“Quem é que
te deu, ó carrasco, esse poder sobre mim ?” [1]
A doutrina penal tradicional justifica a
existência e necessidade da pena sob três teorias: absolutas, relativas e mistas.
As primeiras justificam a pena em si mesma, consistindo o castigo numa retribuição
ou compensação pelo mal praticado. As relativas, subdivididas em prevenção
geral e prevenção especial, atendem há outros fins posteriores a sua execução,
cujo cunho é desencorajar outros membros da comunidade da prática de condutas
lesivas (prevenção geral) e o desestímulo ao infrator para que não volte a
cometer crimes (prevenção especial). Por fim, as teorias mistas não acentuam a
retributividade e tampouco a prevenção negativa como fundamento, assinalando a
pena como prevenção positiva, a qual visa a obediência ao direito e o estrito
cumprimento da norma pelos membros da sociedade, a fim de assegurar a harmonia
e integridade social.
Todas elas, no entanto, padecem severas críticas,
que podem ser sintetizadas na aversão à legitimação e efetiva finalidade da
pena. Qual fonte legitimante da punição/pena ? Qual a utilidade, que finalidade
se busca na pena criminal? A umas, porque padecem de legitimidade na medida que
pretendem a retribuição (castigo = falta), ou seja, compensar o mau na mesma
proporção. Obviamente é situação impossível, posto que a pena haveria de ser
aplicada no quantum equivalente ao
delito cometido e isso nunca será atingido . Seria a própria reinstituição da
Lei de Talião – olho por olho; dente por dente. Ademais, nesta concepção, o
Estado assume literalmente o papel de carrasco e vingador das demandas e
ofensas particulares, não se comprometendo com a situação de seus membros. Já
os defeitos da teoria da prevenção geral negativa seriam no sentido de que a
ameaça, mediante normas penais, não evita a prática de delitos ou a formação de
conflitos; ao contrário, eles se multiplicam e se sofisticaram. O efeito
dissuasório não se comprovou, estando, ao contrário, demonstrado que a aparição
do delito não está relacionada com o número de pessoas punidas, ou com a
severidade das penas impostas.
O ponto fulcral da gravidade imbutida na idéia de
prevenção geral negativa, é que esta, como a proposta de prevenção geral
positiva, encerra a consagração da alienação da subjetividade e da centralidade
do homem em benefício do sistema, deslocando o homem de sua posição de sujeito e fim de seu próprio mundo, para
torná-lo objeto de abstrações
normativas e instrumento de funções sociais. O que nos remete ao vício lógico
de ao tentar prevenir danos contra determinado bem (a vida humana, por exemplo)
acaba-se por desvalorizar tal bem. Mesmo a idéia da prevenção especial, cujo
fim é a ressocialização do infrator, encontra repúdio, já que a tônica do nosso
sistema é a prisão. É um contra-senso então, buscar a reinserção do infrator no
convívio social com a segregação de sua liberdade e seu afastamento deste meio.
Com efeito, um mínimo de raciocínio lógico repudia a idéia de se almejar
reintegrar alguém à sociedade, afastando-o dela. Contudo, se a pena, de fato, é
um mal necessário, faz-se premente que se lhe dê uma concepção mais humana,
dirigindo-se maior atenção ao condenado, assegurando-lhe o exercício efetivo
dos direitos que lhe são inerentes, propiciando, destarte, sua preparação para
o retorno à vida na sociedade.
A pena moderna, posto que a civilização atual não
pode formalmente admitir que sofrimento e miséria sejam objetivos máximos, deve
reeducar o delinqüente. Mas como reeducar se o seu escopo parece sucumbir ante
o quadro dantesco de nossas instituições. O problema é muito mais político e
social que jurídico. Então, a pergunta atual da ciência penal é como combater a
criminalidade moderna. Entretanto, isso é apenas um aspecto do problema. Não se
deve esquecer que a política criminal e o Direito Penal têm um aspecto
normativo, o aspecto da Justiça, o equilíbrio da proteção jurídica dos
atingidos pelo processo penal. O pensamento ainda reinante é de tom
militarista, quase bélico (paradigma repetido pelos meios de comunicação e até
estudiosos), pensando apenas em termos de luta, de combate, de vitória, e o se
Direito Penal está armado como instrumento de luta, de combate à criminalidade.
Sucede que, é ilusório e hipócrita pretender-se
abarcar todas as ofensas aos direitos num ordenamento penal, ainda mais nos
dias de hoje, e todos são cientes disso. Destarte, necessário que se faça uma
opção de modo a restringir a ação do Direito Penal às situações onde seja
imprescindível sua atuação.
Tenho dito e repetido não ser o Direito Penal
panacéia para o fenômeno social do crime, vide acerca disso, nossos trabalhos[2]
divulgados nesta mesma Revista (e noutros meios). O crime é fenomeno político e
social, só depois, e bem depois, é que é jurídico (menor ainda é relevância
policial, enquanto prevenção). Dentre outras, o crime deita raízes no solo
fértil da desigualdade social, da miséria e do descaso do Estado e das elites.
A reabilitação do delinqüente não será conseguida a partir dos depósitos
humanos que conhecemos e mantemos – mais por vingança, que por razões reeducativas
– onde tudo se degrada e os valores se misturam e se corrompem formando um
outro homem no apenado, mais cruel, mais nocivo e distante do meio social
sadio. Neste modelo multimilenar a pena infalível seria a privativa de
liberdade, como se a segregação da liberdade pudesse atender propósitos
reeducativos. Porém o tal modelo esgotou-se nas suas próprias mazela, quer
porque não consegue ressocializar o infrator, quer porque não satisfaz, via de
regra os interesses da vítima, quer porque é extremamente selecionador, seja em
relação à vítima, e principalmente ao infrator; quer porque é extremamente
oneroso e ofensivo aos princípios fundamentais da pessoa humana, etc.
Diante dessas incongruências lógica e operativas,
alguns, vêm de buscar solução para o problema da delinqüência nos dias coevos,
oferecendo para debate sugestão tão horrenda quanto o próprio crime: a pena de
morte. Entendemos que a pena de morte feri o pacto social. Ora, se o homicídio
é repudiado pelos contratantes, não pode o corpo depositário arvora-se em
praticá-lo e agir contra as disposições do trato social. Como poderia a
sociedade atual ter a morte provocada como valor de sua existência. A pena
capital é mais uma demonstração de impotência política frente a crescente
miséria e conseqüentemente a delinqüência. Certamente prevendo as paixões
sociais, o Poder Constituinte de 88, mostrando-se sensível à Declaração
Universal dos Direitos dos Homens, considerou o valor da vida como Cláusula
Pétrea, o que torna impossível, juridicamente, qualquer emenda ou lei que tente
instituir a pena de morte.
São vários os argumentos decisivos contra a pena
de morte. Com efeito, só mesmo uma concepção supra-individualista[3]
do Direito pode admitir a pena de morte, porque só uma concepção dessa natureza
pode reconhecer ao Estado um direito de vida e de morte sobre os indivíduos. “Jamais qualquer poder humano que não se
sentir em si mesmo legítimo na sua origem transcendente, poderá ter força
bastante para manobrar a espada da justiça”, bem o disse Bismarck em belo
discurso datado de 01/03/1870. Todavia, é no relatório que antecede o Código
Penal fascista onde se achar a mais vigorosa argumentação pró-pena de morte:
“uma tal reforma representa um sinal de modificação operada no espírito da
nação italiana, da virilidade e da força readquiridas pelo nosso povo, bem como
da total libertação da nossa cultura jurídica e política da influência de
estranhas ideologias com as quais se achava até
aqui ligada a abolição da pena de morte”. Tais estranhas ideologias abominadas
pelos fascista são expressamente indicadas: “as idéias individualistas que
triunfaram para além dos alpes” e o “erro da afirmação Kantiana de que o
indivíduo, como fim de si mesmo, nunca poderá ser degradado à condição de
meio”. Esse discurso fascista culmina – após elevar o Estado ao status de razão prática da própria vida
humana – por proclamar a mais abjeta capitis
deminutio do homem: “não sendo o indivíduo (o homem) mais do que um
elemento que infinitamente efêmero do organismo social…”
Outro argumento a favor da pena de morte tem sido
o chamado “direito ao suicídio” que estaria a explicar o mesmo direito de vida
e de morte conferido ao Estado, mas quem confere ao Estado direito sobre sua
própria vida, necessariamente tem já esse direito; o que me parece um tenebroso
engano lógico. Sucede que a titularidade do direito à vida não traz, por certo,
o atributo da disponibilidade: eu tenho direito natural e universal a minha
vida, mas não tenho o poder de dispor dela. É que a vida – qualquer vida, mas
sobretudo humana – enquanto valor máximo, transcende à esfera da decidibilidade
humana, posto que pertence ao âmbito das razões primeira do universo, da lei
divina que é eterna, porque eternamente perfeita (ao contrário da lei humana
muda acompanhado o progresso humano). Por isso nem o suicida, nem o condenado à
morte podem transparecer qualquer consentimento (racional) na extinção de suas
vidas. O direito subjetivo originário do homem à legitimas defesa, também não
serve de arrimo aos que defendem a pena capital, já porque aquele direito visa
tão somente repelir agressão injusta, jamais a extinção da vida do agressor
(daí há a punição ao excesso de legitima defesa); já porque há uma forte
distinção entre as hipóteses da legitima defesa e da pena de morte: ali a pessoa
jamais espera morrer, aqui, ao contrário, o condenado sabe que morrerá por ato
deliberado de um semelhante.
Afora os argumentos filosóficos e doutrinários, a
pena de morte esbarra na irreversibilidade do mal do erro judiciário, obstáculo
intransponível, eis que torna a sanção irreparável. O assassinato legal pelo Estado é negação do Estado Democrático, cuja
primeira função é garantir a vida e a liberdade. Há, pois, insuperável
contradição axiológica nas propostas de adoção de pena de morte.
Controlar melhor a delinqüência significa forte
investimento no homem, em especial, na sua educação (remeto o leitor ao nossos
ensaio “Paideia – um projeto
urgente para educação…”, divulgado também nesta Revista (cf. nº 44, ag/2000),
na sua saúde, melhorando-se a distribuição de renda e, somente após isso, é que
se deve ter preocupações com o aprimoramento do aparato policial e da justiça
criminal (eis que agem a posteriori).
Na verdade, não é a pena de morte que vai
resolver o problema da criminalidade e, no limiar do século XXI, não se deve
retroagir a uma idéia que cresceu nas fogueiras medievais e nos regimes
ditatoriais e é rejeitada pelas nossas tradições humanistas. Ainda que saiba
que no próprio Estado do Vaticano, vigora a pena de morte, estabelecida pelos
tratados de Latrão, firmados pelo cardeal Pacelli, mais tarde Pio XII; que
Tomás de Aquino, por sua vez, achava “louvável e salutar, para a
conservação do bem comum, pôr à morte aquele que se tornar perigoso para a
comunidade e causa de perdição para ela”. (Suma Teológica, Questão LXIV, Art.11.), hoje são tais crenças
estão vencidas pelos tradicionais e pelas modernas ideologias humanistas. O que
se busca é acabar com o crime e não com o criminoso; extinguir-se o vício e não
o viciado, debelar o fogo que consome a floresta, mas sem derrubar as arvores,
é claro…
Ademais, razões teológicas reforçam negação da
pena de morte como meio moralmente licito, eis que em flagrante contradição com
a ordenação maior: Não matarás (Exodo, 20:13).
Há ainda, a considerar que na chamada lei moisaica, evidenciam-se dois aspectos
distintos: a lei de Deus, promulgada no monte Sinai, e a lei humana,
disciplinar, decretada por Moisés. A primeira é invariável; a segunda,
modificável com o tempo, segundo os costumes e a desenvolvimento moral e
cultural do povo. Argumenta-se que, no tempo de Moisés, houve necessidade de
leis drásticas sem as quais seria muito difícil, senão impossível, impor a
ordem numa comunidade inculta e rebelde. Não se pode dizer que a pena de morte,
naquela época, fosse plenamente justificável; mas era, pelo menos,
compreensível.
A Humanidade, ao afastar-se do seu estado de
barbaria, foi paulatinamente encetando a escalada evolutiva que a conduzirá, um
dia, ao reino da Paz e da Felicidade
É notório que a verdadeira prevenção da
criminalidade não se faz com o aumento da severidade das penas, introdução de
novas figuras típicas, redução de idade penal, rigorismo na execução, e outros
meios que claramente não têm logrado êxito, afora ofensas aos princípios dos direitos
universais da pessoa humana. Por outro lado, a tendência internacional, hoje,
aponta no rumo da intervenção mínima, ideal expresso nas “Regras de
Tóquio”[4],
contrapondo ao modelo clássico que se ultrapassado e sempre se mostrou
ineficaz.
Diante da necessidade de um novo pensar, surgem
idéias variadas, condensadas todavia em duas correntes doutrinárias que ainda
assumem posição de vanguarda, principalmente àquela que defende a teoria do
abolicionismo questionando a legitimidade do Direito Penal, sobretudo quando
vislumbra-o apenas como instrumento de massificação e domínio, opondo-se aos
direitos fundamentais do ser humano.
É melhor prevenir os crimes do que ter de
puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que
repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos
homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se
lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida. “Quereis prevenir os crimes ? Fazei leis
simples e claras; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para defendê-las,
sem que a minoria de que falamos se preocupe contentemente em destruí-las. Quereis prevenir os crimes ? Marche a liberdade
acompanhada das luzes. Se as ciências produzem alguns males, é quando estão
pouco difundidas; mas, à medida que se estendem, as vantagens que trazem se
tornam maiores”. (Cf. Beccarias, C. “Uber Verbrenchen und Strafen”).
Em verdade, reduzir a idade
penal ou adotar a pena de morte não é senão esconder da sociedade os reais
problemas da criminalidade, que transitam pela falta de políticas sociais
básicas e dignas para boa parte dos população. É claro, que existem crimes de
ricos e “educados”, ocorre que tais delitos são estatisticamente de menor
gravidade no contexto geral (embora em casos concretos de grande dano
econômico-social ao povo).
Acontece que o Direito penal, não só no Brasil,
mas em todo o mundo civilizado, está pautado na Escola clássica, que atribui ao
Estado a função de resolver toda e qualquer contenda, de forma indisponível. De
outro lado, sempre essa Escola viu na pena, obrigação dada àquele que ofende
seus ordenamentos jurídicos, um fim único de retribuição, sem se preocupar e
ssencialmente com a ressocialização do infrator ou mesmo com os próprios interesses
das vítimas.
Uma verdadeira política criminal alternativa,
todavia, precisa trazer implícita a transformação social que viabilize o
desenvolvimento do homem. Faz-se, também, mister a descriminalização de
inúmeros comportamentos de menor potencial ofensivo. Estender e reforçar a
tutela penal dos interesses mais ou menos difusos e coletivos, invertendo
radicalmente a hierarquia atual dos bens tutelados, de forma a responder às
verdadeiras necessidades desse homem, centro e motor de nossos interesses.
Ora, o castigo é proporcional ao dano causado,
pelo criminoso, à sociedade e se assim é deve-se ter em mente, então, que o
exemplo deletério do crime é tão mais funesto quão maior o grau social do
criminoso. Sucede, pois, que a pena de morte, já por igualar, bestialmente,
todos, é portanto injusta e racionalmente
incorreta. Por outro lado, nos países onde a Justiça penal, (do aparato
polícia ao derradeiro grau jurisdicional) é expressão, pelo menos, da verdade
formal, onde os aportes tecnológicos, financeiros e humanos são generosos,
ainda assim, ali a pena de morte é essencialmente desaconselhável; entre nós,
no entanto, já perigosa.
Destarte, o Direito penal que se vislumbra no
horizonte, é o da intervenção mínima, onde o Estado deve reduzir o quanto possível
sua ação na solução dos conflitos. Neste contexto, propõe-se, em suma, a
descriminalização, a despenalização e a desinstitucionalização do conflito,
restando ao Estado aquilo que seja efetivamente importante enquanto controle
dos fatores criminógenos. (18/07/02)
[1] Palavras de Margarida in Fausto de Goethe (Wer hat dir, Henker, diese Macht über mich
gegeben?)
[2]
Cf. Ensaio intitulado “Violência e crime, sociedade e Estado”
publicado na Revistas Informação Legislativa do Senado Federal, nº 136,
ano 34, out./dez.1997 e em várias outras revistas especializadas
[3] Individualismo é a corrente de
pensamento que evolui desde o séc. XIII (Nominalismo escolástico, passando pelo
Renascentismo e raiando na Declaração dos Direitos do Homem de 1789/França) até
nosso dias e que tem por essência a consideração de que o homem é valor máximo
entre os demais valores da vida humana.
[4] E
é justamente pelo desassossego internacional quanto ao novo papel do Direito
penal que a ONU, através da Resolução nº 45/110, de 14/12/90, sugestiona a
substituição das penas privativas de liberdade por outras modalidades
sancionadoras. Esta Resolução, edita as “Regras Mínimas das Nações Unidas
para Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade”, que passaram a
ser denominadas, simplesmente, como “As Regras de Tóquio”, em alusão
à cidade onde realizou-se a Assembléia da ONU quando de sua aprovação.
advogado militante há mais de 27 anos e professor de Direito há mais 25 anos. Já lecionou na UnB e UDF. Ex-Diretor de Faculdade de Direito em Brasília. Atualmente leciona na Universidade Católica de Brasília-UCB. Foi assessor de Ministros da Justiça; do Min. da Desburocratizarão/P. Rep. Secret. Nacional de Dir. Consumidor. Autor de “Relações de Consumo” (04 v.); “O Cidadão e Consumidor” (co-autor); “Comentários ao Código Defesa do Consumidor, coord. Prof. Cretela Júnior (Ed.Forense) e “Legislação do Advogado”, MJ, 1985. Autor de “Lutando pelo Direito” (Consulex, 2002); e de “Direito e Segurança Pública – juridicidade operacional da Polícia” (Consulex, agosto/2003) e ainda de “Teoria Geral do Direito” (Forense, mai/04).
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