do que seja pessoalidade. Todavia, seja como for, a classe dos seres humanos será maior do que a das pessoas. Nem todos os seres humanos vivos poderão ser enquadrados nessa classificação – e, é forçoso observar, as pessoas é que são consideradas hoje em dia como detentoras de direitos, as pessoas é que podem ter interesses que devem ser protegidos”. [28]
Fato é que por trás de toda essa reificação do humano, seu distanciamento do estatuto da humanidade mediante a eleição de alguns caracteres, está uma quase indisfarçável tentativa de produzir uma nefasta dessensibilização gradual das pessoas.
É indubitável que a distância social produz a desumanidade. Tornar o “outro” distante (física, social, biologicamente etc.) possibilita a aceitação de certas medidas extremas que seriam vedadas a um semelhante. E esse distanciamento só é viável porque subjaz a ele uma noção corriqueira, tradicional de categorização e hierarquização dos seres quando se trata de sua consideração sob o aspecto dos deveres morais.
Por outro lado, a aproximação, a promoção da empatia ensejam um campo fértil para o sentimento de obrigação perante o “outro”. Martin Hoffman afirma que o sentimento de empatia pelos que sofrem, que estão em situação de perigo, de privação, em suma, vítimas potenciais, é que enseja, por meio do partilhar de sua aflição, o desejo de agir para ajudar. Empatia e altruísmo andam juntas nas relações interpessoais, sugerindo-se que o “afeto empático”, a capacidade de “colocar-se no lugar de outra pessoa, leva as pessoas a seguir certos princípios morais”.[29]
A chamada “experiência Milgram”, levada a efeito pelo psicólogo e sociólogo americano Stanley Milgram, veio a confirmar a existência de uma “razão inversa entre a disposição para a crueldade e a proximidade da vítima”, ou seja, a constatação empírica de que “é difícil alarmar uma pessoa que a gente toca”, mas é bem mais fácil “infligir dor a uma pessoa que vemos apenas a certa distância”; ainda mais fácil “no caso de uma pessoa que apenas ouvimos”; e facílimo é “ser cruel com uma pessoa que nem vemos nem ouvimos”. Em resumo, “quanto maior a distância física e psíquica da vítima, mais fácil (…) ser cruel”(grifo nosso).[30]
Por mais que se respeite a tentativa de argumentação do “decisum” do STF e especialmente o voto do Ministro Barroso, é preciso salientar que este vai além no despreparo quanto a questões até mesmo de terminologia filosófica sobre o assunto que pretende solver, inclusive invadindo seara que não é de sua competência e sim do legislativo. Barroso não somente se deixa contaminar pelo erro crasso de confundir acidente e essência. Não, ele também faz sutil menção ao conceito originalmente aristotélico de “potência” de forma absolutamente equivocada.
A certa altura afirma o Ministro:
“O bem jurídico protegido – vida potencial do feto (sic) – é evidentemente relevante” (grifo nosso).
Ora, o ovo, embrião ou feto não tem “vida potencial”, tem vida “em ato”, é vida. Barroso tropeça nos conceitos filosóficos de potência e ato. A discussão acerca do estatuto do nascituro diz respeito, embora equivocadamente como já demonstrado (por confusão entre acidente e essência), à questão sobre definir se o produto da concepção já é uma “vida humana” (aqui se qualifica a vida, não qualquer vida, mas a humana). Quanto a ser vida não há dúvida, como não há dúvida de que um vegetal é um ser vivo, um animal qualquer, um protozoário etc. Isso é fora de questão. Portanto, dizer que o bem jurídico tutelado no crime de aborto é a “vida potencial” é algo assustador especialmente quando emana de um indivíduo do qual se esperaria maior preparo e que compõe um órgão que, ao menos em tese, diz o Direito com maior qualidade num país.
Em palavras simples, o ser em potência é o que tem a capacidade ou os atributos para vir a ser, enquanto que o ser em ato já é. Na lição de Reale e Antiseri:
“Potência e ato são dois significados não definíveis em abstrato, mas ‘demonstráveis’ por meio de exemplos ou de uma experiência direta. Por exemplo, vidente é aquele que neste momento vê (vidente em ato), mas também aquele que tem olhos sãos, mas, neste momento os fechou, e não está vendo: este é vidente porque pode ver, e neste sentido é em potência”. [31]
Ora, ser vivo em ato é aquele que tem vida (não importa qual vida), aquele que está vivo. Ser vivo em potência seria aquele que não está vivo e pode vir a viver. Ou seja, na natureza, humana, animal ou vegetal, não há sequer exemplo disso porque ou se está vivo em ato ou se está morto ou se é um ser inanimado. Não há o morto que vem à vida. Estátuas não se transformam em seres humanos a não ser no mito de Pigmaleão [32], cadáveres ou suas partes costuradas não se tornam um homem, a não ser na lenda de Frankenstein. Por isso, ao contrário do que afirma desastrosa e equivocadamente Barroso, o bem jurídico tutelado nos crimes de aborto jamais pode ser a “vida potencial do feto” (sic), isso pelo simples motivo de que o feto, ovo ou embrião é vida em ato, é um ser vivo, ainda que se o considere tão somente um “conglomerado de células” (sic) (não se discute aqui se já com foros de vida humana, isso já foi objeto de abordagem antecedente), mas vida ali existe em ato, não em potência. É um erro crasso, ao ponto de se desconfiar que há ali uma atitude intelectualmente reprovável que consiste em “fingir que não se sabe o que se sabe”. Ou seja, é praticamente inacreditável que Barroso e outros Ministros do Supremo não saibam distinguir potência de ato. O que parece é mesmo um emprego espúrio daquilo que já se identificou neste texto como o uso de uma “novilíngua” orwelliana. Contudo, neste caso, fica muito feio para aquele que escreve, porque dá a nítida impressão de uma ignorância terrível sob o ponto de vista filosófico. Também é por demais condenável em todo esse debate a prática daquilo que Schopenhauer chamava de “dialética erística”, definida como “a arte de disputar, mais precisamente a arte de disputar de maneira tal que se fique com a razão, portanto, per faz et nefas (com meios lícitos e ilícitos)”. [33]
Há, porém, outros argumentos, além dessa manifesta ignorância filosófica para a defesa do abortamento legal.
Como já foi mencionado alhures o chamado “efeito silenciador do discurso”, apontado por Owen Fiss, importa tratar de outra temática que está diretamente ligada a isso. Refere-se à total e absoluta vedação pretendida pelos defensores do aborto quanto à participação de entidades religiosas ou mesmo pessoas crentes nos debates sobre o tema. Também a pretensa barreira contra qualquer espécie de argumentação de natureza espiritual ou religiosa. A falácia consiste na afirmação de que vivemos num “Estado Laico”, onde as religiões não podem exercer qualquer influência política ou social e o poder temporal é separado do poder religioso.
Todo indivíduo ou grupo que acena com o chamado “Estado Laico” com a finalidade de alijar as religiões, os religiosos e o saber religioso dos debates democráticos atua com um cinismo tenebroso. Trata-se de acenar com um ou alguns direitos que, no caso são a laicidade do Estado e a liberdade de expressão para, exatamente com esses mesmos direitos, impedir o legítimo exercício deles mesmos por outro grupo que se pretende, a qualquer custo, calar. O procedimento, além de cínico é torpe e dissimulado, pois consiste em fazer-se passar por vítima, dizer-se calado pela fala das religiões ou dos religiosos, oprimido por esses argumentos, quando, na verdade, se está obrando para a consecução do fim que é exatamente calar e oprimir as religiões e os religiosos, alijando-os do debate democrático e tornando-os uma espécie de cidadãos de segunda categoria somente porque escolheram adotar uma religião. Metaforicamente a conduta é a mesma daquele indivíduo forte e hábil em artes marciais que, pretendendo dar uma surra em outro sujeito quase indefeso, se fecha em um quarto com ele e o espanca, mas a cada pancada dá um grito de dor e desespero, pedindo socorro, dizendo que está sendo agredido pelo pobre coitado que ali dentro só apanha e está inclusive com a boca tapada. Mais que cínico e torpe, o procedimento é covarde.
O cinismo e a torpeza desse recurso tem um fundamento que o faz parecer convincente. O fundamento é a arte de todo mentiroso. Essa arte consiste em ter ciência de que as melhores mentiras são aquelas que andam pelas bordas, bem próximas da verdade ou aquelas que penetram na verdade e a contaminam por dentro como um vírus maléfico.
É verdade que o Brasil é um “Estado Laico”. Porém, essa verdade é distorcida para dar a aparência de que um Estado Laico seria um Estado ateu ou pior, antirreligioso. A laicidade de um Estado somente quer dizer que não se mistura Religião com Governo temporal, que não há nesse Estado uma “Religião Oficial”. Mas, ao reverso do que se pretende falsear com o discurso que pretende calar e deslegitimar as religiões enquanto instituições respeitáveis no Brasil e em qualquer Estado Laico, esse modelo estatal tem por fim possibilitar a total liberdade religiosa, exatamente porque respeita essa face da potencialidade e do desenvolvimento humano, que é a religiosidade, o saber religioso. O Estado Laico, longe de ser ateu ou antirreligioso, é implantado exatamente para garantir a existência das mais variadas religiões e inclusive a liberdade de não aderir a nenhuma delas, de ser ateu, agnóstico, o que se quiser, sem qualquer espécie de repressão. Então, nesse discurso maldoso há uma verdadeira inversão do conceito de Estado Laico.
É imprescindível lembrar com Machado que “a laicização do Estado significa democratização política e religiosa”, a permitir a tutela “da liberdade religiosa individual e da separação das confissões religiosas do Estado”. Muito longe de impedir as manifestações religiosas nas mais variadas formas e nos mais diversificados contextos sociais, a laicização estatal
“traduz a ideia de que a religião pode legitimamente ocupar um lugar no espaço público na medida em que isso reflita não uma imposição coerciva de autoridades políticas e religiosas, mas a autonomia individual e o autogoverno democrático das comunidades”. [34]
E prossegue o autor com acuidade, deixando claro que não é admissível uma abusiva utilização da separação entre Estado e Religião e da própria neutralidade religiosa e ideológica como espécies de “barreiras de proteção de uma visão secularizada do mundo contra qualquer manifestação da religião”. [35]
Dessa forma, nada mais óbvio do que o fato de que as comunidades e indivíduos religiosos podem perfeitamente “influenciar a opinião pública e a vontade política no quadro de uma esfera pública plural”. [36] Caso contrário a mesma opressão religiosa apontada como justificativa para o Estado Laico, ocorreria de forma invertida, configurando uma opressão antirreligiosa ou ateia.
Ademais, se o Estado é Laico, isso não significa que a Sociedade deva ser laica também. Aliás, muito ao contrário, como já dito, um Estado Laico existe exatamente para garantir no seio da sociedade a liberdade e pluralidade religiosa e de culto.
Percebe-se que no bojo de um Estado Laico, a liberdade religiosa é um direito de todo cidadão (liberdade de seguir uma religião qualquer ou não). Mas, de nada adiantaria dar ao cidadão a liberdade religiosa se este não a pudesse expressar livremente. Daí vem o correlato direito à liberdade de culto. O culto é uma expressão da religiosidade das pessoas e grupos, bem como é uma variante da liberdade de expressão.
Em suma a liberdade religiosa e de culto pressupõem e jamais afastam a liberdade de expressão, esses direitos atuam como uma rede garantista do cidadão. Dessa forma, ao reverso de ser alijado do debate democrático porque se é religioso, porque se trata de uma instituição religiosa ou porque se põe à mesa argumentos de índole religiosa, a liberdade de expressão, que serve a todos, religiosos ou ateus, garante a participação livre e desimpedida dos crentes em toda e qualquer discussão (aborto, desarmamento, células tronco, pena de morte etc.).
A busca da verdade jamais prescinde de uma real liberdade de expressão que permita o trânsito por “todos os domínios, como o político, o moral, o econômico, o científico ou o religioso” pressupondo o “respeito por dimensões nucleares dos direitos de personalidade”. [37]
Seria mesmo o cúmulo do absurdo o pretendido por pessoas que atuam de forma indecorosamente falseada ao tentarem expulsar à fórceps as questões religiosas dos debates. Isso porque o cidadão não pode ser compelido a abrir mão de vários direitos e garantias individuais para que possa exercer outras. Esses direitos e garantias democráticos que estão insculpidos principalmente no artigo 5º., da Constituição Federal de 1988, mas se espalham também por toda ela, não são obviamente incompossíveis ou excludentes, mas conformam um conjunto indissolúvel. Seria uma insanidade, se não fosse pura má fé, o intento de sustentar o argumento de que se uma instituição, grupo ou pessoa individualmente escolhe exercer seu direito à liberdade religiosa, abraçando uma crença qualquer, teria de abrir mão de vários de seus direitos políticos e sociais, bem como de garantias individuais, transformando-se em um cidadão de segunda categoria ao qual seria impedida a participação nos debates públicos, o exercício da influência política nos rumos tomados pela nação ou sequer a emissão de opinião. Ou seja, para exercer a liberdade religiosa e de culto, haveria o cidadão de abrir mão do seu direito de expressão e participação democrática na sociedade brasileira! Claramente nada disso tem a ver com o Estado Laico naquilo que se denomina como uma “laicidade aberta”. Pode, no máximo, ser reconhecida como uma “laicidade de combate”, expressão esta que nada mais é do que um eufemismo para ateísmo militante e postura antirreligiosa.[38] A inversão de valores, a deturpação e perversão dos direitos e garantias são tão óbvias que causa espanto o fato de que não tenha sido denunciada com mais veemência pelos próprios prejudicados e, mais que isso, pela Imprensa em geral, que, ao menos em tese, deveria ser imparcial, divulgar informações verdadeiras e sinceras à população e não meramente repetir discursos entremeados ou totalmente contaminados por falsidade, erro, má fé, cinismo e torpeza. Afinal, a liberdade de imprensa não chega a permitir que esta possa agir de forma imprudente, disseminando informações falsas e equivocadas. Cabe à Imprensa, em qualquer manifestação informativa, averiguar a sua veracidade. No mínimo, cumprir a regra básica, que é dar a palavra ou ouvir os dois lados. Com a liberdade de imprensa vem junto o denominado “dever de cautela”. [39]
O mais impressionante é que os mesmos que alegam a ilegitimidade de qualquer participação de entidades religiosas sérias e tradicionais nos debates públicos admitem, com absoluto descaramento, a atuação de ONGS muitas das quais financiadas por recursos públicos e sem qualquer representatividade. Também impressionante é perceber a falta de coerência quando se afirma que os argumentos religiosos não são válidos, que as entidades religiosas não podem participar do debate público num Estado Laico, que os crentes devem ser expulsos da “ágora”, [40] mas, quando um grupo religioso, inclusive dotado de grande poderio midiático, se manifesta, sabe-se lá por que razões estranhas, pela defesa do aborto, mesmo em franca oposição ao suposto embasamento cristão de sua “doutrina”, todas as portas são imediatamente abertas. Ora, se argumentos religiosos são impedidos no chamado Estado Laico pervertido na argumentação supra, pelo menos deveria haver alguma coerência quanto a negar também validade a qualquer apoio religioso ao aborto. Ou bem os argumentos religiosos não são válidos ou são. O que é incoerente é que os argumentos religiosos contrários ao abortamento sejam inválidos porque o Estado é Laico e a Religião é “opressora” (sic). Mas, quando argumentos favoráveis ao aborto têm origem numa congregação religiosa, podem ser aceitos, são legítimos e certamente são recebidos como um exemplo de mentalidade aberta, inclusive com o uso de um vocabulário muito próximo ao religioso, onde se fala de amor, fraternidade, caridade etc. Falando em Religião, os romanos tinham um deus que pode simbolizar essa espécie de pessoas incoerentes. Era Jano. Ele tinha duas caras uma na frente e outra atrás. Sinceramente, este autor nunca confiou em alguém com duas caras pelo simples motivo de que isso revela grave falha de caráter. [41]
Ademais, como já visto, um Estado Laico jamais pressupõe uma Sociedade Laica, muito ao contrário. E efetivamente a sociedade brasileira não é de forma alguma laica, ela é profundamente e amplamente religiosa. O Brasil apresenta uma riqueza em termos de religião não encontrável facilmente ao redor do mundo. Se é assim, a pretensão esdrúxula de calar os religiosos e as entidades religiosas, cuja liberdade de expressão merece todo o respeito, se constitui não numa “ditadura da maioria”, mas numa insólita “ditadura da minoria”. Num Estado Democrático, onde impera a liberdade de expressão, nem mesmo a maioria pode mandar a minoria “calar a boca”. Considera-se que a minoria de hoje, pode, por meio da livre manifestação e irradiação das ideias, tornar-se a maioria de amanhã. [42] Mas, se isso de a maioria não poder mandar a minoria “calar a boca”, o inverso, que é o fato incrível de uma minoria ter a pretensão de mandar uma maioria “calar a boca”, é ainda mais inviável e insustentável. Na verdade é algo que só pode acontecer quando há um entorpecimento profundo do intelecto e da visão crítica provocados pela mídia silente ou colaboracionista, pela intelectualidade parcial, muitas vezes também entorpecida por ideologias e pela própria apatia de uma maioria incapaz de denunciar contundentemente a falácia do discurso que a pretende calar. Neste ponto incumbe ao Estado Constitucional de Direito, além de conferir a devida proteção aos indivíduos e às minorias teológicas e políticas contra a opressão das respectivas maiorias, também “garantir uma medida razoável de liberdade à maioria, por imperativos democráticos e de direitos fundamentais”. [43] Isso considerando o fato de que “numa ordem constitucional livre e democrática, a maioria deve respeitar as minorias e estas devem respeitar a maioria”. É imprescindível um espaço amplo “para a ponderação e concordância prática dos diferentes direitos e interesses em presença”. O Princípio da Neutralidade não pode ser utilizado pervertidamente para proibir “a presença de qualquer conotação religiosa na esfera pública”. [44] Não é outra a orientação do jurista Ives Gandra Martins ao destacar que o Estado laico não implica antirreligiosidade legitimada. Ademais, se falamos de minorias e maiorias, o mesmo jurista indica pesquisa do Datafolha que conclui que mais de 70% dos brasileiros têm religião; mais de 90% creem em Deus; e apenas 3% não acreditam em Deus nem têm religião. Isso, ao defender-se uma “laicidade de combate” ou um “laicismo ateu” (sic) do Estado brasileiro, equivaleria a concordar que uma parcela ínfima e pífia de 3% pode e deve impor suas concepções a 97% da população. [45]
Segundo Lambas:
“A liberdade de consciência (ideológica ou de pensamento) inclui a liberdade das ideias e crenças, sejam religiosas ou não, e também inclui a liberdade interior de expressão e acomodação da conduta a essas ideias e crenças” (grifo nosso). [46]
Mas, o que se vê é a proliferação de um discurso que pretende silenciar uma enorme parcela dos brasileiros e aviltar seus sentimentos, consciência e crenças como se fossem alguma peste e não somente mais uma corrente de pensamento dotada de todos os direitos à expressão cabíveis a quaisquer grupos sociais. Não somente a adesão a esse intento de silenciamento, mas também a indiferença ou apatia diante de toda essa falácia constitui uma imoralidade, lembrando uma passagem literária de Kraus:
“Os contemporâneos, que consentiram que acontecesse o que fica registrado, renunciem ao direito de rir, em prol do dever de chorar”. [47]
É notável a inversão ou perversão do discurso quando se analisa a própria origem e motivação político – sociológica do surgimento da laicidade. Nas palavras de Machado:
“Um dos objetivos iniciais subjacentes à insistência na neutralidade do Estado e na separação das confissões religiosas do Estado consistiu em impedir que uma pessoa não religiosa se sentisse pressionada ou coagida pela presença esmagadora da religião e dos símbolos religiosos no espaço público. No entanto, um excesso de zelo ou de ambição nesse domínio terá conduzido, nalguns quadrantes, ao extremo oposto. Presentemente a predominância de um discurso público secularizado acaba por pressionar e coagir as pessoas com crenças religiosas no sentido da conformidade e do abandono de suas crenças. Neste momento, as visões religiosas encontram-se a perder terreno no espaço público relativamente às perspectivas antirreligiosas, podendo gerar-se uma situação de desigualdade e assimetria que nada tem de religiosamente neutro. A neutralidade religiosa tende a resvalar para a neutralização da religião”. [48]
Há aqui uma via de mão dupla, nem ateus podem ou devem pretender impor seu ateísmo aos crentes, mediante o vilipêndio das leis e da constituição, nem também podem ou devem os crentes impor sua crença com infração às leis e à constituição a quem quer que seja. Um dos grandes problemas é que, como visto, em nosso país é o Tribunal Superior encarregado da defesa da Constituição o primeiro a impor um paradigma em detrimento de uma lei clara e induvidosa e desobedecendo a divisão de poderes imposta pela Constituição Federal. Isso é efetivamente uma “violência jurídica”.
Como preleciona Sullivan:
“Uma pessoa que acredita que a sociedade deve ser governada apenas por leis coerentes com a sua fé religiosa não é um teocrata enquanto apenas tentar persuadir a maioria da sua razão, e se restringir a uma atividade constitucional”.
E prossegue:
“Vale a pena insistir aqui no significado específico de laicismo. Não é antirreligioso, como tantas vezes se pretende. O laicismo por definição, apenas pretende que as instituições públicas e a lei pública estejam separadas do dogma religioso ou de seus ditames. Uma sociedade laica pode ser uma sociedade onde a grande maioria das pessoas tem uma fé religiosa profunda, mas na qual as políticas lidam com leis que são, o mais possível, indiferentes às convicções religiosas dos cidadãos e claramente separadas delas”. [49]
Neste ponto é preciso fazer justiça ao Ministro Barroso, o qual, em seu voto, não afirma diretamente que os religiosos não podem ter suas convicções e as expressar e defender. No entanto, sua concepção de neutralidade estatal no campo da laicidade é claramente contaminada por uma ideologia antirreligiosa que, como já visto, nada tem a ver com laicismo. Observe-se sua manifestação sobre a temática:
“Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro. Em temas moralmente divisos, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode – ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não pode escolher um”.
Há uma nítida condução para a conclusão pela liberação do aborto na argumentação escolhida pelo Ministro Barroso. O mais evidente é o fato de que reduz a motivação para a criminalização do abortamento às convicções religiosas, o que não é verdade. O Ministro fala como se o aborto só fosse crime no Brasil por causa de convicções religiosas de um grupo de pessoas que pretende impor às outras, via penalização criminal, seus dogmas. Pode haver aí uma verdade parcial, ou seja, que há o elemento sim de influência da religiosidade do povo brasileiro, mas daí a concluir que isso é o único fator para a previsão criminal, perfaz-se um longo e tortuoso caminho. No seguimento, com base nesse falseamento, aduz a necessária neutralidade do Estado em relação ao aborto porque se trata de um tema “moralmente diviso”. Então quem quiser aborte, quem não quiser não aborte, como é comum ouvir no vulgo abortista.
Toda a fala do Ministro é dominada por um pensamento nitidamente relativista, o que desde logo a deslegitima sob o ângulo qualitativo, pois conforme aduz Kaczor:
“(…) pretender que todos os pontos de vista são igualmente justificados já é vigorosa tomada de posição: a do relativista para quem o diálogo filosófico parece sem propósito, ao menos se endereçado à clareza a respeito da natureza do caso. Mas para este ponto de vista é supérfluo este livro ou qualquer outro livro que leve temas morais a sério. De fato, esvazia de importância o pensamento sério sobre qualquer coisa, pois para o relativista qualquer ponto de vista, seja irrefletido, preconceituoso ou ignorante, é tão ‘válido’ quanto qualquer outro”. [50]
Pois é esse vulgo que está retratado na fala do Ministro Barroso, apenas adornado com a aparência científico – normativa. Esse adorno lembra aquilo que Aires já ensinava desde antanho: “o que a ciência nos traz é sabermos errar com método” ou “legitimar o erro”. [51] O que Barroso faz com floreios é “tomar como fatos coisas que não são mais que imprecisas teorias do vulgo”, tornando-se mais uma vítima daquilo que Whitehead denominou de “falácia do realismo conceitual” ou “falácia da concreção fora de lugar”. [52]
Afirmar que o só fato de ser um tema “diviso”, controverso ou polêmico deve fazer com que o Estado tome uma posição absolutamente neutra a seu respeito, significa nada mais, nada menos do que dizer que o Estado deve ser totalmente neutro ou estático em tudo ou quase tudo. Porque é da humanidade do homem a controvérsia, a divergência de opiniões. Nesse passo a normatização da conduta humana, seja pela moral, seja pelo Direito torna-se inviável. Isso porque o aborto não é o único tema “diviso” existente. Na verdade praticamente tudo que se possa imaginar pode ser discutido por diversos ângulos, por variadas concepções e então o Estado nada faria e para nada serviria.
Vejam-se alguns exemplos:
Há muita, mas muita gente contrária à tributação, seja parcial, seja totalmente. Portanto, tratando-se de um tema “diviso”, então vamos pôr fim a todo o Direito Tributário e, principalmente, aos crimes contra a ordem tributária. Não vamos falar das drogas ilícitas em geral, mas das drogas ilícitas e do álcool fornecidos para crianças e adolescentes. Sabe-se que há pais que entendem que seus filhos devem experimentar ou mesmo utilizar-se de tais substâncias desde a mais tenra idade. São minoria? Quanto ao álcool nem tanto. Mas, mesmo que o sejam, também é fato que é uma minoria de mulheres que praticam o aborto. Então deve o Estado recuar e permitir o fornecimento de drogas em geral e bebidas alcóolicas a menores, ao menos quando houver autorização dos pais ou responsáveis. A questão do porte e posse de armas de fogo pela população civil é outra temática controversa que imporia, sem maiores discussões, pela injunção suprema do STF, a imediata descriminalização de todas as condutas do Estatuto do Desarmamento e a declaração da inconstitucionalidade de toda e qualquer regulamentação legal sobre armamentos. Afinal, o tema é controverso e o Estado deve ser neutro. A usura, prevista como crime contra a economia popular na Lei 1521/51 é certamente outro tema controverso, porque muita gente se vale de empréstimos a altos juros e outros tantos se dispõe a emprestar e cobrar tais juros sem o menor pudor. Ademais, trata-se de outra questão apontada por escrituras judaicas e cristãs, por exemplo, como condenável. Então temos aqui outro caso de questão moralmente “divisa” e de certa origem religiosa. Liberemos os agiotas! Ademais, na verdade, todo o Código Penal e legislações penais esparsas estão repletos de condutas que podem gerar controvérsia sob o ponto de vista moral. O caminho seria então a adesão à corrente do “Abolicionismo Penal” mais radical. Estes são apenas exemplos e então, em resumo, pode-se dizer quem quiser pague impostos, quem não quiser não pague; quem quiser drogue ou alcoolize seus filhos, quem não quiser não o faça; quem quiser tenha armas e munições que quiser, quem for pacifista que o seja; quem quiser explore as pessoas com juros incompatíveis, quem não quiser que não o faça, e mais, quem não quiser que não tome empréstimo nessas condições; enfim, quem quiser mate, quem for contra isso apenas se abstenha de matar outras pessoas; quem quiser roube ou furte, quem não quiser que respeite o patrimônio alheio e assim “ad infinitum” na absurdidade. Mesmo porque, note-se, “não matarás” e “não roubarás” são mandamentos cristãos e, portanto, seriam exemplos de intromissão da religião no Estado laico e na liberdade das pessoas não religiosas.
Acontece que é óbvio que uma série de condutas é submetida a sanção, seja ela civil, penal ou administrava ou mesmo cumulativamente por motivos variadíssimos, por um conjunto de motivos, por uma série de circunstâncias de alta complexidade que, embora algumas vezes acabem coincidindo com mandamentos religiosos, não podem jamais ser a eles reduzidas.
O que Barroso faz, assim como todo aquele que atua com esse reducionismo consciente ou inconscientemente, é ocultar e afastar do debate, fingindo que não existem, todos os argumentos ou fatos que possam contraditar sua posição. Conseguem com isso promover uma fuga ao confronto e selecionar aquilo que lhes interessa para o convencimento do público – alvo. Já ensinam, em sua “nova retórica”, Perelman e Olbrechts – Tyteca a técnica de trazer à presença ou valorizar, tornando mais presentes, “certos elementos oferecidos à consciência” em detrimento de outros. [53]
Por isso se oculta a complexidade do processo de criminalização. Não se aborda a ontologia do concepto (o que ele “é” afinal, independentemente da fase ou do formato), como se isso não existisse. Não se fala na argumentação de que há vida no ovo, embrião ou feto e se passa a simplesmente repetir um mantra da opressão da religião judaico – cristã sobre as mulheres, como se esse fosse o único fator envolvido na equação.
É ainda interessante o argumento criminológico que advém do pensamento minimalista penal, também presente nos fundamentos do “decisum” criticado. O minimalismo, com grande dose de razão, denuncia um agigantamento, uma expansão desmesurada do Direito Penal e a necessidade de uma contração capaz de reduzi-lo apenas a um núcleo duro de condutas graves para as quais a solução criminal não seja evitável. Os demais conflitos poderiam ser solvidos nos campos administrativo, civil, tributário etc. A ideia é válida. O Direito Penal expandido de nossa época é um “elefante branco” disfuncional, incapaz de abarcar as próprias funções que se atribui e, dessa forma, se deslegitima e desacredita a si mesmo, gerando o sentimento de anomia, impunidade e incompetência do Estado na seara da Justiça e da Segurança Pública. Portanto, a redução do Direito Penal apenas aos casos mais gravosos, deixando as agências preventivas e repressivas com tempo e recursos suficientes para melhor aplicação da lei, aproximando a chamada criminalização primária da secundária e, consequentemente, reduzindo a cifra negra, seria bastante desejável.
Ocorre que um dos critérios apontados para a seleção das condutas a serem descriminalizadas nesse processo de minimalização penal é o da “universalidade”, traduzido na orientação de que somente se deveria prever como crimes condutas que sejam universalmente assim consideradas ao menos na grande maioria dos países civilizados. É nesse ponto que surge a questão do aborto. Isso porque ele não é um fato universalmente encarado como crime. Várias legislações de países desenvolvidos o descriminalizaram, como, por exemplo: Suécia, Dinamarca, Finlândia, Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, Hungria, Japão, Estados Unidos, Portugal, dentre outros. Dessa maneira, o aborto seria um dos candidatos à descriminalização a fim de contrair o Direito Penal. Ele também seria um crime detentor de enorme cifra negra, ou seja, a grande maioria dos abortos ilegais praticados permanece impune e essa seria uma razão suficiente para a sua eliminação como crime.
Nada do que é afirmado sobre o abortamento sob o ângulo do minimalismo penal é absolutamente falso. Pode-se dizer que o “estado da arte” apresentado condiz com a realidade. Porém, o problema está na conclusão a que se chega pela análise desse “estado da arte”. E a conclusão é pela descriminalização. Por que essa conclusão é problemática se assentada sobre dados reais?
Em primeiro lugar a escolha do critério da universalidade para incriminação de condutas é um tanto quanto inseguro. Isso porque, tirante condutas tradicionais, tais como o homicídio, o estupro violento, os crimes patrimoniais em sociedades que têm o conceito de patrimônio privado e mais alguns outros, pode haver condutas que são prejudiciais em dada sociedade ou que dada sociedade anteviu a necessidade real de incriminação enquanto as demais ainda não. Um exemplo típico: até algum tempo atrás a tortura não tinha previsão criminal específica no Brasil e em muitos países ainda não o tem. Então a tortura deve ser resolvida no espaço do Direito Civil ou Administrativo?
O fato de que alguns países com elevado nível de vida descriminalizaram o aborto não importa necessariamente na correção dessa opção legislativa. A Holanda é um país que prevê a eutanásia, especialmente para os idosos e isso criou naquela sociedade um clima de terror, onde os idosos fogem dos hospitais, procuram se tratar em outros países, aterrorizados pela possibilidade de serem simplesmente descartados pelos médicos.[54] Ora, a Holanda é um país desenvolvido, isso a impede de fazer opções político – criminais equivocadas? Tudo que é bom para esses países é necessariamente bom para outros ou, mais especificamente, para o Brasil?
Finalmente a questão das cifras negras, ou seja, a enorme diferença entre a criminalização primária (previsão do aborto como crime) e a criminalização secundária (efetiva punição das pessoas que praticam as condutas). A cifra negra pode ser um bom indicador para descriminalização sob enfoque minimalista, mas somente quando a conduta criminalizada também trouxer consigo a desimportância do bem jurídico a indicar seu não merecimento à ereção em bem jurídico – penal, pois se sabe que nem todo bem jurídico precisa ser necessariamente um bem jurídico – penal. Conforme bem aduz Paschoal:
“Assim, dignos ou merecedores de tutela penal são aqueles bens que integram a ordem constitucional por terem sido reconhecidos em uma dada sociedade como relevantes para sua conservação, observando-se que essa dignidade não é suficiente para justificar a criminalização, fazendo-se ainda mister verificar, no caso concreto, se existe a necessidade da tutela de natureza penal”. [55]
Esse juízo sobre a relevância do bem jurídico em jogo é muito importante para a formação de uma convicção sobre a descriminalização. Se a cifra negra provém do desinteresse estatal na perseguição das condutas no campo criminal, devido à sua pouca relevância social (v.g. certas contravenções penais), está justificada a descriminalização. Mas, se o que produz a cifra negra não é isso. O bem jurídico é relevante e somente as condutas não são devidamente apuradas e apenados os infratores porque o Estado é incompetente, não detém estrutura suficiente para uma devida investigação, então o problema não está na lei e sim nas condições materiais e humanas dos órgãos de repressão e prevenção estatais. Observe-se que o aborto é um crime contra a vida, ele atinge o bem jurídico mais importante possível, sem o qual outros bens de nada servem. Será que por haver um baixo índice de esclarecimentos de homicídios alguém iria pensar em descriminalizar essa infração penal gravíssima? Ou então, para não dizer que se está fazendo sensacionalismo. É um dado real que os furtos têm baixíssimo índice de esclarecimento. Devemos então liberar a prática do furto? Bem, pelo menos o patrimônio é um bem jurídico menos valioso do que a vida humana. Mesmo assim não é crível que alguém defenda a descriminalização do homicídio ou do furto, por que seria diverso com o aborto que também defende bem jurídico da mais alta relevância, qual seja, a vida humana?
Outra fundamentação que se pretende acenar para a liberação do abortamento diz respeito ao problema da assistência médica às mulheres carentes. A criminalização levaria a uma situação terrível as gestantes mais carentes. Enquanto as mais abastadas poderiam realizar abortos ilegais em clínicas particulares com toda assistência e higiene; as pobres não poderiam ser atendidas nem pela assistência médica gratuita, já que o aborto é crime e não pode ser realizado pela rede pública de saúde. No entanto, isso não impede que essas mulheres venham a praticar abortos sem qualquer assistência médica ou “assistidas” por “parteiras”, em locais os mais anti – higiênicos e com métodos totalmente inadmissíveis, com graves riscos às suas vidas e saúde. Acena-se aqui com uma violação ao Princípio da Igualdade criada pela diferença de poder financeiro entre as pessoas, o que não justificaria a discriminação.
Logo de início é preciso salientar que a liberação do aborto pelo mundo afora não tem melhorado em nada as condições de sua prática pela população pobre ou miserável.
Carvalho Hércules apresenta pesquisa que comprova que na Índia, onde o aborto é liberado desde 1971, as práticas clandestinas e perigosas continuam predominando no seio da população pobre. Há sérias dificuldades de acesso ao sistema de saúde, falta de recursos humanos e materiais, afora uma perversão em que alguns médicos indianos somente consentem em praticar o aborto em mulheres pobres se elas consentirem em ser esterilizadas. O autor também expõe o exemplo da Turquia, que liberou o abortamento no ano de 1983. Entretanto, a prática do procedimento não é disponibilizada pela rede pública, devendo as mulheres recorrerem a serviços de saúde privada. A consequência é que a liberação do aborto em nada mudou a situação das mulheres pobres, que continuam, da mesma forma, recorrendo às aborteiras e aborteiros de fundo de quintal, com o uso de técnicas inseguras e anti – higiênicas. Nos Estados Unidos também o governo somente custeia o aborto terapêutico, sendo então os demais praticados pelas mulheres pobres em péssimas condições fora da rede de saúde. [56] Será que no Brasil seria diferente? Qual é a realidade que nos circunda? Respondo: uma pessoa leva meses ou até anos para conseguir vaga para um simples exame ou uma cirurgia muitas vezes urgente. Há pessoas morrendo em filas de atendimento médico nos hospitais. Será que com a liberação do abortamento, milagrosamente, e inclusive passando na frente de pessoas com problemas de saúde graves, o Estado brasileiro iria passar a realizar abortos com hora marcada, rapidamente, para todas as gestantes carentes que o quisessem? Somente um tolo acreditaria nisso. Mais provável é que se uma mulher esperar pela autorização do abortamento na rede pública, gratuitamente, a criança nasça, chegue à maioridade e então, um dia, receba em sua casa um telefonema ou uma carta dizendo que o procedimento foi agendado para dali a uns dois meses! As mulheres pobres continuarão tendo de se valer dos velhos métodos, assim como homens e mulheres pobres são pessimamente atendidos no sistema de saúde pública quando estão doentes. Quem pode pagar um médico e hospital particular, seja para aborto clandestino, seja para qualquer fim, é mais bem tratado, ou, melhor dizendo, é tratado (porque os outros não o são sequer). Mas, note-se, a desigualdade não está no aborto, ela é geral. A defesa da liberação do aborto apresenta esse fato como sendo o gerador da desigualdade no sistema de saúde brasileiro. Mentira! O sistema é todo e completamente desigual, desde um resfriado até o câncer. Como se diz popularmente: “Quem pode mais, chora menos” (sic). O pinçar do aborto como o grande índice de desigualdade, cuja liberação faria do SUS um sistema “maravilhoso de extirpação de vidas humanas intrauterinas em série” (sic) com toda segurança e cuidados para as pobres, é uma das maiores falácias já apresentadas e engolidas pelo público em geral. Ademais, um argumento jurídico se impõe: num sistema de saúde todo desigual e diante de uma constituição que coloca o bem jurídico vida como amplamente tutelado, será que a reforma dessa desigualdade deveria se iniciar matando fetos e embriões? Essa é a prioridade de equalização do atendimento na saúde brasileira? E os doentes que precisam de tratamento, de exames, de cirurgias? E as gestantes que querem ter seus filhos, fazer um pré – natal decente e ter um parto adequado? E os homens e mulheres que querem ver seus filhos crianças e adolescentes devidamente atendidos nos hospitais públicos, que em nenhum momento pensam em matá-lo ou deixá-los morrer? Eles ficam para depois, depois vemos como fica essa desigualdade toda, primeiro vamos matar o máximo de fetos possíveis, para só depois, bem depois, talvez nunca, pensar nos vivos, no bem jurídico vida humana. Somente um raciocínio reducionista e altamente tortuoso chegaria a esse grau de perversão, mas o incrível é que chega e que convence a muitos!
Além disso, há pouco a ONU denunciou que no Brasil, segundo estatísticas, são praticados mais de um milhão de abortos clandestinos por ano, sendo que desse número pelo menos duzentas mil mulheres morrem devido à falta de assistência correta. A questão é apresentada então como um problema de “Saúde Pública” e de “grave violação dos Direitos Humanos das Mulheres”. Disso resulta uma ingente pressão internacional para o Brasil descriminalize o aborto e o disponibilize na rede pública de saúde. [57]
Esses fundamentos também não se sustentam. Sem a intenção de ser cruel, mas somente realista, há um lamento pela morte das mulheres que praticaram aborto ilegal, cometeram um crime, infringiram o ordenamento jurídico – penal. Qualquer morte de qualquer pessoa é lamentável e trágica. No entanto, se o lamento chegar ao ponto de descriminalizar condutas porque os praticantes de certos crimes costumam morrer durante sua execução, então não será apenas o aborto que deverá ser descriminalizado. A falácia do argumento é verificável facilmente pelas consequências de sua adoção. A seguir nesse diapasão, é melhor descriminalizar os roubos a banco, eis que os praticantes dessa modalidade criminal normalmente não têm vidas longas, morrem muito jovens e de maneira violenta. Também o homicídio qualificado mediante paga ou promessa de recompensa, alcunhado pela doutrina como “Homicídio Mercenário”, deveria ser descriminalizado e criado inclusive um seguro no INSS para os matadores de aluguel, eis que são também uma “categoria” altamente prejudicada no que diz respeito à longevidade e à morte em “acidentes de trabalho” (sic). E o que dizer dos pobres terroristas homens – bomba que morrem pelo mundo afora? Seria adequado descriminalizar o terrorismo e ainda prever também algum seguro especial para as famílias enlutadas. A questão de auxílio funeral seria um ponto discutível, vez que o enterro de homens – bomba deve ser meramente simbólico e poderia ser até dispensado.
Quanto às pressões da ONU e às suas propaladas “estatísticas” a inviabilidade de acatamento é tão intensa quanto a da argumentação antecedente. Em primeiro lugar é preciso analisar a origem de uma informação ou dado sempre que se pretenda formar uma convicção segura quanto à sua confiabilidade. Se a origem de uma informação advém de uma fonte confiável, mesmo que pareça incrível, pode ser verdadeira. Mas, se a informação procede de uma fonte não fidedigna, então, ainda que aparente certa viabilidade deve ser recebida com descrédito e conferida minuciosamente. Ilustra-se com um exemplo simples: se alguém sai à porta da casa e um bêbado e drogado lhe diz que acabou de passar por ali um elefante verde com bolinhas rosa, seja pelo teor da narrativa, seja pela fonte nada confiável de que advém, deve ser descartada.
Iniciando pela fonte da informação das estatísticas sobre aborto no Brasil e morte de mulheres, sabe-se que vem da ONU. Ora, essa entidade não é e nem nunca foi digna de crédito, isso desde a suas mais remotas origens ainda como a antiga “Liga das Nações”. É empírica e historicamente comprovado que esse órgão é um antro, um reino da mentira, das intenções encobertas e do engodo generalizado. [58] Mas, quem sabe a informação, mesmo advindo de um órgão altamente suspeito, pudesse ter algum traço tênue de verdade. Acontece que os números apresentados são totalmente inverossímeis de forma que o mentiroso se encontra com a mentira. Primeiro o número exorbitante de um milhão de abortos clandestinos por ano no Brasil. Ora, esse número pode ser maior ou menor, mas não é jamais o correto. É óbvio que foi “criado”, “engendrado” sem nem sequer a mais mínima preocupação com uma aproximação que fosse da verdade. Trata-se de algo similar aos dados da economia da União Soviética que eram totalmente inventados, sendo que ninguém se dava ao trabalho sequer de pesquisar alguma coisa e depois manipular de acordo com este ou aquele interesse, não, os dados eram simplesmente inventados “ex nihilo”. Somente pode ser isso que aconteceu com a apresentação desse número de um milhão de abortos. E por um motivo muito simples: trata-se de “abortos clandestinos”, frise-se “clandestinos”. Portanto, é impossível haver uma estatística oficial confiável a respeito a ponto de ser alardeada como aconteceu. Isso é de uma obviedade tão retumbante que não se compreende como ainda alguém pode levar essa “informação” a sério. Ora, se algo é “crime”, é “clandestino”, como é possível levar a termo uma pesquisa estatística oficial confiável? Sair perguntando pela rua? Ninguém vai admitir a prática de um crime a um órgão oficial e se o fizer é duvidoso que esteja falando a verdade. Seria nas estatísticas policiais que se encontraram esses números? Deveria ser porque no mínimo esse milhão de abortos deveria corresponder a um milhão de Inquéritos Policiais e respectivos Processos Criminais, já que se foram oficialmente obtidos pressupõe-se que os dados passaram pelo sistema de saúde e então, necessariamente foram comunicados aos órgãos policiais e registrados. Mas, não há nem nunca houve um milhão de inquéritos policiais por ano sobre aborto no Brasil. O autor deste texto tem no momento que escreve 27 anos de atividade policial civil. A julgar os números válidos, teriam ocorrido 27 milhões de abortos e consequentemente 27 milhões de Inquéritos Policiais e Processos Criminais a respeito. No entanto, em todas as unidades policiais e nas varas de júri pelo Brasil afora o número de feitos versando sobre aborto é mínimo, quando não é zero. Mas, essa realidade seria impossível se houvesse realmente ao longo desses 27 anos ocorrido 27 milhões de abortos registrados em hospitais e comunicados à Polícia. Não se diga que os abortos clandestinos ocorrem às ocultas e por isso não chegaram aos hospitais e à polícia porque se esse for o caso, então aí é que o número apresentado pela ONU se torna ainda mais claramente falso. De onde ele teria brotado misteriosamente? Os aborteiros e aborteiras, as mulheres praticantes de aborto procuraram a ONU para informar seus agentes? Ou foram seus agentes que, num passe de mágica, descobriram um milhão de casos que passavam em branco por toda a Polícia, Judiciário, Ministério Público e Sistema de Saúde brasileiros ano a ano? Talvez fosse possível que o Sistema de Saúde houvesse registrado tais números e não repassado para o Sistema Criminal. Mas, isso é bastante inverossímil na medida em que o aborto sendo crime é de notificação compulsória e não haveria qualquer motivo palpável para que os Hospitais e Profissionais da Medicina ocultassem ou se omitissem, correndo o risco de serem responsabilizados para proteger pessoas que sequer conhecem em sua grande maioria.
E o que dizer das duzentas mil mortes por ano de mulheres vitimadas em abortos clandestinos. Estariam as mulheres morrendo à nossa volta sem que ninguém se dê conta disso? Porque este autor pessoalmente, seja em sua vida pessoal, seja profissional nunca conheceu um único caso de mulher morta durante aborto clandestino. E o mesmo ocorre com a maioria das pessoas. Se é que alguém conhece algum caso é um ou outro e não algo recorrente. Para um teste, indague o leitor a si mesmo e a terceiros se conhecem alguém que adoeceu por Dengue e que inclusive morreu disso, se conhece alguém que faleceu em razão de um câncer ou de doenças cardíacas. Haverá muitos casos se é que o próprio leitor não teve dengue, câncer ou é cardíaco. Esses sim, dentre outros, são problemas de Saúde Pública reais no Brasil. Isso não quer dizer que o fato de mulheres falecerem em abortos clandestinos não ocorra, mas quer dizer que não ocorre na intensidade que a ONU mentirosamente propala. Aliás, seria outro caso em que a cada morte deveria corresponder um Inquérito Policial e respectivo Processo, pois seriam mortes que seriam comunicadas à Polícia pelo Sistema de Saúde, não são mortes naturais às quais os médicos simplesmente expediriam um atestado de óbito. O caso seria comunicado, registrada a ocorrência policial e o corpo encaminhado a exame de corpo de delito necroscópico no IML. Mas, há duzentos mil feitos por ano instaurados em casos semelhantes? A resposta é um redondo não. Novamente, em 27 anos de trabalho o autor dessas linhas pode dizer que nunca registrou ou deu andamento a um feito, versando sobre morte de uma mulher por aborto clandestino e o mesmo ocorre com a maioria dos profissionais. Toda pesquisa séria sobre aborto no Brasil indica seu parco registro nos órgãos criminais. Garcia, por exemplo, se deu ao trabalho de consultar as páginas do DATASUS do próprio governo federal, cujo último ano de dados consolidados é 2010. Nesses dados se constata que o total de mortes de mulheres em idade fértil por toda espécie de causas foi de 66.323 pessoas. Só isso já deixaria os números da ONU totalmente desmentidos. Mas, há mais: tendo como “causa mortis” o aborto (e aí não estão apenas os clandestinos, mas também os espontâneos e acidentais) o número em todo o ano de 2010 é de 83 mortes de mulheres. [59] Mais comentários são desnecessários, os números oficiais reais falam por si, indicando o tamanho da mentira. Mas, a empulhação é tão grande que não se consegue resistir a mais um detalhe.
Segundo o sociólogo Luiz Eduardo Soares, são cometidos no Brasil por ano cerca de cinquenta mil homicídios dolosos. [60] Isso seria apenas um quarto dos casos de mortes de mulheres por decorrência de abortos clandestinos. Vejam os leitores o estranho acontecimento: ao passo que este subscritor nunca atendeu a um único caso de mulher morta em aborto clandestino por 27 anos, já registrou e deu andamento a um número do qual já perdeu a conta de crimes de homicídio doloso. Não é absolutamente estranho? Um crime que ocorre bem menos é visível, mas outra circunstância que também levaria a apurações criminais e que ocorre quatro vezes mais é invisível! Sinceramente, só acredita na ONU quem quer, quem sequer olha ao seu redor para conferir a realidade do mundo em que vive.
É preciso concordar com a frase impactante do Ex – Primeiro Ministro Britânico e escritor do século XIX, Benjamin Disraeli, quanto a existirem "três tipos de mentiras: mentiras, mentiras infames e estatísticas".[61]
Já seriam mais que suficientes as respostas aos argumentos em prol da legalização do aborto até o momento expostas para demonstrar que esse mal poderia e deveria ser evitado, bem como, em sua esteira, sua “cria” que é o direito correlato do homem à negativa da paternidade jurídica, já que um mal leva a outro, uma monstruosidade conduz a outra. Sustada a primeira a segunda não emerge.
Entretanto, há um argumento que não pode deixar de ser desenvolvido neste trabalho e que diz respeito a um princípio bioético que se tem convencionado chamar de “Princípio da Precaução”.
O tema do aborto é um dos mais polêmicos e certamente continuará produzindo os mais acirrados debates sob diversos aspectos (v.g. religioso, jurídico – penal, ético etc.).
Este não é o momento para repisar os argumentos antagônicos com que se digladiam feministas, religiosos, juristas e todos aqueles que manifestam interesse quanto à solução desse dilema. Pretende-se tão somente analisar a coerência lógica de um dos argumentos que sugere a não intervenção no processo de desenvolvimento da vida humana manifestado pela gravidez. Esse argumento sugere que há, pelo menos, sérias dúvidas acerca da existência de uma vida humana a ser tutelada a partir da concepção e tal dúvida seria o bastante para indicar a vedação ética às práticas abortivas.
Essa linha de pensamento é exposta pelo estudioso de antropologia jurídica e história do Direito, Norbert Rouland, que destaca o fato de que a grande questão não é saber se após a concepção há uma vida, mas sim se tal vida, indubitavelmente presente, pode já ser considerada uma vida humana. Se for certo que o aborto dá fim a uma vida, pode haver sérias dúvidas quanto a poder ser essa vida já considerada humana. No entanto, a presença da dúvida deveria militar em favor da vida humana e contra as práticas abortivas. [62] Afinal quem defenderia a tese de que na dúvida de haver uma pessoa dentro de um prédio poder-se-ia optar por implodi-lo sem qualquer culpa?
O autor defende a ficção, presunção (ou se preferir, a cautela ou cuidado) estabelecida em prol da vida humana que passa a ser tutelada com a proibição do aborto pela legislação e até sua criminalização. Havendo a dúvida quanto à humanidade do concepto, a possibilidade ainda que remota de lesão a uma vida humana não permitiria a assunção do risco, de forma que a “transformação do aborto num direito subjetivo, sua possível banalização” seria um extremo lamentável. Ao suposto direito subjetivo das gestantes de optarem pela interrupção da gravidez opor-se-ia o fim de “proteger a pessoa, se necessário limitando os direitos subjetivos, operação que nada tem de escandalosa, tamanha é sua frequência em todas as áreas do direito (a propriedade privada pode ser expropriada; a teoria do abuso de direito veda ao titular de um direito usá-lo para prejudicar o próximo)”. [63]
A intenção neste momento não é questionar a validade da defesa da vida humana, mas apenas lapidar, sob o aspecto lógico, sua argumentação. Quando se apresenta a questão da presença ou não de uma vida humana tutelável desde a concepção para em seguida afirmar-se que na dúvida deve-se optar pela vida (“in dúbio pro vita”), é preciso analisar criticamente tal tomada de posição, a fim de não permitir que seja desarticulada pela demonstração de que, longe de assimilar a dúvida e fazer dela um forte argumento de precaução quanto a uma possível lesão, trata-se de uma espécie de descaminho do pensamento que o faz retornar ao ponto de partida, qual seja a alegação inicial da presença da vida humana no concepto, o que produz apenas um andar em círculos entre os pensamentos antagônicos de que inicialmente se partia.
A questão que se põe agora é como formular de maneira mais coerente e segura um argumento em prol da abstenção das práticas abortivas, tendo como base um termo médio que, sem optar pela presença ou não de vida humana no concepto, firme raízes exatamente na dúvida resultante do debate entre os opostos, para daí retirar seu fundamento?
A “tópica” de Aristóteles era uma das seis obras que compunham o “Organon”. [64] Nela o filósofo estagirita propôs uma caracterização dos argumentos dialéticos, os quais estavam direcionados para a discussão do provável ou do verossímil. No estudo desses argumentos, há busca de descoberta de premissas, identificação do sentido das palavras, revelação de gêneros e espécies.
Mais tarde, Marco Túlio Cícero também cuidou da “tópica” [65], considerando-a como uma espécie de argumentação voltada, agora, para o campo da invenção, da obtenção de argumentos. Para o eclético pensador romano, um argumento seria uma razão que serve para convencer de uma coisa duvidosa. Considerava que os argumentos estariam contidos nos lugares ou “loci” – os “topoi” gregos -, que se tornaram, assim, as sedes deles. A tópica consistiria, em síntese, na arte de encontrar os argumentos.
Já nos tempos modernos, Theodor Viehweg [66] caracterizou a tópica por três elementos que estariam ligados entre si: primeiro uma técnica de pensamento problemático; segundo, um instrumento de tornar central a noção de “topos”, ou seja, “lugar – comum”; e, terceiro, uma busca e um exame cuidadoso de premissas.
A questão ora sob análise deve-se voltar, pois, para o concepto, enquanto um ser dotado ou não de vida. Simplesmente dizer que, na dúvida, caberia optar-se pela sua vida seria, em última instância, sustentar a premissa afirmativa por si mesma. Contudo, é preciso ir um pouco além disso e tentar encontrar argumentos que sirvam de orientação em situações duvidosas. Trata-se de ir do contexto da descoberta para o da justificação. Quando a situação é de incerteza, não se sabe bem o que pensar, o que dizer e como agir. Tem-se instalada a dúvida. Vem o risco de um juízo precipitado. E é isso que serve de melhor fundamento para a não – intervenção, uma espécie de cuidado ou cautela que evita o “mergulho direto em águas escuras”. Talvez por isso que, em havendo dúvida se há ou não vida humana no concepto, melhor deixar que naturalmente siga seu curso aquilo que não se sabe o que é. Não se trata de mera reafirmação, por via não explícita, da premissa de que há vida humana. Cuida-se de justificar que a não – intervenção é algo que se descobre, diante da problemática instalada, como orientação mais luminosa para algo que ainda se possa considerar obscuro.
Portanto, a posição de Norbert Rouland de que há, no caso do concepto, uma presunção estabelecida em prol da vida, poderia ser melhor reinterpretada: trata-se de buscar uma justificação razoável para a não – intervenção naquelas hipóteses de risco, em vez de adotar intervenções precipitadas em situações em que a irreversibilidade do resultado não pode ser descartada. Essa não – intervenção, como espécie de boa cautela, é o que se descobre como algo mais razoável do que uma aventura perigosa no “oceano do risco”, ainda mais quando o assunto envolve uma discussão sobre o princípio da vida e a vida como princípio.
Aliás, a formulação teórica da bioética já diagnosticou a relevância da cautela perante situações que envolvem um risco iminente de dano a valores e/ou interesses de que não se pode abrir mão, sob pena da própria desestruturação de todo seu sistema axiológico e o perigo concreto de consequências materiais e éticas catastróficas, ao que tem denominado de “Princípio da Precaução”. [67]
Em sua fundamentação Barroso nos coloca diante de uma suposta situação de encruzilhada, na qual seríamos obrigados a escolher entre criminalizar o aborto ou adotar outros caminhos mais eficazes para combater sua prática. Quer o interlocutor em destaque nos convencer de que uma coisa é excludente da outra. Apresenta-se a questão como se fosse aquilo que se chama de um “jogo de soma zero”. Ou se descriminaliza o aborto e então ele pode ser evitado na maioria dos casos de forma mais eficaz, ou essas formas mais eficazes de combate ao aborto não podem ser adotadas. Se um ganha necessariamente o outro perde e vice versa. [68] Mas, a situação não é assim na realidade. Para combater o homicídio também o Direito Penal não é o meio mais eficaz. Aliás, por uma razão óbvia. Ele somente é aplicado depois que o homicídio já aconteceu e o bem jurídico já foi lesado (ademais, o mesmo acontece com todos os crimes). No entanto, não é imaginável que uma comunidade possa existir em que a prática do homicídio seja liberada. Ora, mas o fato da criminalização impede a atuação educativa baseada na não – violência, numa cultura de paz e de amor ou ao menos de respeito aos semelhantes? A criminalização do aborto impede a orientação contraceptiva? Desde quando? Impede o planejamento familiar por outros meios que não o abortamento? Impede programas de orientação a adolescentes sobre a atividade sexual e suas consequências, inclusive os deveres, obrigações e responsabilidades que advém da liberdade sexual?
A fundamentação do voto – condutor neste ponto não somente se vale erroneamente da “Teoria dos Jogos”, como também faz uso, consciente ou não, de um chamado “Argumento de Escolha”, conhecido há séculos na retórica.
O “Argumento de Escolha” é uma espécie de “armadilha” do pensamento que privilegia a defesa da tese apresentada em detrimento da sua comprovação fática. Contrapondo duas opções ou poucas opções, fazendo com que pareçam as únicas vias possíveis, ameniza – se ou mesmo se justifica a escolha de uma conduta bastante duvidosa sob o ponto de vista ético. O interlocutor vitimado pelo argumento de escolha é convencido de que o caminho escolhido talvez não seja “tão mal assim”, considerando as limitadas possibilidades apresentadas pelo orador ou escritor. [69] E é exatamente isso que faz Barroso e outros defensores do aborto legalizado quando tratam a criminalização como excludente de outras vias de enfrentamento do problema.
Fala-se em defender os direitos fundamentais das mulheres via legalização do aborto. Chama-se à baila o Princípio da Proporcionalidade. Mas, que balança viciada é essa em que nenhum peso é atribuído aos direitos do nascituro em evidente afronta à ordem civil interna, à Constituição que defende a vida humana, e até mesmo ao direito internacional convencional a que o Brasil adere?
O Código Civil Brasileiro afirma em seu artigo segundo literalmente o seguinte:
“A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Nas edições do Código Civil há sempre indicação da ligação deste dispositivo do direito privado com os artigos 124 a 128, CP. Será que isso é um devaneio dos organizadores dos Códigos Civis no Brasil?
É claro que não. Contrassenso absoluto, falta de proporcionalidade e razoabilidade que beira a insanidade, seria afirmar que todos os direitos dos nascituros são postos a salvo, menos o direito à vida, sem o qual qualquer outro direito não tem razão de ser. [70]
Concomitantemente, o artigo 5º, “caput”, CF garante a “inviolabilidade do direito à vida”. Ora, como a vida pode ser “inviolável” se no momento em que o ser se encontra mais debilitado e indefeso, pode ser atacado e destruído? E não se acene com a relatividade de todo direito, pois que não se trata de situação que justifique ou imponha a reação agressiva, tal como pode ocorrer na legítima defesa, no estado de necessidade etc. Ao reverso, se trata certamente de um ataque injusto e absolutamente covarde a um ser cuja incapacidade defensiva ou reativa é a maior imaginável.
Como se não bastasse o conhecido “Pacto de São José da Costa Rica” ou “Convenção Americana de Direitos Humanos” de 1968, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto 678/92, estabelece o seguinte em seu artigo 4º., item 1:
“Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” (grifo nosso).
Não pode haver disposição mais clara e evidente do que esta, a qual, em se tratando de convenção sobre direitos humanos, integra a ordem jurídica brasileira, no mínimo, como norma “supralegal”. Diz-se, “no mínimo supralegal” porque em uma interpretação ampliativa do disposto no artigo 5º., § 3º., CF e de acordo com alguns ensinamentos doutrinários, essas convenções internacionais teriam o “status” de norma constitucional. Há até mesmo quem as considere como normas “supraconstitucionais”. [71]
Observe-se que o próprio STF, ao tratar do bem jurídico liberdade, afirmou não haver base na legislação brasileira para aplicação da prisão do depositário infiel, inobstante sua previsão constitucional, pois que as normas ordinárias que dariam concreção ao ditame da Constituição, entrariam em confronto com o artigo 7º. , n. 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos sob comento. Nesse passo, até mesmo o inciso LXVII do artigo 5º. da CF perderia sua sustentação (STF, RE 466343, Voto do Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 3.12.2008, DJe de 5.6.2009). Esse entendimento deu origem inclusive à Súmula Vinculante 25, STF com o seguinte teor:
“É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.”
Mas, o que está ocorrendo agora com o Supremo? Então a Convenção Americana de Direitos Humanos é válida para salvaguardar a liberdade, mas não é válida para proteger a vida mais tenra? E não é possível dizer que a redação da Convenção é dúbia, “divisa” (sic) ou que deixe qualquer margem para uma interpretação diversa daquela que apenas chega à conclusão de que é clara e evidente.
Ainda que não se reconheça caráter constitucional à norma convencional ou, menos ainda, supraconstitucional, como pretendem alguns. Levando em conta sua condição de norma supralegal, em coerência com o que o STF tem entendido acerca do tema para os tratados anteriores à Emenda Constitucional 45, de 08.12.2004, é forçoso reconhecer que seu artigo 4º., item 1, legitima plenamente a criminalização do aborto, sendo inconvencional uma decisão que o descriminaliza, inclusive desrespeitando o processo legislativo e a divisão de poderes. É imperioso notar que a Constituição Federal não tem norma alguma que legitime diretamente o aborto em qualquer fase da prenhez. Somente por caminhos tortuosos e forçados se chega a aventar a não recepção dos artigos 124 e 126, CP pela Constituição Federal. Ao reverso, a norma convencional, salvaguarda a vida humana desde a concepção, estando em plena correspondência com os dispositivos supra elencados do nosso Código Penal e com o artigo 2º. do nosso Código Civil. Mais que isso, a norma convencional se harmoniza perfeitamente com o artigo 5º., “caput”, CF, que impõe a “inviolabilidade da vida”, não especificando que vida humana é essa, não estabelecendo fases ou características físicas, mentais, morfológicas ou de qualquer outra natureza. [72]
É claro que as questões envolvidas na discussão do crime de aborto, na forma de seu enfrentamento, seja na seara criminal, seja social ou moral, suplantam muito amplamente o mero saber jurídico. É fato que o Ministro Barroso e os demais Ministros do STF detém grande quantidade de informação fornecida por assessores, bibliografia vasta à sua disposição e proporcionada pela sua própria formação pessoal. O grande problema é que parece que não se deram conta de que o “conhecimento” difere da “sabedoria”. E, principalmente de que o mais urgente desiderato humano é, nas palavras de Potter, a descoberta de “uma nova sabedoria que forneça o conhecimento de como usar o conhecimento” (grifos no original). [73] Uma pista, porém, já pode ser dada a todos que se interessem: o conhecimento, seja ele biológico, jurídico, físico, químico, genético etc., somente pode ser útil e valioso se e somente se não se afastar dos valores humanos. E valores humanos não se coadunam com a eliminação da vida em prol de quaisquer interesses, tirante casos extremos como a legítima defesa.
Não obstante, a decisão do Supremo apresenta fundamentos subsidiados por literatura ideologizada, repetindo acriticamente palavras de ordem ativistas, meramente adornadas com alguma erudição e argumentação jurídica “ad hoc”. O resultado disso, como não poderia deixar de ser num contexto tal, é um ativismo judicial tosco.
A abordagem da questão pelo STF chega a ser tão intelectual e juridicamente indigente que perde de vista até mesmo a necessária visão global do ordenamento jurídico e dos fatos, conforme acima se demonstrou.
Sob o prisma jurídico, a chamada “interpretação sistemática” foi simplesmente desprezada. Ela é aquela que
“representa a natureza do estudo sistemático das normas vinculadas dentro de um ordenamento jurídico, constituindo-se, por isso, em uma interpretação essencial”. [74]
Conforme o escólio de Maximiliano o processo sistemático de interpretação está fulcrado no seguinte raciocínio:
“Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos”. [75]
Infelizmente a armadilha da fragmentação do saber pode colher facilmente as pessoas, mormente quando dominadas por uma ideologia que se aparta do real para aventurar-se na criação de mundos artificiais, paraísos terrestres do prazer e da vontade ilimitada.
Porém, este não é o caminho que conduz à melhor ciência. De acordo com Bohm:
“A parte do que imagino que seja o interesse intrínseco das questões que são tão fundamentais e profundas, eu chamaria a atenção para o problema geral da fragmentação da consciência humana (…). (…) as vastas e perversas distinções entre as pessoas (raça, nação, família, profissão etc.), que agora estão evitando que a humanidade trabalhe em conjunto para o bem comum e, de fato, para a própria sobrevivência, exibem um dos fatores – chave de sua origem em um tipo de pensamento que trata das coisas como se fossem inerentemente divididas, desconectadas e ‘separadas’ em partes constituintes menores ainda. Cada parte é considerada essencialmente independente e auto – existente.
Quando o homem pensa em si mesmo dessa maneira, ele inevitavelmente tenderá a defender as necessidades do seu próprio ‘Ego’ contra os dos outros; ou, se ele se identifica com um grupo de pessoas do mesmo tipo, ele defenderá esse grupo de modo similar. Ele não consegue pensar seriamente na humanidade como sendo a realidade básica, cujo direito vem antes. Mesmo quando tenta considerar as necessidades da humanidade, ele tem a tendência de tratar a humanidade como algo separado da natureza, e assim por diante. O que estou propondo aqui é que a forma de o homem pensar na totalidade, ou seja, a sua visão geral do mundo é crucial para a ordem geral da própria mente humana. Se ele pensa na totalidade como sendo constituída de fragmentos independentes, é assim que sua mente irá operar, mas, se ele puder incluir tudo coerente e harmoniosamente na totalidade geral que é indivisa, inseparável e sem fronteiras (pois cada fronteira é uma divisão ou uma ruptura), a sua mente vai se movimentar de forma similar e, com isso, fluirá uma ação ordenada dentro do todo”. [76]
É facilmente perceptível o processo de retroalimentação que induz a pensamentos fragmentários como os desenvolvidos por Barroso e muitos outros. A incapacidade de ter uma visão sistemática e, mais que isso, global; uma visão que supere o “Ego”, o império da satisfação dos desejos, a divisão entre o “eu” e o “tu”, na qual o “tu” é o inferno do “eu” como nos diria Sartre. [77] Essa espécie de cegueira, como bem salienta David Bhom acima mencionado, molda o intelecto, a mente e o raciocínio dos indivíduos e os transforma em fragmentadores incapazes de enxergar a totalidade. Incapazes mesmo de ter a percepção da continuidade que constitui a humanidade do homem, a qual não pode ser dividida em fases, classificada, hierarquizada, quantificada, fazendo de uns seres humanos e de outros menos seres humanos ou não – humanos, embora ontologicamente humanos. Na seara jurídica isso resulta em juristas com viseiras, incapazes de um olhar de entorno.
E o mundo jurídico está prenhe de teorias e informações que os poderiam libertar. Zaffaroni trata daquilo que chama de “tipicidade conglobante”, de forma que uma conduta somente pode ser classificada como típica quando analisada não apenas em relação à descrição do tipo penal isolado, mas em cotejo com o ordenamento jurídico como um todo. [78] O mesmo vale, obviamente, para a atipicidade. Bastaria ao Ministro Barroso e seguidores, analisar os artigos 124 e 126, CP em conjunto com a ordem Constitucional (a ordem constitucional em suas bases reais, naquilo que tem de concreto e não em interpretações ideológicas); com a ordem civil e com o Direito Internacional convencional. Seria o mais que suficiente para perceber que sua tese de descriminalização não tem a menor sustentação conglobante.
O jurista lusitano, Jorge de Figueiredo Dias também indica a necessidade de análise da “totalidade da ordem jurídica” para concluir pela tipicidade de uma conduta e pela sua antijuridicidade. Se uma conduta é permitida, por exemplo, pelo Direito Civil ou Administrativo, não pode ser catalogada ou mesmo interpretada como crime no ramo penal. [79] Obviamente se há claras indicações de que um bem jurídico é tutelado na ordem civil, constitucional e convencional, como ocorre com a vida do concepto; se há tipos penais claros e induvidosos que cominam sanções criminais a quem pratique o aborto, não havendo qualquer distinção temporal em relação à gravidez, não há como afirmar que uma conduta de abortamento até o terceiro mês não é criminosa por meio de construção pretoriana arbitrária.
Infelizmente o fato é que vivemos uma fase doentia na qual há um contínuo esforço para justificar o mal, sob o pretexto de fazer o bem. Como aduz Krishnamurti:
“Estamos brigando por ideias, justificando o assassinato; em toda parte do mundo estamos justificando o assassinato como um meio para atingir um fim justo, o que, em si, é algo sem precedentes.
Antes o mal era reconhecido como algo mal, o assassinato era justificado como assassinato; mas agora o assassinato é um meio para atingir um resultado nobre. O assassinato, seja de uma pessoa ou de um grupo delas, é justificado porque o assassino (ou o grupo que o assassino representa) o utiliza como medida para atingir um resultado que será benéfico ao homem. Ou seja, sacrificamos a pessoa em prol do futuro – e não importa que meios empregamos, contanto que o nosso propósito declarado seja produzir um resultado que dizemos ser benéfico para o homem. Portanto, uma medida errada produzirá um fim correto, e será justificada por meio da ideação… Temos uma magnífica estrutura de ideias para justificar o mal, e certamente isso não tem precedente. O mal é o mal; ele não pode trazer o bem. A guerra não é um meio para se atingir a paz”. [80]
Ora, a eliminação da vida de um concepto não pode ser o meio lícito para a liberação sexual de homens e mulheres. Nem essa liberação sem a respectiva responsabilidade pode ser um meio para o bem comum e a felicidade geral. A autonomia não pode ser conquistada ao custo de vidas humanas, ainda que incipientes.
Seria até cômico, não fosse trágico e assustador, que um Ministro letrado do STF, num contexto de defesa de eliminação de um ser vivo de origem humana, visando à satisfação de interesses de terceiros (potenciais pais ou, em especial, a potencial mãe), faça menção ao “imperativo categórico kantiano” que afirma que “toda pessoa deve ser tratada como um fim em si mesmo, e não um meio para satisfazer interesses de outrem ou interesses coletivos”! É claro que para Barroso, o ovo, embrião ou feto não é pessoa, nem mesmo potencialmente, mas já foi visto o quanto essa tese é absurda. Fato é que a defesa do abortamento por “respeito” à vontade de ser mãe ou pai de alguém é uma situação nítida de reificação do humano, de seu uso como instrumento ou meio para fins de terceiros. É exatamente o oposto do imperativo categórico kantiano. Não há dúvidas de que se Kant soubesse de sua menção por Barroso neste contexto estaria se revirando no túmulo!
O grande problema é que nada mais é submetido a uma reflexão séria. Há um contentamento bovino com palavras de ordem e apelos emocionais, ativistas, impensados, especialmente se disseminados midiaticamente. O Ministro Barroso, por exemplo, tem o dom de moldar uma frase de impacto que tem chamado a atenção. Em seu voto afirma textualmente que a mulher não pode ser tratada como “um útero a serviço da sociedade” (sic). E segue fazendo “palestras” onde emprega a expressão impactante (embora absolutamente vazia). Fez isso na “palestra” intitulada “A liberdade de ser: Morte e vida e escolhas existenciais”, no seio de nada menos do que a Academia Brasileira de Letras. [81]
Entramos definitivamente naquilo que o Dicionário Oxford apontou como “a palavra do ano”, ou seja, a chamada “pós – verdade”. Post-truth (pós-verdade) diz respeito à subestimação ou mesmo desprezo de fatos objetivos e a adoção de conceitos e ideias fulcrados em emoções e crenças pessoais na formação da opinião pública e até mesmo da suposta intelectualidade. [82] Por isso ninguém se questiona em relação a tudo quanto já foi dito neste texto. Pior, ninguém se questiona quanto à autofagia do próprio título da “palestra”: como se pode falar em “Liberdade de ser”, defendendo a eliminação intraútero de um “ser”? De um ser que nem se deixará nascer? Que liberdade é essa? A liberdade que só tem uma face? Isso não existe e não pode existir. A liberdade de mão única, de face única é sinônimo de domínio de uns seres sobre outros. E a frase impactante? “Úteros a serviço da sociedade”? O que isso pode significar? Que qualquer responsabilidade imposta para o exercício de uma liberdade na vida em sociedade faz da pessoa um mero instrumento desta sociedade que lhe reconhece liberdade? Então também um homem que engravide uma mulher e não queira o filho, embora a mulher o queira, deveria ter o direito de provocar o aborto sem o consentimento da gestante, caso contrário, seria então “um pênis a serviço da sociedade e daquela mulher”. Isso soa totalmente absurdo não é? Pois é, mas é o mesmo raciocínio desenvolvido na “bela” frase de Barroso e outros ativistas vazios de conteúdo. É claro que a mulher, por questões de natureza, carrega em seu corpo o ser. Mas, quanto a isso, não se trata de imposição de ninguém a não ser da Natureza. O ser humano, e isso inclui as mulheres, não é um ser determinado, mas é, indubitavelmente, um ser condicionado. Há condições inescapáveis a um ser humano, como há tais condições para outros seres. A rebeldia contra isso não passa de gnosticismo e “hybris” pueris.
No seio dessa “palestra”, Barroso novamente dá mostras de falta de cuidado ou mesmo desconhecimento de temas que aborda. Para justificar a liberação do aborto até o terceiro mês de gestação, afirma que isso seria, além de sustentável constitucionalmente, algo que encontraria base no “Direito Natural” (sic)! [83] Ora, somente pode engolir uma afirmação destas, alguém que o queira muito, embora saiba de seu descabimento, ou então alguém que seja absolutamente ignorante do que se trata quando se fala em “Direito Natural”. Sem maiores delongas, pois que se trata de tema trivial, pode-se afirmar que o “Direito Natural”, em suas mais diversas vertentes jusnaturalistas, deduz princípios e regras que se inspiram diretamente na “Natureza”. Ou seja, a Natureza seria o modelo segundo o qual alguns direitos são reconhecidos como constitutivos do estatuto humano. Ora, na Natureza não se encontra um comportamento animal similar ao da mulher que aborta. O contrário é que é comum, ou seja, as fêmeas e os machos cuidam de suas crias. Excepcionalmente, ensina a etologia, que no mundo animal podem ocorrer abortos ou mesmo a morte de crias já nascidas pelos machos (mais comumente) e pelas fêmeas (mais excepcionalmente). Mas isso é excepcional e, normalmente, tem uma função de seleção ou daquilo que no mundo humano se chamaria de eugenia. Pergunta-se, portanto: em que “natureza” está baseado o “Direito Natural” (sic) a que faz referência o Ministro? Na “natureza” idealizada por pessoas como Hitler? Porque a Natureza que nos dá pistas de um jusnaturalismo persevera na vida, inclusive na vida incipiente, ao menos em regra. E o que se espera da humanidade em seu salto cultural, em sua hominnescência, é um progresso em relação à natureza em termos morais, não um retrocesso ou uma identidade com o mundo animal. [84] Assim sendo, o discurso de Barroso sobre um suposto “Direito Natural” (sic) é totalmente descabido.
Toda a argumentação está repleta dessas frases apelativas e o Ministro Barroso não se contenta com suas próprias criações. Traz à baila a citação do antigo Ministro Carlos Ayres Brito que outrora fez uso de outra frase – feita típica do ativismo feminista desprovido de racionalidade e cheio de apelo ideológico. Eis a “pérola”:
“Se os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente o aborto seria descriminalizado de ponta a ponta” (sic).
Já de início é preciso perceber que a conclusão final não passa de um presságio baseado numa impossibilidade natural, biológica e física. Portanto, tudo não é mais que fumaça nos olhos. Uma conclusão que advém de uma premissa hipotética irreal. Mas, deixemos de lado a falta da mais mínima lógica nessa frase de efeito. Vamos aos fatos:
A frase que se apresenta como oracular pressupõe que devido a uma questão de gênero o aborto é criminalizado. Antes, o reducionismo era religioso, agora é de gênero. Cabe então a Brito, Barroso e demais indivíduos que repetem esse besteirol com tanta convicção explicar por que há no campo civil a obrigação alimentar por parte dos homens e por que há no campo criminal o ilícito de “Abandono Material” (artigo 244 e seu Parágrafo Único, CP)? Eles parecem se olvidar de que os homens não ficam grávidos, mas engravidam as mulheres e respondem por isso civil e criminalmente com relação aos resultados daí advindos. Há inclusive o instituto dos “alimentos gravídicos”. Mas, se o mundo é feito de normas moldadas com base no domínio de gênero, então por que até hoje há essa obrigação alimentar, inclusive como única possibilidade de prisão civil por dívida? Por que há o crime de “Abandono Material” acenado contra os homens, inclusive por inadimplência injustificada de obrigação alimentar? Por que, afinal de contas, num mundo de domínio de gênero masculino, onde o aborto só é criminalizado porque homens não engravidam, não se descriminalizou ainda o “Abandono Material”, ao menos para os homens? Por que os homens têm e sempre tiveram obrigação de prestar alimentos, por que não somente as mulheres? E pior; expliquem por que o “Abandono Material” perpetrado por homens tem pena maior do que o crime de auto – aborto ou aborto consentido previsto no artigo 124, CP? E mais, tem pena igual, mas acrescida de uma multa, que não existe no aborto com o consentimento da gestante, previsto no artigo 126, CP? Mas, vão afirmar que as mulheres também podem ser responsabilizadas por “Abandono Material” e por fornecer alimentos. É claro que sim. No entanto, nem é preciso fazer grandes pesquisas estatísticas para saber que muito próximo de cem por cento dos inquéritos e processos por “Abandono Material” têm por investigado ou acusado um homem. O mesmo se pode afirmar com segurança em relação às ações de alimento e seu polo passivo. Em 27 anos de profissão este signatário, como Delegado de Polícia, jamais instaurou um Inquérito Policial por “Abandono Material” contra mulher, ao passo que já instaurou milhares contra homens. Também nunca cumpriu um único Mandado de Prisão por inadimplemento de pensão alimentícia contra mulher. Já cumpriu milhares contra homens. E, por favor, não venham dizer que isso é porque as mulheres são mais responsáveis com relação aos filhos do que os homens como regra geral, por favor, tudo tem limite. Perceba-se, portanto, o grau de ilogicidade e irrealidade dessa frase – feita repetida irrefletidamente como se fosse um “insight” da mais genuína sabedoria!
4 – CONCLUSÃO
No decorrer do presente texto procedeu-se à análise crítica da decisão da 1ª. Turma do Supremo Tribunal Federal no HC 124.306, especialmente do voto – condutor do Ministro Luís Roberto Barroso.
Em um primeiro plano foi questionada a inconstitucionalidade do procedimento ativista judicial em franca violação à divisão de poderes, pois que o Supremo Tribunal Federal, a pretexto de interpretação conforme à Constituição e declaração de não recepção de norma ordinária, teria, na verdade, suprimido deliberadamente texto legal claro e induvidoso, criando, por conta própria, nova hipótese de aborto legal ou, melhor dizendo, descriminalizando a prática do aborto, desde que praticado o ato até o terceiro mês de gestação.
No seguimento, tão somente visando ao esclarecimento daqueles que tenham interesse, pois que a ilegitimidade da atuação do Supremo já é patente pela evidente violação da tripartição dos poderes, procedeu-se à demonstração da fragilidade, puerilidade e até mesmo da má retórica que adorna a argumentação em prol da liberalização do aborto no Brasil, seja por razões morais, sociais, jurídicas, econômicas ou de qualquer natureza.
A conclusão é a de que, para além de inconstitucional, por violação da tripartição dos poderes, a manifestação do Supremo Tribunal Federal acerca do crime de aborto é despida de fundamentos convincentes, ao menos quando se tem por objetivo aprofundar as questões postas e não ficar na superfície do discurso fácil e sedutor da liberdade sem responsabilidade, das frases de efeito e da zona de conforto do politicamente correto.
Sabe-se que a decisão foi incidental e não tem efeito vinculativo. Mas, sua face deletéria é inevitável porque constitui um precedente da mais alta corte do país e seus efeitos práticos são imponderáveis.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.
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