“Se há nela, aparentemente, qualquer coisa de paradoxo, o paradoxo não é meu: sou eu”. Fernando Pessoa [Carta a José Osório de Oliveira – 1932]
Atribui-se a Fernando Pessoa a criação da expressão “selo régio da sinceridade”. A origem do idiomatismo, sumariamente esclarecendo, estaria ligada à determinada resposta dada pelo poeta português, quando questionado sobre qual o livro de sua preferência, considerando todos aqueles que já havia lido.
Segundo consta, tendo em vista o grande número de livros percorridos e seus conseqüentes lúdicos encantamentos, Pessoa teria respondido: “o livro de minha preferência é aquele que primeiro vem à minha cabeça, porque assim a resposta possui o selo régio da sinceridade”.
Seria este assunto um delicioso exercício de rememoração poética – de um dos mais representativos poetas do século XX -, se não tivesse a referida narrativa sido levada para o âmbito jurídico, numa acalorada discussão sobre os infortúnios que assolam o sistema jurídico nacional.
Durante a discussão, que conteve razões prós e contras, concluiu-se, segundo o selo régio da sinceridade, que a principal razão da instabilidade jurídica brasileira reside na existência de evidentes conflitos legislativos.
Ora, não são novas as críticas a respeito do elevado número de reformas legislativas inadequadas, desarmonizadas e anacrônicas, as quais não levam em conta o sistema disposto pelo direito material, em relação à efetividade do direito processual.
Um dos atuais exemplos da existência de conflito legislativo está na abordagem do importante tema da penhora de quotas sociais de sociedades.
Do ponto de vista do direito material, dogmaticamente analisando, o Código Civil de 2002 , em seu artigo 1.026, dispõe:
“O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação. Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até noventa dias após aquela liquidação”.
Este dispositivo, do jeito que está, se ajouja a execução dos bens particulares do sócio em virtude de suas dívidas pessoais, contemplando a hipótese do credor proceder à execução dos lucros a que o sócio devedor teria direito na empresa.
O tema, portanto, impacta diretamente na segurança jurídica daqueles que empreendem e vivenciam o dia a dia jurídico negocial. Neste diapasão, o Código Civil desenvolveu uma metodologia organizada e racional para tratar dos mecanismos relativos à penhora de quotas, o que, diga-se de passagem, se fez de maneira exemplar – um dos raros acertos em termos de Direito de Empresa do Código Civil de 2002.
É de se ressaltar que por várias décadas o assunto acerca da ‘penhora de quotas’ foi alvo de interpretações dúbias e incertas, devido à particularidade que enquadra o instituto da penhora, em especial, no que concerne aos procedimentos processuais da adjudicação.
Em outras palavras, a problemática resume-se na possibilidade ou não de terceiro, estranho à sociedade, vir adentrar ao seu quadro societário, por razões de dívidas pessoais de sócio inadimplente.
A hipótese de inserir algum estranho no quadro de sociedade anteriormente constituída é oposta ao conceito caracterizador da vontade de se associar e de concorrer com parceiros o risco inerente à atividade negocial; quer dizer: ao possibilitar a hipótese de ingresso de estranho à sociedade, desconsidera-se a affectio societatis como um dos componentes dos fatores de produção que servem para organizar a empresa.
Decerto, o tema já estaria exaurido e não ensejaria maiores dúvidas se não fosse a confusão paradoxal perpetrada pelo sistema legal processual, após a modificação ocorrida no ano de 2006.
Vejamos: o Código de Processo Civil, alterado pela Lei nº 11.382, de 06.12.06, em seu artigo 685-A[1],. dispõe que no caso de penhora de quota, procedida por exeqüente alheio à sociedade, é lícito ao exeqüente, oferecer preço não inferior ao da avaliação, requerendo lhe sejam adjudicados os respectivos bens penhorados, desde que se assegure preferência aos sócios.
O diploma processual considerou possível a adjudicação das quotas do sócio devedor, por credor particular, estranho à sociedade, dando de ombros à fidelidade e à confiança que devem permear a relação entre os sócios. É bom lembrar que esses elementos obrigatoriamente servem de esteio à estrutura societária, cujo objetivo se fundamenta no lucro – aliás, não haveria outra razão para sua existência.
Destarte, apesar da regra consolidada pelo artigo 1.026 do Código Civil de 2002, o diploma Processual Civil, inadvertidamente, descartou a existência da affectio societatis permitindo a adjudicação de quotas de sócio, por exeqüente alheio à sociedade, a fim de conceder garantia de crédito, em virtude de dividas pessoais do sócio devedor.
O legislador não levou em consideração a “affectio societatis” ferindo de morte o importante elemento da relação societária e, via de conseqüência, da função social da empresa.
Evidencia-se, pois, que a formulação legislativa no Brasil é desorganizada e é elaborada por um corpo legislativo que desconhece sua realidade, encarando-a de modo contraditório.
Merece, aqui, mais uma vez, lembrar de Fernando Pessoa que ainda na busca pela resposta absolutamente sincera, consigna: “Se há nela, aparentemente, qualquer coisa de paradoxo, o paradoxo não é meu: sou eu”. Isto posto, significa asseverar: a regra (Lei), que deveria servir de segurança às relações sociais ou econômicas, apenas, e tão somente, fomenta o paradoxo de nossos tempos, numa evidente contradição lógica que leva `a insegurança jurídica.
Portanto, ao expor e evidenciar a deficiência da estrutura legislativa brasileira abre-se a oportunidade para o debate e consequentemente, para sua melhor operacionalidade, principalmente, no âmbito do direito empresarial, de acordo com as regras econômicas e de mercado.
Nesta toada, não é possível que se mantenha, por parte do Poder Judiciário, uma visão burocrática das relações societárias.
É premente a necessidade de se pensar a evolução do direito empresarial contemporâneo, num sistema legislativo dúbio e paradoxal.
A comunidade jurídica, destarte, tem de buscar uma união em torno da preservação de determinados institutos jurídicos essenciais ao ramo do direito empresarial, no que toca à penhora de quotas.
Enfim, tal preservação relaciona-se às raízes do desenvolvimento social e econômico da humanidade e à efetividade da segurança jurídica que se pretende alcançar.
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP; Professor de Direito Comercial da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Ex-Presidente da Junta Comercial do Estado de São Paulo, por 03 mandatos.
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