Um sinal de pontuação tem
tumultuado a concorrência sucessória. Talvez a novidade do instituto, talvez a
difícil redação do inc. I do art. 1829 do novo Código Civil é que não tem
permitido a ninguém atentar para um fato notório: existe um ponto-e-vírgula no
artigo dividindo as hipóteses que afastam o direito à concorrência do cônjuge
com os filhos segundo o regime de bens do casamento.
A apressada leitura desse
dispositivo tem levado todos os que buscam na lei uma resposta justa a um
estado de verdadeira perplexidade e de certa indignação, flagrando uma aparente
injustiça quando na sucessão existem bens e filhos anteriores ao casamento.
Guindar o cônjuge a herdeiro
concorrendo com os que eram os únicos beneficiários da herança – os filhos –
foi a solução encontrada pelo legislador para corrigir uma distorção legal.
Segundo justifica Miguel Reale, em artigo publicado no Estado de São Paulo, no
dia 12 de abril, intitulado O Cônjuge no novo Código Civil, o cônjuge
foi elevado à categoria de herdeiro concorrente porque, com o advento da Lei do
Divórcio, o regime da comunhão de bens passou a ser parcial, e havia o risco de
o cônjuge sobrevivente, sobretudo quando desprovido de recursos, nada herdar
no tocante aos bens particulares do falecido, cabendo a herança por inteiro aos
descendentes e aos ascendentes.
Com tal esclarecimento se faz
evidente a intenção do legislador: permitir que um cônjuge receba parte dos
bens particulares do outro, preocupação que não existia quando o regime legal
era o da comunhão universal de bens, pois a meação de todo o acervo patrimonial
ficava com o viúvo. Desvendada a natureza do instituto, fica mais fácil
entender o porquê o direito à concorrência está condicionado ao regime de bens
do casamento.
Voltando ao texto legal, é certo
que o estado condominial entre cônjuge e descendentes ou ascendentes é a regra,
apontando o inc. I as hipóteses em que, tendo o autor da herança filhos, não
surge o direito à concorrência.
Em um primeiro momento o
legislador ressalva duas exceções. Fazendo uso da expressão “salvo se” exclui a
concorrência quando o regime do casamento é o da comunhão universal e quando o
regime é o da separação obrigatória. Ao depois, é usado o sinal de pontuação
ponto-e-vírgula, que tem por finalidade estabelecer um seccionamento entre duas
idéias. Assim, imperioso reconhecer que a parte final da norma regula o
direito concorrente quando o regime é o
da comunhão parcial. Aqui abre a lei duas hipóteses, a depender da existência
ou não de bens particulares. De forma clara diz o texto: no regime da comunhão
parcial há a concorrência “se” o autor da herança não houver deixado bens
particulares. A contrario sensu, se deixou bens exclusivos, o cônjuge
não concorrerá com os descendentes.
Outra não pode ser a leitura deste
artigo. Não há como “transportar” para o momento em que é tratado o regime da
comunhão parcial a expressão “salvo se” utilizada exclusivamente para excluir a
concorrência nas duas primeiras modalidades, ou seja, no regime da comunhão e
no da separação legal. Não existe dupla negativa no dispositivo legal, pois na
parte final – após o ponto-e-vírgula – passa a lei a tratar de hipótese
diversa, ou seja, o regime da comunhão parcial, oportunidade em que é feita a
distinção quanto a existência ou não de bens particulares. Essa diferenciação
nem cabe nos regimes antecedentes, daí a divisão levada a efeito por meio do
ponto-e-vírgula.
Imperiosa a correta compreensão da
norma legal, até porque, ao colocar “o ponto na vírgula” o legislador visou,
exatamente, afastar a perplexidade que tem assaltado todos os intérpretes do
novo Código.
Quando o regime é o da comunhão
parcial e não existem bens particulares, significa que todo o acervo
hereditário foi adquirido depois do casamento, ocorrendo a presunção da mútua
colaboração em sua formação, o que torna razoável que o cônjuge, além da
meação, concorra com os filhos na herança. No entanto, quando há bens
amealhados antes do casamento, nada justifica que participe o cônjuge desse
acervo. Tal não se coaduna com a natureza do regime da comunhão parcial, sendo
descabido que venha o cônjuge sobrevivente a herdar parte do patrimônio quando
da morte do par.
Sobretudo quando o autor da herança tem filhos anteriores ao casamento,
não há como reconhecer a possibilidade de o cônjuge sobrevivente, que não é
genitor dos herdeiros, ficar com parte do patrimônio que era exclusivo do de
cujus. Essa não é, e nunca foi, a intenção do legislador. Não está na lei.
Urge que se deixe de ler o que não está escrito, sob pena de chegar a
conclusões distorcidas e consagrar injustiças.
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
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