1. A declaração como compromisso concreto de garantia a todos os homens de todos os direitos
A Declaração Universal dos Direitos do Homem adotada pela Organização das Nações Unidas, reunida em Assembléia Geral no dia 10 de dezembro de 1948, representa o coroamento dos esforços do ser humano no sentido de estabelecer regras abrangentes e perenes que promovam e garantam valores como a igualdade, a liberdade e a dignidade humanas.
A influência da Declaração Universal sobre outros textos positivos foi imensa nestes seus cinqüenta anos de vida. Dezenas de constituições nacionais promulgadas nos últimos tempos refletem princípios ali estatuídos. À título exemplificativo, a Constituição brasileira de 1988 proclama em seu artigo 4.º, inciso II, reger-se a República, entre outros, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos. A mesma carta, no parágrafo 2.º do art. 5.º, afirma que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Já a Constituição espanhola de 1978, em seu artigo 10.2, estabelece que os direitos fundamentais e liberdades nela reconhecidos intepretar-se-ão de conformidade com a Declaração. Também a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949, em seu artigo 2.º diz que o povo alemão se identifica com os invioláveis e inalienáveis direitos do homem, como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo.
Além de reconhecê-los em suas constituições, já a partir das primeiras décadas deste século, muitos Estados implementaram em toda sua extensão os direitos fundamentais – assim chamados após alcançarem dignidade constitucional. Hoje, especialmente no hemisfério Norte, diversos países europeus e os EUA têm estruturas estatais concebidas para garantir não só os direitos individuais e políticos mas também os econômicos, sociais e culturais. São os chamados Estados de Bem-estar, onde o poder público intervém para prover os direitos sociais, como conhecidos genericamente, e assegurar a redução do risco de infortúnio, dividindo-lo entre toda a população.
Todavia, o câmbio de prioridades por parte dos governos, deixando de lado as políticas sociais em nome da estabilização econômica; o crescimento a maior velocidade da demanda por direitos sociais que a prestação pelo Estado; e, mais recentemente, a globalização1, imergiram em uma crise de financiamento o Estado de Bem-estar. Esta crise estiolou especialmente os direitos sociais, econômicos e culturais, trazendo perplexidade à dogmática dos direitos humanos. São hoje, mais que nunca, estes direitos -frutos de luta libertadora levada a cabo a partir de meados do século passado por trabalhadores e teóricos socialistas-, vistos com desconfiança. Alguns iusfilósofos e doutrinadores, uns desde sempre e outros recentemente, lhes põem em dúvida ou negam verdadeiramente seu caráter de direitos fundamentais.
O objetivo deste, além de celebrar os dez lustros de vida da Declaração, é contribuir para aclarar e fixar o que sejam os direitos econômicos, sociais e culturais. Intentará o presente estudo cotejá-los com os direitos individuais, civis e políticos, deixando assim patente a estrutura comum de direitos fundamentais, tão fundamentais quanto qualquer outro elencado no Catálogo de 1948 e proclamado pelas diversas contituicões dos Estados modernos. A partir desta constatação se poderá enumerar razões justificadoras de seu reconhecimento e efetivação.
2. Do conteúdo da declaração
2.1. Preâmbulo
Em seu Preâmbulo a Declaração reconhece dignidade intrínseca e direitos iguais e inalienáveis a todos os membros da família humana; afirma que o desconhecimento e o menosprezo aos direitos humanos originaram atos de barbárie ultrajantes para a consciência da humanidade; reconhece a validez do supremo recurso da rebelião contra a tirania e a opressão; estima necessário o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; afirma a dignidade e o valor da pessoa humana, a igualdade de direitos entre homens e mulheres, pugnando por um conceito mais amplo de liberdade; e, finalmente, constatando o compromisso dos Estados membros com o respeito universal e efetivo aos direitos e liberdades fundamentais do homem, considera que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da maior importância para o pleno cumprimento de tal compromisso.
Segue-se a proclamação pela Assembléia Geral dos 30 artigos da Declaração, encabeçados por intróito onde se afirma ser este documento “… ideal comum pelo qual todos os povos e nações devem esforçar-se, a fim de que tanto os indivíduos quanto as instituições, inspirando-se constantemente nesta Declaração, promovam, pelo ensinamento e pela educação, o respeito a estes direitos e liberdades, e assegurem, por medidas progressivas de carácter nacional e internacional, seu reconhecimento e aplicação universais e efetivos.”
2.2. Direitos individuais, civis e políticos
Vinte e seis artigos da Declaração enumeram direitos fundamentais do homem. Os artigos 3.º a 21 reconhecem direitos individuais, civis e políticos. Os primeiros, clássicos, também chamados direitos liberais, frutos da luta da burguesia pela limitação do poder absoluto, já haviam sido recolhidos pelas declarações solenes do séc. XVIII (americana e francesa), e têm como antecedente imediato a noção de direito natural em sua elaboração doutrinal pelo jusnaturalismo racionalista (Grócio, Locke, Pufendorf). Outros direitos, como os de garantia perante os tribunais e os políticos, refletem conquistas mais recentes, a partir das décadas finais do século passado e da primeira metade deste.
São direitos individuais, civis e políticos enumerados pela Declaração: o direito à vida, à liberdade (de locomoção, de pensamento), de reunião, de nacionalidade e de propriedade; encontra-se também neste grupo de artigos consignada a condenação da escravidão, da tortura, da pena ou tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes; o reconhecimento da personalidade jurídica, a igualdade material e as garantias contra medidas arbitrárias, proteção igual perante os tribunais, de plena defesa, de não retroatividade da lei penal e presunção de inocência até julgamento final; direitos políticos de participação no governo, de votar e ser votado, de acesso às funções públicas, garantia de eleições autênticas, periódicas, mediante sufrágio universal e igual, e voto secreto ou procedimento equivalente.
2.3. Direitos econômicos, sociais e culturais
Os artigos 22 a 28 da Declaração enumeram os chamados direitos econômicos, sociais e culturais. Tais direitos visam resguardar o cidadão comum das vicissitudes de uma convivência social carregada de desigualdades que dificultam e muitas vezes impedem o livre desenvolvimento de seus planos de vida.
São direitos sociais do homem, como genericamente conhecidos, de acordo com os artigos mencionados: direito à segurança social e à satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade da pessoa humana e ao livre desenvolvimento de sua personalidade; direitos ao trabalho, à escolha do trabalho, a condições satisfatórias de trabalho, à proteção contra o desemprego, a salário digno e à liberdade sindical; direito à limitação razoável da duração do trabalho, a férias, a descanso remunerado e ao lazer; direito a um nível de vida adequado que lhe assegure, assim como a sua família, a saúde e o bem-estar e, em especial, a alimentação, o vestuário, a moradia, a assitência médica e os serviços sociais necessários; direito à previdência e seguro social no caso de desemprego, enfermidade, invalidez, viuvez e velhice; direitos especiais à maternidade e à infância; direito à educação, à instrução técnica e profissional e à cultura; direito a uma ordem social e internacional em que os direitos fundamentais sejam plenamente efetivos.
Os artigos 1.º e 2.º da Declaração estabelecem a igualdade entre os homens e também um mesmo tratamento entre ambas classes de direitos: individuais e sociais. O art. 29 estatui os deveres da pessoa para com a comunidade, a submissão somente à lei e a supremacia dos propósitos e princípios das Nações Unidas. Por fim, o art. 30 afirma o princípio de interpretação da Declaração sempre em benefício dos direitos e liberdades nela proclamados.
3. Direitos individuais versus direitos sociais: falsa bipartição?
Segundo o prof. Alfonso Ruiz Miguel, a antiga distinção entre direitos individuais e sociais, atribuída a Theodor H. Marshall, está longe de ser clara em seus contornos e limites:
“Uma corrente de cunho conservador, destaca que, devido à diferente natureza e importância dos direitos liberais a respeito dos sociais, enquanto os primeiros seriam básicos, universais, incondicionados e indeclináveis, até merecer o nome de direitos fundamentais e incorporarem-se às constituições, os segundos configurariam aspirações ideais, quiçá irrealizáveis e, em todo caso, mais particulares, condicionadas e subordináveis, de modo que só seriam direitos como maneira de dizer.
Para outra corrente, claramente progressista, um e outro tipos se consideram como em um contínuo em que os direitos civis e políticos são condição prévia necessária mas não suficiente para a liberdade e a igualdade, que só seriam reais e efetivas com a completa extensão dos direitos sociais, pelo que não há –ou não deveria haver- diferenças substanciais entre uns e outros em relação a sua fundamentação, titularidade, necessidade de respeito e gravidade de sua negação ou violação e quanto aos mecanismos jurídicos básicos disponíveis para sua proteção.”2
Apesar de afirmar a Declaração em seu artigo 2.º ter toda pessoa direito a todos os direitos e liberdades ali proclamados, a ação da Nações Unidas para a proteção dos direitos humanos tem sido marcada pela ambivalência ao tratar de direitos individuais e sociais.
A máxima expressão dessa contradição foi, como é bem conhecida, a adoção pela própria Assembléia Geral da ONU em 1966 de dois Pactos Internacionais, um sobre direitos civis e políticos e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais (ambos em vigor em 23.3.1976 e 03.01.1976, respectivamente, e, no Brasil, apenas em 24.01.1992, segundo José Afonso da Silva, devido ao regime autoritário que nos regia3).
A Declaração e o Pacto devem ser entendidos organicamente. A natureza antes política que jurídica da Declaração exigia a elaboração de um Pacto que conferisse juridicidade aos direitos proclamados na Carta de 1948. Porém, a adoção de dois Pactos e a tão discutível separação entre direitos individuais e sociais, em momento de incremento da guerra fria, deveu-se sobretudo à pressão dos países ocidentais que sustentavam que os direitos civis e políticos podiam ser protegidos efetivamente de modo imediato enquanto que os direitos econômicos, sociais e culturais somente poderiam ser-lo progressivamente.
A Comissão de Direitos Humanos da ONU inclinou-se finalmente pela distinção, apesar de em um primeiro momento, em seus trabalhos de preparação de textos, ter prevaleciso a idéia de adotar um Pacto único. Tal distinção, estabelecida assim de forma normativa, concedeu certa prioridade aos direitos civis e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais.4
4. Os direitos sociais, seu caráter prestacional e a liberdade fática
Em trabalho denominado Metodología ‘Fuzzy’ y ‘Camaleones Normativos’ en la Problemática Actual de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales, publicado na Revista Derechos y Libertades do Instituto de Direitos Humanos da Universidade Carlos III de Madrid, o prof. José Joaquim Gomes Canotilho critica o que chama de imprecisão dos juristas quando tratam do tema dos direitos econômicos, sociais e culturais. Afirma o constitucionalista português: “Em nosso modo de ver, recai sobre a dogmática e a teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais a carga metodológica de vagueza, indeterminação e impressionismo, que a teoria da ciência vem designando, em termos algumas vezes caricaturescos, sob a nome de fuzzysmo ou metodologia fuzzy. Com todo seu radicalismo, a censura de fuzzysmo lançada aos juristas significa basicamente que eles não sabem do que estão tratando quando abordam os complexos problemas dos direitos econômicos, sociais e culturais”. Com nome de “camaleões normativos”, quer Canotilho enfatizar a suposta indeterminação normativa do sistema jurídico dos direitos sociais, que acarretaria “…confusões entre conteúdo de um direito juridicamente definido e determinado e sugestão de conteúdo, sujeita a configurações político-jurídicas cambiantes”5
Intentando precisar os conceitos e fugir da vagueza apontada pelo mestre português, pode-se lançar mão das lições trazidas à luz por Robert Alexy. Para o mestre alemão, o argumento principal em favor dos direitos fundamentais sociais é o argumento da liberdade. Enumera duas teses para respaldar sua afirmação: segundo a primeira, a liberdade jurídica para fazer ou omitir algo sem a liberdade fática (real), ou seja, sem a possibilidade fática de eleger entre o permitido, carece de todo valor; a segunda tese propõe o seguinte: sob as condições da moderna sociedade industrial, a liberdade fática de um grande número de titulares de direitos fundamentais não encontra substrato material em um ‘âmbito vital dominado por eles’, pelo contrário, depende esencialmente de atividades estatais.6
Ainda segundo Alexy, quando se trata de direitos sociais fundamentais, por exemplo, de direito a previdência social, ao trabalho, à casa própria e à educação, faz-se principalmente referência a direitos a prestações em sentido estrito. “Os direitos a prestações em sentido estrito são direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que –se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e encontrasse no mercado uma oferta suficiente- poderia obtê-lo também de particulares.”7
Canotilho questiona a função estatal de agente provedor das demandas prestacionais dos cidadãos, além de duvidar da validade do princípio da universalidade para os direitos sociais tanto quanto para os direitos individuais. Critica o que chama de introversão estatal da socialidade, que estaria na origem da crise do Estado social. Aponta como traços desta introversão: “1. Os direitos sociais implicam o dever do Estado de prover as prestações correlativas ao objeto destes direitos; 2. Os direitos sociais postulam esquemas de universalidade: o Estado garante e paga determinadas prestações a alguns cidadãos; 3. Os direitos sociais eliminam a reciprocidade, ou seja o sistema de troca entre os cidadãos que recebem, porque a mediação estatal dissolve na burocracia prestacional a visão dos atores e a eventual reciprocidade da troca”.8
Aponta o constitucionalista luso como soluções, caminhos a ter em conta na pós-modernidade deste final de milênio, a desintroversão que, segundo ele, passa pela desconstitucionalização das políticas sociais (ressalva a necessidade da presença dos direitos sociais no nível normativo-constitucional) e a subsidiariedade, uma espécie de processo auto-sustentado de desintroversão, composto de iniciativas de auto-ajudas sociais (alcoólatras anônimos, grupos de apoio aos portadores de SIDA, sociedade dos afetados por eslerose múltipla etc.).9
5. As duas classes de direitos e sua impossibilidade de divisão taxativa.
Sem embargo da opinião acima transcrita, autorizada dogmática dos direitos humanos não comparte desta idéia. Além do que, como dito, a Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu artigo 2.º determina que todos os homens têm direito a todos os direitos ali proclamados, sem distinção. Trabalhando nesta direção, Alfonso Ruiz Miguel sustenta a inexistência de divisão categórica entre os direitos sociais e os liberais, tanto desde um ponto de vista conceitual, quanto no que respeita a sua justificação ou fundamentação. Propõe-se o professor espanhol a analisar os direitos econômicos, sociais e culturais a partir das três características básicas dos direitos humanos: seu carácter absoluto, universal e inalienável. Procura mostrar que, sob o prisma das propriedades mencionadas, nada justifica juridicamente o tratamento diferenciado de um grupo de direitos em detrimento do outro, já que se nem todos os direitos sociais encerram as três características tampouco alguns direitos individuais as contêm plenamente.
5.1. Do caráter absoluto
No que tange à qualidade absoluta dos direitos humanos, entendida estritamente como ilimitabilidade dos direitos fundamentais, ou seja, como validez em qualquer caso e exclusão de toda limitação ou exceção, segundo Ruiz Miguel, tal característica está presente em poucos direitos: o direito a não ser torturado, a presunção de inocência, o direito a um juízo justo e os direitos derivados do princípio de legalidade penal. Em relação a direitos civis e políticos tão importantes como o direito à vida, à liberdade física, religiosa e ideológica, a liberdade de expressão, de reunião e de associação, a liberdade de circulação, o direito à honra e à intimidade etc, se aceita que tenham limites.10
Do mesmo modo, o autor põe em questão o caráter absoluto dos direitos humanos pelos limites de natureza fática que lhes afetam, devido à impossibilidade física do cumprimento completo em todos titulares e casos. Faz três cosiderações: em primeiro lugar, assinala que nenhum direito pode ser garantido de fato de maneira absoluta frente a eventuais violações, tanto oficiais quanto de particulares; em segundo lugar, a condição de suficiência dos recursos materiais não é exclusiva dos direitos sociais –muito poucos direitos são baratos, especialmente nos complexos sistemas sócio-políticos atuais; em terceiro lugar, o argumento da possibilidade como condição das obrigações morais (impossibilia nemo tenetur) há de referir-se a impossibilidades definitivas e não a respeito de deveres prima facie genericamente atribuíveis a indivíduos indeterminados.
Pode-se pôr como exemplo do tênue caráter absoluto de alguns direitos fundamentais, nossa realidade, onde até os direitos individuais mais rotundos são negados por falta de investimentos públicos. O direito a não ser torturado é transgredido frequentemente por nossa polícia nos mais diversos rincões do país. O câmbio de atitude por partes dos agentes policiais exige uma mudança de mentalidade que requer decididos investimentos em capacitação de pessoal, salários, fiscalização etc. Tal direito fundamental, individual e absoluto está a exigir, como muitos direitos sociais, prestação estatal para sua garantia.
5.2. Da universalidade
Segundo Ruiz Miguel as distintas formas de manifestação da universalidade revelam-se tanto no âmbito dos direitos civis e políticos quanto no dos sociais. Afirma existirem alguns direitos que respondem a um esquema teórico baseado na reciprocidade universal, porém, não só no campo dos direitos civis e políticos (direito à vida, ao juiz natural ou à liberdade), mas também no campo dos direitos sociais (direito a condições dignas de vida, proteção à saúde ou a não viver em um meio ambiente contaminado).
Diz o autor: “Alguns direitos comportam deveres imediatamente universais: são os chamados direitos ativos (de autonomia ou de participação): direito à vida, à liberdade, ao voto secreto, à greve. Estes impõem deveres negativos, ou seja, proibições ou abstenções por parte de terceiros. Enquanto que os direitos não ativos (de recepção ou crédito): direito à assitência jurídica integral e gratuita, à ampla defesa, direito à saúde, impõem deveres positivos, ou seja, obrigações ou ações por parte de terceiros que hão de organizar-se institucionalmente, se diferenciando a atividade de prestação que recairá sobre algumas pessoas concretas e seu custo que – este sim- há de repartir-se mais generericamente.”11
Destaca ainda que alguns direitos fundamentais aparentemente não são universais no sentido acima dito. Enumera três tipos: 1. Direitos universalmente proclamados mas particularmente garantidos. Põe de manifesto a distância existente entre o proclamado caráter universal de certos direitos e o problema de sua realização efetivamente universal, como, v.g., a igualdade entre homens e mulheres; 2. Direitos de titular privilegiado. No caso do direito à informação: a liberade de cátedra para os professores, a liberdade de informação para as empresas jornalísticas e o resguardo do sigilo da fonte para os jornalistas; 3. Direitos setoriais. Direitos que se atribuem a setores particulares da cidadania, como o direito à sindicalização e à greve, o direito à proteção especial aos idosos e deficientes físicos e os direitos da infância e da juventude.12
5.3. Da inalienabilidade
Com relação à terceira característica, seu caráter de inalienabilidade, declara Ruiz Miguel: “A inalienabilidade dos direitos fundamentais, como impossibilidade moral de renunciar a eles, é uma característica comum defendida pela tradição liberal clássica, desde John Locke, Thomas Jefferson ou Thomas Paine até a Declaração de Independência dos Estados Unidos, a Declaração Francesa de 1789 ou a própria Declaração Universal de 1948. Mesmo sendo esta uma categoria muito complexa e não isenta de agudos problemas a propósito de seu alcance – em especial no que respeita à diposição sobre a própria vida-, parece fundada e admitida a exclusão da aceitabilidade ética e jurídica da renúncia total à liberdade, ou seja, a proibição do contrato de escravidão, o que torna moral e juridicamente inviável a utilização da liberdade para abdicar, também moral e juridicamente, da própria liberdade. Esta característica da inalienabilidade dos direitos humanos exige certa rediscussão da relação entre direitos e liberdades, de modo que ter um direito não se identifique automaticamente com ter uma faculdade de fazer ou não fazer, porém sim com ter uma necessidade ou interesse básico protegido.”13
Como se vê, Ruiz Miguel considera impossível enquadrar todos os direitos fundamentais em estruturas jurídicas dicotômicas: direitos individuais como direitos de omissão e direitos sociais como direitos de prestação. Ademais disso, as categorias de universalidadade, valor absoluto e inalienabilidade não se aplicam automaticamente a todos os direitos fundamentais. Intenta em seguida o autor mostrar esquematicamente a variedade possível de estruturas jurídicas de proteção dos distintos direitos, seguindo, com alguma variação conceitual e terminológica, a classificação proposta por Robert Alexy:
“a) Meras permissões (Liberdades não protegidas na terminologia de Alexy). Uma mera permissão tem a estrutura: ‘A pode licitamente fazer ou não fazer X’ e não implica somente a proibição de interferência de terceiros, porém, unicamente, por razões lógicas, a ausência de proibição ou mandato em relação a X por parte de quem concede a permissão. O usual, contudo, é que uma mera permissão seja um dos vários componenetes de um tipo de direitos fundamentais: os de exercício discricionário, como as liberdades de consciência, de expressão, de associação (genérica, política ou sindical), de reunião, de circulação, etc., assim como os direitos de greve, de criação de centros docentes ou de empresas jornalísticas, a contrair matrimônio, etc.
b) Direitos a algo. Um direito a algo tem a estrutura: “A tem frente a B um direito a Z” e se caracteriza por ser o objeto do direito (o algo) uma conduta, ativa ou omissiva, do sujeito do deber correlativo; contêm direitos a algo não só os direitos fundamentais de exercício discricionário citados acima, como também os de exercício obrigatório, como os direitos a não ser torturado, a um juízo justo, à presunção de inocência, à assitência jurídica integral e gratuita, à educação básica, a um meio ambiente despoluído, etc.
c) Competências. Uma competência tem a estrutura: ‘A tem a capacidade institucional de criar uma situação jurídica J’ e se caracteriza pela possibilidade de criar (modificar ou extinguir) direitos ou obrigações privados ou poderes ou deveres públicos, mediante um ato previsto constitivamente pelas normas que outorgam dita possibilidade. As competências dos particulares podem ser privadas e públicas. São privadas as derivadas da liberdade de contratação e de testar, em relação ao direito à propriedade privada, e a liberdade de matrimômio, assim como a liberdade de criação de fundações, associações, sindicatos, empresas, etc. As competências públicas dos particulares mais importantes são, por um lado, as próprias do exercício do voto e de outro lado, as de reclamação administrativa e judicial para o cumprimento dos próprios direitos ou por seu imcumprimento.”14
Tal classificação se aplica a posições jurídicas simples que quase nunca coincidem exatamente com os direitos fundamentais, a que Alexy chama direitos “como um todo”. Estes freqüentemente se caracterizam como um conjunto de posições jurídicas, ou, como o chama Alexy, “um feixe de posições jusfundamentais”.15
6. Direitos econômicos, sociais e culturais garantidos com a aplicação de princípios constitucionais.
Robert Alexy procura resolver o problema dos direitos econômicos, sociais e culturais de maneira rigorosa e jurídica. A idéia é que, desde o marco constitucional, estes direitos são tão importantes que não podem ser deixados ao alvedrio do legislador que vota o orçamento, que define as políticas públicas de implementação dos direitos sociais. Com muito mais razão quando se sabe, como no caso brasileiro, que este muitas vezes não vota movido pela defesa dos interesses da sociedade.
De acordo com o professor alemão, a questão acerca de quais são os direitos fundamentais sociais que o indivíduo possui definitivamente é uma questão de ponderação entre princípios. Afirma Alexy: “O modelo não diz quais direitos fundamentais sociais definitivos tem o indivíduo mas sim quais pode ter e o quê interessa na questão de sua definição e conteúdo. A resposta detalhada a esta questão é tarefa da dogmática dos diferentes direitos fundamentais. Contudo, é possível dar uma resposta genérica. Haverá que considerar que uma posição de prestação jurídica está definitivamente respaldada jusfundamentalmente se: (1)a exige muito urgentemente o princípio da liberdade fática e (2)o princípio da divisão de poderes e o da democracia (que inclui a competência orçamentária do parlamento) da mesma maneira que (3) princípios materiais opostos (especialmente aqueles que apontam à liberdade jurídica alheia) são afetados em uma medida relativamente reduzida em virtude da garantia jusfundamental da posição de prestação jurídica e das decisões do Tribunal Cosntitucional que a levam em consideração. Em todo caso, estas condições estão satisfeitas no caso dos direitos fundamentais sociais mínimos, ou seja, por exemplo, a um mínimo vital, a uma moradia simples, à educação escolar, à formação profissional e a um nível padrão mínimo de assitência médica.”16
A insistência de Alexy na ponderação entre princípios para definição dos direitos fundamentais, individuais ou sociais, traz para a arena de decisões jusfundamentais os operadores jurídicos, que não podem abster-se, relegando ao legislador e ao administrador tarefas de tal importância. À proposta de ponderação entre princípios se objeta geralmente, em nome da certeza do direito, que abriria flanco ao arbítrio dos operadores do direito, autorizados a interpretá-los de acordo com pontos de vista mutáveis. A certeza do direito deveria assentar-se, segundo essa postura, nas regras jurídicas, normas estáveis que representariam um meio termo entre a dimensão axiológica (princípios) e empírica (casos concretos).
Tal objeção é contestada por Gustavo Zagrebelsky. Afirma o professor italiano que a realidade em que é chamado o operador jurídico a atuar mudou radicalmente do século passado para este. No Estado liberal de direito não se vivia os problemas hoje vividos e a interpretação podia reduzir-se à busca de significados das regras (normas) queridas pelo legislador. Hoje, ao contrário, qualquer jurista conhecedor das características dos seu trabalho sabe quanto influem as pretensões do caso concreto na determinação da regra e sabe que a interpretação, se não está orientada ao caso, é uma busca em vão, carente de sentido.
Para Zagrebelsky a causa da falta de certeza nos processos de aplicação do direito radica em estamentos nos quais o direito não está chamado a operar, qual seja, o esgotamento de um quadro de princípios de sentido e valor compartidos pela generalidade. Diz o professor: “Ao faltar um único e seguro ‘horizonte de expectativa’ em relação ao resultado das operações de interpretação, os caminhos da jurisprudência terminarão bifurcando-se e, em muitos casos, se perderá também a possibilidade de distinguir o ‘principal’ dos ‘desviados’.”17
Conclui Zagrebelky: “Mesmo que tudo isto comporte efeitos negativos para a certeza do direito, há que estar claro que eles não são uma anomalia, são antes conseqüências dos sistemas jurídicos atuais. Se pode reprová-los, mas as coisas seguirão como estão. Por outra parte, tendo-se em conta alguns fatos –que hoje os princípios que contêm valores de justiça se converteram em direito positivo integrado à Constituição; que, por conseguinte, a apelação à justiça, junto ou contra as regras jurídicas, já não pode ver-se como um gesto subversivo e destrutor do direito (à diferença do que sucedia na época do positivismo jurídico), senão que é algo previsto e admitido; que tais princípios consistem fundamentalmente em ‘noções de conteúdo variável’ e, portanto, cumprem uma função essencialmente dinâmica-, se compreenderá então que se introduziu no ordenamento uma força permanentemente orientada ao câmbio.”18
Todas estas mudanças estão a exigir do operador jurídico coragem para fugir do normativismo formalista e não hesitar diante do desafio de aplicar os direitos humanos e sociais. O novo Estado social a que aspira a cidadania, agente da democracia social e econômica, reclama dos que operam o direito uma nova técnica interpretativa. Tal técnica, como observa o prof. José Eduardo Faria, está em sintonia com a Constituição de 1988, e com leis como o Código de Defesa do Consumidor, a legislação de proteção ao meio ambiente, a Lei de Execuções Penais e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Afirma o mestre paulista: “ No atual Estado-Providência, com seus diferentes e complexos papéis como provedor de serviços básicos, como promotor de novas relações sociais, como planejador de atividades econômicas e até mesmo como agente diretamente produtor de bens e serviços, muitas de suas leis caracterizam-se por suas funções promocionais – o que exige de seus aplicadores, nos tribunais, um amplo esforço de compreensão valorativa de suas regras, mediante programas mais abertos e flexíveis do que os previstos pela hermenêutica comum ao Estado liberal.”19
7. Efetivação dos direitos sociais como outorga de dignidade aos cidadãos
Os direitos sociais são tão relevantes quanto os direitos individuais: a igualdade e a liberdade formais, apenas jurídicas, que não pressuponham capacidade efetiva de escolha, não são verdadeiras. A realização destes postulados exige o cumprimento concreto e as garantias efetivas tanto dos direitos individuais, civis e políticos quanto dos direitos econômicos, sociais e culturais, de maneira interdepedente e indivisível.
A distinção definitiva entre as duas categorias não existe. O que existe é uma tradição muito mais antiga de respeito aos direitos individuais liberais e uma resistência de governos globalizados dos tempos atuais em optar por seguir investindo no bem-estar de seus povos. Propugnar o fim do Estado, ou mesmo sua redução drástica nos moldes neo-liberais está em contradição com a dogmática dos direitos humanos e representa um retrocesso palmar.
Defender a existência de um direito moral, inclusive básico, atinente às necessidades primeiras do ser humano, não implica exigir sua organização como direito jurídico no sentido mais arraigado desta última expressão, como pretensão judicialmente acionável (o direito subjetivo no sentido técnico de Kelsen). Alexy demonstra que é possível a contrução com rigor de categorias que encerrem os direitos fundamentais, sem lhes diminuir a juridicidade.
Os princípios constitucionais que enumeram direitos sociais devem ser interpretados pelos operadores jurídicos e pelos tribunais constitucionais -como demonstram as experiências alemã italiana e espanhola-, de maneira aberta e dirigida a sua consecução. O método interpretativo, além de variado deve ser, como afirma Zagrebelsky, só um expediente argumentativo, para mostrar que a regra extraída do ordenamento é uma regra possível.
Claro está ser necessária a coragem de todos os que estão convocados à árdua tarefa de aplicar o direito, especialmente os direitos fundamentais e particularmente os direitos sociais, econômicos e culturais de cuja ausência nosso povo tanto se ressente. Ademais, indispensável é também uma postura hermenêutica sensível à natureza do Direito, esforço teórico e empírico dirigido de forma teleológica à consecução dos postulados de Justiça. Justiça que, como definida pela Filosofia, jurídica ou moral, está de forma irrefragável ligada à noção de dignidade humana, em todas as acepções que esta expressão pode compreender.
Bibliografia:
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Mariño, Fernando M. Avances Jurídicos en la Protección de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales dentro del Marco de las Naciones Unidas. in Derechos y Libertades, Revista do Instituto Bartolomé de las Casas, n .6. B.O.E. Madrid. 1998. pp. 86/88.
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Ruiz Miguel, Alfonso. Derechos Liberales y Derechos Sociales. in Revista Doxa n. 15-16. Alicante. 1994.
Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo. 1997.
Zagrebelsky, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascón. Trotta. Madrid. 1997.
Notas:
1. Sobre globalização e direitos humanos, percuciente estudo do prof. José Eduardo Faria: Democracia e Governabilidade: os Direitos Humanos à Luz da Globalização Econômica. in Pinheiro, José Ernane (org.). Ética, Justiça e Direito. Vozes. Petrópolis. 1996.
2. Ruiz Miguel, Alfonso. Derechos Liberales y Derechos Sociales. Revista Doxa n. 15-16. Alicante. 1994. pp. 651/653.
3. Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo. 1997. p. 164.
4. Cf. Mariño, Fernando M. Avances Jurídicos en la Protección de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales dentro del Marco de las Naciones Unidas. Derechos y Libertades, Revista do Instituto Bartolomé de las Casas, n .6. B.O.E. Madrid. 1998. pp. 86/88.
5. Gomes Canotilho, J.J. Metodología “Fuzzy” y “Camaleones Normativos” en la Problemática Actual de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Derechos y Libertades, Revista do Instituto Bartolomé de las Casas. n. 6, B.O.E. Madrid. 1998. pp. 37/39.
6. Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. CEC. Madrid. 1997. pp. 486/487.
7. Iden, p. 482.
8. Op. cit. p. 40.
9. Op. cit. pp. 48/49.
10. Op. cit. p. 657.
11. Op. cit. pp. 661/662.
12. Op. cit. pp. 662/663.
13. Op. cit. p. 664.
14. Op. cit. pp. 668/670.
15. Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés. CEC. Madrid. 1997, p. 241.
16. Op. cit. pp. 494/495.
17. Zagrebelsky, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascón. Trotta. Madrid. 1997. p. 144/146.
18. Op. Cit. p. 144/146.
19. Faria, José Eduardo. As Transformações do Judiciário em Face de suas Responsabilidades Sociais. em Faria, José Eduardo (org.), Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. Malheiros, São Paulo, 1994, p. 62.
Promotor de Justiça em Brasília/DF
Doutorando em Direito Fundamentais na Universidad Carlos III de Madrid/Espanha
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