Resumo: Pretende-se pelo presente estudo uma análise sistemática acerca dos recursos repetitivos, recentemente inseridos no Direito Processual Brasileiro, buscando compreendê-los como institutos de Processo Coletivo, o que, por consequência, levará a conclusão de sua incompatibilidade com o sistema processual adotado atualmente pela legislação brasileira, no que se refere aos efeitos do provimento jurisdicional. Para tanto, adotar-se-á como marco teórico a Teoria Constitucionalista do Processo, o que possibilitará uma análise crítica do instituto, sob uma perspectiva democrática. Para o presente estudo, utilizar-se-á a pesquisa bibliográfica e o método dedutivo, partindo-se de uma perspectiva macro para uma concepção micro analítica acerca do tema ora em estudo e, por fim, como procedimento técnico a análise temática, teórica e interpretativa, buscando sugestão para a solução da questão destacada.
Palavras-chave: Recursos repetitivos; Estado Democrático de Direito; Processo coletivo; Processo constitucional.
Abstract: It is intended by this study, a systematic review about the repetitive appeals, recently entered the Brazilian procedural law, seeking to understand them as institutes Collective Process, which consequently will lead to completion of its incompatibility for the procedural system currently adopted with Brazilian law, with regard to the effects of jurisdictional provision. To this end, it shall be adopted as the theoretical framework Constitutionalist Theory of Procedure, which will enable a critical analysis of the institute, under a democratic perspective. For the present study, will be used to bibliographical research and deductive method, starting from a macro perspective for micro analytical conceptions of the topic currently under study and, finally, as a technical procedure thematic, theoretical and interpretive analysis seeking suggestions for resolving the outstanding issue.
Keywords: Repetitive appeals; democratic state of law; collective process; constitutional process.
Sumário: 1 Introdução; 2 Análise Sistemática do Procedimento de Julgamento por Amostragem dos Recursos Especiais; 3 Os Recursos Repetitivos como Instituto de Processo Coletivo; 4 Os Efeitos da Sentença no Processo Coletivo Brasileiro; 5 Da Falta de Legitimidade Democrática no Provimento Jurisdicional do Recurso Repetitivo; 6 Considerações Finais; Referências.
1 INTRODUÇÃO
Diante de uma atual tendência de busca pela celeridade processual, o Direito Brasileiro vem sofrendo uma série de reformas e alterações, com o objetivo de abreviar o tempo de duração dos procedimentos e combater a tão falada morosidade do Judiciário. Buscando alcançar o referido objetivo, o Direito Processual vem adotando uma tendência de padronização decisória.
Uma dessas alterações legislativas consistiu na inclusão do artigo 543-C no Código de Processo Civil, pela promulgação da Lei nº 11.672, de 08 de maio de 2008, que instituiu um procedimento para julgamento de recursos especiais repetitivos no Superior Tribunal de Justiça.
Por meio de tal procedimento, os Recursos Especiais que tratem de temas recorrentes no Tribunal poderão ser julgados “por amostragem”. Isso significa dizer que, diante da multiplicidade de recursos que abordem uma mesma questão, somente alguns desses recursos serão analisados como representativos da controvérsia. No entanto, o resultado obtido afetará os recursos não analisados, podendo, inclusive, ensejar novo julgamento do acórdão de segundo grau recorrido.
Diante da análise do referido instituto, seu conceito e procedimento previsto na legislação regulamentadora, pretende-se demonstrar que o julgamento de recursos repetitivos implica, por consequência, reconhecimento do caráter coletivo da matéria debatida no Recurso Especial, motivo pelo qual merece ser estudado sob a ótica do processo coletivo. Ao analisar a questão sob esta ótica, surge o problema a ser debatido no presente trabalho: os efeitos do provimento jurisdicional no processo coletivo.
Em se tratando de julgamento de recursos repetitivos, tal questão se revela problemática, uma vez que inexiste qualquer previsão legal que autorize a opção da parte de não se submeter aos efeitos do provimento construído no julgamento de recursos repetitivos, tornando vinculante o efeito de tal provimento.
O problema se agrava ao se realizar uma análise comparativa com os efeitos do provimento do processo coletivo, que se encontram previstos no artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor. Referido dispositivo legal permite que as partes dos procedimentos individuais, em que se debata o mesmo tema do procedimento coletivo, optem por se submeter ou não aos efeitos do provimento construído no procedimento do qual não participaram efetivamente.
Assim, o objetivo do presente trabalho consiste em analisar os efeitos decorrentes do julgamento de recursos repetitivos, trazendo como contraponto a previsão legal contida no artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor, de forma a buscar a medida que mais se compatibiliza com a concepção de processo adotada no Estado Democrático de Direito, consagrado no Brasil pela promulgação da Constituição de 1988.
Tem-se, portanto, que o objetivo do presente trabalho é abordar o julgamento de recursos repetitivos diante do Estado Democrático de Direito, principalmente no que se refere ao processo coletivo, visando demonstrar a inadequação de tratamento do processo coletivo, que obsta a concretização da democracia.
2 ANÁLISE SISTEMÁTICA DO PROCEDIMENTO DE JULGAMENTO POR AMOSTRAGEM DOS RECURSOS ESPECIAIS
Seguindo a tendência de busca pela celeridade do procedimento, a Lei nº 11.672, de 08 de maio de 2008, introduziu no Código de Processo Civil o artigo 543-C, instituindo uma nova técnica de julgamento de recursos especiais, por meio da litigância de massa.
Assim, o artigo 543-C trata da multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito, hipótese em que o julgamento do recurso escolhido como representativo servirá de parâmetro para o julgamento dos demais. Cabe ao Presidente do Tribunal de origem escolher um ou mais recursos para representar a controvérsia e encaminhá-los ao Superior Tribunal de Justiça, ficando sobrestados na origem os demais recursos que tratem do mesmo tema.
Conforme orientação desse dispositivo legal, diante da multiplicidade de Recursos Especiais “com fundamento em idêntica questão de direito”, deve o “presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça”.
Com tal procedimento, somente alguns recursos especiais serão julgados, a fim de que o resultado obtido em seus julgamentos se estendam aos demais recursos que debatem o mesmo tema.
O grande problema a ser debatido no presente trabalho encontra-se previsto no artigo 543-C, § 7º:
“Art. 543-C (…)
§ 7º Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem:
I – terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou
II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça”.
Tal dispositivo legal, ainda que de forma sutil, trata da vinculação do precedente judicial criado no julgamento dos recursos repetitivos. Ainda que ausente a expressão “vinculante”, é certo que os recursos sobrestados somente poderão ter dois caminhos: novo julgamento pelo tribunal de origem, para se adequar ao entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça ou terão seguimento negado, caso o acórdão recorrido coincida com o tal entendimento.
Resta, portanto, induvidoso que tal instituto implica no reconhecimento do caráter coletivo da questão debatida no Recurso Especial, motivo por que se revela a importância do estudo deste pressuposto de admissibilidade na perspectiva das ações coletivas.
Desse modo, após tais considerações breves acerca dos recursos repetitivos, pretende-se uma análise acerca do direito processual coletivo e suas peculiaridades, visando à compreensão do estudado pressuposto de admissibilidade como um instituto destinado à tutela de direitos que extrapolam a esfera individual, atingindo a coletividade.
3 OS RECURSOS REPETITIVOS COMO INSTITUTO DE PROCESSO COLETIVO
Para que seja possível a compreensão do recurso repetitivo como instituto destinado à tutela de direitos coletivos, necessário esclarecer que se entende por Processo Coletivo aquele que visa tutelar os direitos coletivos, dentre os quais se tem os coletivos em sentido estrito e os difusos e, ainda, os individuais homogêneos, sendo necessário, portanto, defini-los para uma melhor compreensão do tema proposto.
Ressalte-se, também, que incorreta a expressão “interesses coletivos”, tendo em vista que, conforme entendimento esposado por Vicente de Paula Maciel Junior, o interesse, entendido como manifestação de vontade em face de um bem, “é sempre individual, porque pertence à esfera psíquica que liga um sujeito a um bem” (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 54).
Desse modo, tendo em vista o supramencionado conceito de interesse, como algo existente somente na esfera individual, é inviável falar em interesses na esfera coletiva, revelando-se mais correta a adoção das expressões direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
O Código de Defesa do Consumidor adota, em seu artigo 81, os seguintes conceitos:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.”
No caso dos recursos repetitivos, é certo que a adoção de um acórdão como paradigma obrigatório para o julgamento de outras demandas que debatam a mesma questão torna esse procedimento uma técnica destinada à tutela dos direitos individuais homogêneos. Isso porque os direitos individuais homogêneos consistem em “um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que permite a defesa coletiva de todos eles” (ZAVASCKI, 2007, p. 43). Ou seja, os interessados compartilham prejuízos divisíveis de mesma origem.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, o “adjetivo ‘homogêneos’ só indica que o fato gerador é único, já que a dimensão qualitativa ou quantitativa do direito pode variar em razão do indivíduo” (CARVALHO FILHO, 2007, p. 30), e prossegue fazendo a seguinte distinção entre os direitos tutelados pelo processo coletivo:
“A categoria dos interesses individuais homogêneos guarda distinção fundamental em relação aos interesses coletivos e difusos: enquanto estes são transindividuais, porque o aspecto de relevo é o grupo, e não seus componentes, aqueles se situam dentro da órbita jurídica de cada indivíduo. Por outro lado, os direitos transindividuais são indivisíveis e seus titulares são indeterminados ou apenas determináveis, ao passo que os individuais homogêneos são divisíveis e seus titulares são determinados.” (CARVALHO FILHO, 2007, p. 30).
Diante de tais considerações, resta induvidoso que o julgamento dos recursos pela escolha de representativos, como ocorre na hipótese do artigo 543-C do Código de Processo Civil, trata-se de forma de processo coletivo, tendo em vista que ocorre, em um único julgamento, a discussão acerca de matéria de direito coletivo, cujo provimento valerá para os demais recursos, ou seja, discutem-se direitos individuais homogêneos.
No entanto, a regulamentação do referido instituto pela Lei 11.672/2008 não cuidou de abordar o procedimento observando as normas do direito processual coletivo, como se pretende demonstrar neste trabalho.
4 OS EFEITOS DA SENTENÇA NO PROCESSO COLETIVO BRASILEIRO
Acerca dos efeitos da sentença no processo coletivo destinado à tutela dos direitos individuais homogêneos, dispõe expressamente o artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor, em seu inciso III e parágrafo § 2º.
É o que se observa:
“Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada: (…)
III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81. (…)
§ 2° Na hipótese prevista no inciso III, em caso de improcedência do pedido, os interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes poderão propor ação de indenização a título individual.”
Percebe-se que a extensão dos efeitos foi estabelecida, secundum eventum litis, ou seja, dependendo do resultado do julgamento. Desse modo, diante da procedência do pedido inicial, haverá sempre a ampliação subjetiva da eficácia do julgado. Mas, do contrário, quando a pretensão for negada, o pedido julgado improcedente não será vinculativo para todos os interessados e legitimados, caso a improcedência decorrer da insuficiência probatória.
Sobre o supracitado dispositivo legal, é o ensinamento de Antônio Gidi:
“O inciso III do artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor prevê que a sentença fará coisa julgada somente no caso de procedência do pedido. Surge, então, a perplexidade de se saber o que aconteceria no caso de improcedência. Não haveria formação de coisa julgada material nesse caso? A coisa julgada seria apenas inter partes? Resolve-se o problema com uma interpretação conjugada com o § 2º do mesmo artigo. Se esse dispositivo ressalva aos ‘aos interessados que não tiverem intervindo no processo como litisconsortes’, a possibilidade de propor a sua ação individual é porque, contrario sensu, aqueles interessados que intervieram, aceitando a convocação do edital a que se refere o art. 94, são atingidos pela coisa julgada inter partes”. (GIDI, 1995, p. 139).
Sobre a coisa julgada no modelo representativo brasileiro, é o ensinamento de Fabiano Afonso:
“Os limites objetivos da coisa julgada nas ações coletivas se operam para beneficiar todos os titulares de direitos ou interesses discutidos na ação coletiva em caso de procedência, havendo, assim, a coisa julgada secundum eventum litis para se ter eficácia erga omnes.
Nos casos de improcedência da ação, não se transmitem os efeitos erga omnes, conforme dispõe o art. 103 do CDC. Isso deriva de que os legitimados individuais possuem o direito ao devido processo legal, ampla defesa, contraditório e isonomia, com a finalidade de reverterem em juízo a demanda que lhes for desfavorável de forma individual”. (AFONSO, 2010, p. 324).
Ainda é certo que, em se tratando de procedimento que visa à tutela de direitos coletivos, os efeitos da sentença, conforme preconizado no art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, somente podem atingir às demandas individuais se houver expresso pedido da parte de suspensão, manifestando claramente seu interesse em se submeter aos efeitos do processo coletivo.
É o que dispõe:
“Art. 104. As ações coletivas, previstas nos incisos I e II e do parágrafo único do art. 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de trinta dias, a contar da ciência nos autos do ajuizamento da ação coletiva”.
Nesse sentido, leciona Ricardo de Barros Leonel:
“A necessidade de reconhecimento de maior extensão aos efeitos da sentença coletiva é conseqüência da indivisibilidade dos interesses tutelados (material ou processual), tornando impossível cindir os efeitos da decisão judicial, pois a lesão a um interessado implica a lesão a todos, e o proveito a todos beneficia. É a indivisibilidade do objeto que determina a extensão dos efeitos do julgado a quem não foi parte no sentido processual, mas figura como titular dos interesses em conflito.” (LEONEL, 2002, p. 259).
Similar é o que ocorre no sistema das class actions, em que os interessados, ainda que não tenham participado da construção do provimento jurisdicional, ficam sujeitos aos efeitos da sentença, exceto se exercido o opt-out, o direito de exclusão, conforme esclarece Antonio Gidi:
“Ao contrário do que acontece no direito processual civil brasileiro, porém o efeito vinculante da sentença coletiva em face das pretensões individuais dos membros do grupo independe do resultado da demanda ou da suficiência do material probatório disponível ao grupo. Seja a sentença favorável ou contrária aos interesses do grupo (whether favorable or adverse), ela está revestida pelo manto da imutabilidade do seu comando em face dos direitos individuais e coletivos de todos os membros ausentes do grupo”. (GIDI, 2007, p. 272).
Dessarte, em se tratando de ações coletivas, somente poderá ser considerado legítimo o provimento jurisdicional construído pela ampla participação dos que serão por ele atingidos, motivo pelo qual é necessário oferecer às partes que litigam em processos individuais a oportunidade da suspensão ou não de suas demandas, para que observem ou não o que será decidido no processo coletivo.
5 DA FALTA DE LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA NO PROVIMENTO JURISDICIONAL DO RECURSO REPETITIVO
Considerando o processo coletivo no Estado Democrático de Direito e notadamente as mencionadas disposições do Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que os recursos repetitivos, conforme regulamentados, limitam e impedem o debate dos interessados, culminando em um provimento jurisdicional decorrente somente do entendimento do magistrado, desconsiderando a participação das partes que litigam em outras demandas que não a representativa da controvérsia, o que o torna ilegítimo.
Em razão da consagração da nova principiologia jurídico-constitucional, ocorrida com a promulgação da Constituição de 1988, o processo deve ser analisado sob uma perspectiva democrática e, por isso, é necessário romper com as teorias do processo que permitem a concepção da atividade jurisdicional como um poder do Estado. O rompimento deve ser estabelecido, principalmente, com a Teoria do Processo como Relação Jurídica, sistematizada por Büllow, que serviu de marco teórico para o atual Código de Processo Civil, segundo a qual o processo é uma relação jurídica entre autor, réu e juiz. Tal teoria foi trazida ao Brasil por Enrico Tulio Liebman, influenciando Alfredo Buzaid na elaboração do Código de Processo Civil de 1973 e sendo acompanhada pela intitulada Escola Paulista/Instrumentalista de Processo.
Para a doutrina instrumentalista, “o conceito de jurisdição não seria jurídico, mas, político, já que ela é expressão do poder do Estado” (GONÇALVES, 2012, p. 154), fazendo com que a atividade do juiz seja influenciada por seus próprios princípios ideológicos, construída unilateralmente por sua clarividência, em uma atividade solitária e solipsista, o que, obviamente não é compatível com a noção democrática de processo. Ou seja, ao tratar o processo como um instrumento de busca pela paz social e pela justiça, admite-se que o magistrado se torne a figura suprema da relação processual e atue de forma discricionária e arbitrária, desconsiderando a atuação das partes/participação popular, o que não se mostra consentâneo com a atual conjuntura constitucional.
O equívoco na referida doutrina estaria em sugerir que seja o processo instrumento da jurisdição, quando, na verdade, o correto parece ser o contrário, isto é, a jurisdição é o instrumento do processo.
Apesar da mencionada incompatibilidade, analisando detidamente o ordenamento jurídico brasileiro, notadamente o ora analisado art. 543-C do Código de Processo Civil, constata-se que tem ocorrido, cada vez mais, uma maior concentração de poder nas mãos do julgador, decorrente de uma grande preocupação com a celeridade processual, o que vem causando visível prejuízo ao efetivo exercício dos direitos fundamentais.
É a lição de Aroldo Plínio Gonçalves:
“A preocupação com o rápido andamento do processo, com a superação do estigma da morosidade da Justiça que prejudica o próprio direito de acesso ao Judiciário, porque esse direito é também o direito à resposta do Estado ao jurisdicionado, é compartilhada hoje por toda a doutrina do Direito Processual Civil. As propostas de novas categorias e de novas vias que abreviem o momento da decisão são particularmente voltadas para a economia e a celeridade como predicados essenciais da decisão justa, sobretudo quando a natureza dos interesses em jogo exige que os ritos sejam simplificados. Contudo, a economia e a celeridade não são incompatíveis com as garantias das partes, e a garantia constitucional do contraditório não permite que seja ele violado em nome do rápido andamento do processo.” (GONÇALVES, 2012, p. 124-125).
Conforme lição de Streck “não se pode olvidar a ‘tendência’ contemporânea (brasileira) de apostar no protagonismo judicial como uma das formas de concretizar direitos” (STRECK, 2010, p. 20), o que demonstra clara adesão do nosso processo atual à teoria do processo como relação jurídica, de forma incompatível com as diretrizes do Estado Democrático de Direito.
Tem-se, portanto, que não basta buscar um processo célere para que o processo seja efetivo, exige-se também a observância das garantias processuais fundamentais.
Por tais motivos, referida doutrina deve ser abandonada, uma vez que, no contexto pós-Constituição de 1988, sendo necessário compreender o processo segundo a Teoria Constitucionalista, cujos estudos remontam ao mexicano Hector Fix-Zamudio[1] e ao uruguaio Eduardo Couture[2], sendo trazida ao direito brasileiro por José Alfredo de Oliveira Baracho.
Ao apresentar esta teoria, Baracho afirma que “o direito processual tem linhagem constitucional, circunstância que dá maior significação à proteção efetiva dos direitos processuais, em todas as instâncias” (BARACHO, 2008, p. 14), ainda acrescentando que “o processo constitucional visa tutelar o princípio da supremacia constitucional, protegendo os direitos fundamentais” (BARACHO, 2008, p. 45).
Desse modo, tem-se que as normas processuais devem observar a supremacia da Constituição[3], uma vez que o processo é considerado uma importante garantia constitucional. Por isso, as normas processuais surgem consolidadas nos textos das Constituições do moderno Estado Democrático de Direito, “sufragando os direitos das pessoas obterem a função jurisdicional do Estado, segundo a metodologia normativa do processo constitucional” (BRÊTAS, 2010, p. 92).
Conforme informa Baracho, “o modelo constitucional do processo civil assenta-se no entendimento de que as normas e os princípios constitucionais resguardam o exercício da função jurisdicional” (BARACHO, 2008, p. 15), o que leva ao entendimento de que a jurisdição é direito fundamental, e, por consequência, seria inviável compreender o processo como mero instrumento de sua realização, devendo ser compreendido como forma de garantia não só deste, mas de todos os direitos fundamentais positivados pelo texto constitucional.
Em assim sendo, mediante a adoção da Teoria Constitucionalista do Processo, o provimento proferido no julgamento de feitos por amostragem é inválido, pela ausência de ampla participação das partes em sua construção e obrigatoriedade de observância nos demais feitos, além de não se prestar para tutelar, de forma adequada os direitos coletivos.
Nesse sentido, é a crítica de Dierle José Nunes, Humberto Theodoro e Alexandre Bahia:
“(…) o Tribunal Superior ao criar uma tese com base em alguns casos ‘pinçados’(como veremos), rejulgaria tão-somente estes, desprezando os argumentos dos demais recursos e dos ‘interessados não participantes’, algo que exige uma releitura de aplicação”. (NUNES, THEODORO JUNIOR, BAHIA, 2009, p. 19).
Dierle José Coelho Nunes prossegue criticando o julgamento por amostragem também em sua obra “Processo Jurisdicional Democrático”:
“Não se pode acreditar mais em uma justiça social definida antes do debate processual (tese já julgada), eis que só as peculiaridades do caso concreto (não de uma massa de casos), definidas endoprocessualmente, conseguem permitir, mediante o estabelecimento de um fluxo discursivo entre os interessados e o órgão decisor, a formação de um provimento adequado”. (NUNES, 2006, p. 143).
Nesse mesmo sentido, ensina Dierle José Nunes, Humberto Theodoro Junior e Alexandre Bahia, segundo os quais, diante “da existência de um litisconsórcio por afinidade entre os recorrentes, em caso de recursos com fundamento idêntico, a solução não poderia ser tal que violasse as garantias do devido processo constitucional.” (NUNES, BAHIA, THEODORO JUNIOR, 2009, p. 38).
No mesmo sentido, leciona Juliana Maria Mattos Ferreira:
“No Estado Democrático de Direito não se pode permitir que o juiz seja, solitariamente, o decisor que dará ao fato natureza individual ou coletiva. O pronunciamento jurisdicional hábil a incidir sobre a esfera dos bens de número indeterminado ou indeterminável de pessoas deverá ser construído pelos interessados, de forma participativa e isonômica, conforme assegura a Constituição Brasileira.” (FERREIRA, 2009, p. 185).
Portanto, é necessária a ampliação do debate acerca das questões de direito coletivo, em sede de recursos repetitivos, conforme propõe Vicente de Paula Maciel Junior, que afirma que “quanto maior a participação dos interessados na formação do mérito maior será a possibilidade de que esse processo represente o conflito coletivo de forma ampla”. (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 179).
E conclui:
“As ações coletivas não devem ser rígidas quanto à formação do mérito, porque se o fato abrange um número indeterminado de interessados, é natural que dentre eles existam manifestação de vontades em sentidos diferentes e muitas vezes contraditórios. A ação dos diversos interessados difusos deve conduzir a uma possibilidade de ‘ampliação flexível do mérito no processo coletivo’. Se assim não for, corre-se o risco de se transformar a decisão judicial do processo coletivo em uma visão unilateral e representativa apenas de uma parcela dos interessados difusos na questão litigiosa”. (MACIEL JUNIOR, 2006, p. 180).
Tendo em vista que o provimento jurisdicional “deverá ser o resultado lógico da atividade procedimental desenvolvida em torno das questões discutidas e dos argumentos produzidos em contraditório pelas partes” (BRÊTAS, 2010, p. 131), construído de forma participada, permitindo que as partes manifestem-se sobre os termos do processo, sendo tal questão resolvida de forma simples, por meio da observância do disposto nos artigos 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor.
Desse modo, tem-se que a o julgamento dos recursos repetitivos, conforme disposto na legislação regulamentadora, inobserva os direitos e garantias fundamentais constitucionais da ampla defesa e do contraditório, os quais “permitem a construção de um procedimento jurisdicional legitimo que possibilita um resgate discursivo das razões de cada decisão judicial, assegurando a correção da falibilidade do processo” (NUNES, 2006, p. 143).
O que ocorre, em tais julgamentos, é o indevido exercício da atividade jurisdicional, permitindo que os julgadores suprimam toda a participação dos interessados e atuem de forma solipsita e isolada, desconsiderando todo o debate e argumentação que poderiam ser produzidos pelas partes interessadas nos processos individuais em que litigam.
Assim, conforme entendimento de Lênio Streck, ocorre um retrocesso, “pelo qual se procura estabelecer uma regra, geral e universalizante, que permita um julgamento massivo de todos os processos pressupostos como iguais”, ignorando que os recursos “representam causas e não apenas teses jurídicas abstratas” (STRECK, 2009, p. 9).
Dessarte, alcança-se uma falsa segurança jurídica, garantida tão somente pela certeza de que os julgamentos semelhantes terão julgamentos idênticos, mas não se garante que a construção destes provimentos judiciais ocorrerá em observância ao devido processo constitucional. E, como já dito, não é o protagonismo judicial e, por consequência, decisões solipsistas que concretizam os direitos. Somente é possível falar em concretização de direitos e, por consequência, em adequada tutela dos direitos coletivos, por meio do devido processo constitucional.
Assim, apesar de correta a intenção e a função dos recursos repetitivos, equivocada sua regulamentação, vez que esta não pode ser aplicada em desconformidade com a disciplina constitucional principiológica (BRÊTAS, 2010, p. 35), o que retira do provimento sua legitimidade democrática.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tais considerações, inviável que, no Estado Democrático de Direito, admita-se que sejam criados e regulamentados procedimentos coletivos em desconformidade com o modelo constitucional do processo, como ocorre no caso dos Recursos Repetitivos, o que afasta a legitimidade e validade do provimento proferido, tendo em vista que não produzido sob a observância do devido processo e sem a efetiva participação das partes interessadas.
Em se tratando de processo coletivo, diante das diretrizes decorrentes do princípio do Estado Democrático de Direito, não cabem limitações à ampla participação das partes interessadas, o que configura clara ofensa aos direitos fundamentais à ampla defesa e contraditório, invalidando o provimento obtido.
Desse modo, verifica-se que a sistemática adotada no julgamento dos recursos repetitivos, apesar de incorporada ao direito brasileiro sob o argumento de celeridade e efetividade do provimento jurisdicional, encontra-se na contramão da garantia fundamental do devido processo legal e do modelo constitucional do processo.
Somente é possível considerar que uma sentença proferida em ação coletiva produza efeitos aplicáveis e oponíveis contra todos, caso permita a participação de todos os interessados, observando o devido processo legal, oportunizando, assim, o contraditório e a ampla defesa, garantindo a construção de um provimento participado.
Do mesmo modo, a discussão acerca da aplicação do entendimento paradigma firmado no julgamento de recursos repetitivos deve envolver as partes interessadas, não podendo o precedente ser aplicado sem que tenham oportunidade para se manifestar sobre a questão nos processos individuais, não podendo também, de forma alguma, obstar a propositura de futuras demandas individuais.
E também só é possível considerar legitimo um provimento jurisdicional quando construído com a participação de todos os seus interessados, o que é possível por meio da previsão contida nos artigos 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor, que autoriza a quem for parte em um processo individual optar por se sujeitar ou não aos efeitos do provimento produzido no processo coletivo.
Conclui-se, desse modo, que os Recursos Repetitivos, conforme determinação do artigo. 543- C, do Código de Processo Civil, encontra-se em total desconformidade com as técnicas procedimentais do processo coletivo, com a disciplina constitucional principiológica e com as diretrizes do Estado Democrático de Direito, e, por via de conseqüência, faz com que o Superior Tribunal de Justiça prossiga proferindo decisões totalmente ilegítimas, motivo por que necessária a revisitação deste instituto sob a ótica proposta. E, ainda, por tais motivos, o procedimento em análise afasta-se da atual concepção do processo, não logrando êxito em sua principal função de tutelar os direitos coletivos.
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