“Aquilo que, no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto” (Hipócrates, 460-351 a.C.).
O conceito de segredo médico[1], imortalizado no Juramento de Hipócrates é pressuposto lógico para a análise da questão, que gira em torno do fato de familiares de sentenciado efetuarem pedido de acesso ao prontuário médico do preso no período em que o mesmo se encontra internado em unidade médico-penal.
O sigilo médico, na lição de Gérson Zafalon Martins, (extraída do texto Sigilo Médico apresentado no Simpósio Medicina e Direito e transcrito no Jornal Vascular Brasileiro, 2003, vol. 2, No 3, página 260) é “a garantia do paciente de que tudo o que disser ao médico e tudo que o médico nele vislumbrar, seja pelo exame físico ou pelos exames complementares, bem como pela terapêutica instituída, não será exposto”.
Na mesma linha de pensamento, para Genival Veloso de França (in Comentários ao Código de Ética Médica, 5ª edição, editora Guanabar Koogan, página 164), é “o silêncio que o profissional da medicina está obrigado a manter sobre fatos de que tomou consciência no exercício de seu mister, e que não seja imperativo revelar”.
É de extrema importância que fique claro que tal sigilo, ao contrário do que possa inicialmente parecer, visa primordialmente à proteção do paciente, e não do médico. Léo Meyer Coutinho, após explanar pensamento semelhante, continua: “Se aquele (o paciente) não tivesse essa confiança, não diria ao médico fatos que nem sequer aos mais íntimos ele revela[2]”. Essa confiança, essencial no relacionamento médico/paciente, foi muito bem captada por Hoirisch, quando assinala que “o paciente busca, na relação com seu médico, não só um líder (pai) que o oriente, mas também uma mãe que dele cuide e um mágico com poderes divinos[3]”.
Vários são os dispositivos legais que regulam a matéria a fim de proteger a esfera mais íntima do cidadão. A própria Constituição da República, em seu art. 5º, X, garante como direito fundamental a inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano moral ou material decorrente de sua violação. O Código Penal dispõe sobre o sigilo profissional em seus arts. 153 e 154 e o Código de Ética Médica nos arts. 102 a 109.
Entretanto, essa regra do segredo médico não pode se aplicar àquele que é o maior interessado: o paciente. Doutrina e jurisprudência são uníssonas em admitir esse fato. Genival Veloso de França argumenta que é propriedade do paciente a disponibilidade permanente das informações que possam ser objeto da necessidade de ordem social, médica ou jurídica . William Saad Hossne[4], por sua vez, aduz que o paciente tem o direito de poder utilizar todos os dados do prontuário em função do seu interesse, e o médico não pode considerar-se dono de tais informações, impedindo que o paciente as utilize na sua conveniência.
Adentrando no ponto específico do acesso ao prontuário, o artigo 70 do Código de Ética Médica considera infração ética:
“Art. 70 – Negar ao paciente acesso a seu prontuário médico, ficha clínica ou similar, bem como deixar de dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionar riscos para o paciente ou para terceiros”.
Entende-se por prontuário médico o registro da anamnese do paciente, e todo acervo documental padronizado, ordenado e conciso, referente ao registro dos cuidados médicos prestados e aos documentos anexos.
Não tem se mostrado problemático o tema quando o pedido de vista do prontuário médico parte do próprio paciente.
“STJ – REsp 540048 / RS ; RECURSO ESPECIAL 2003/0061038-6
De acordo com o CFM, no Parecer 04/91, a obrigação de guarda do segredo médico não é absoluta, podendo ser quebrada nos casos de justa causa, dever legal e autorização expressa do paciente, além de outras hipóteses previstas por lei.
O fato de o paciente encontrar-se preso não modifica de maneira alguma tal situação. Pelo art. 38 do Código Penal, “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”. A Lei de Execuções Penais vai mais longe, e explicitamente inclui o preso submetido a medida de segurança, acabando com quaisquer possíveis dúvidas.
“Art. 3º da Lei 7.210/84: Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.
A Assembléia Geral da ONU por sua vez aprovou um Conjunto de Princípios para a Proteção de todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, no qual reza no art. 28 que o acesso aos registros médicos deve ser garantido às pessoas detidas ou presas.
Expurgando possíveis e eventuais dúvidas, a Resolução 1.598/00 do CFM esclarece que:
“Art. 14 – Os pacientes psiquiátricos têm direito de acesso às informações a si concernentes, inclusive as do prontuário, desde que tal fato não cause dano a si próprio ou a outrem”.
Ao preso acometido por alguma incapacidade é aplicada a sanção da Medida de Segurança, consistente em internação ou tratamento ambulatorial, e que tem por objetivo impedir que o criminoso de alta periculosidade venha a delinqüir novamente. Tal pena não tem, contudo, o condão de suprimir direitos do apenado não afetados pelo disposto na sentença apenas pelo fato de ser considerado o mesmo incapaz. Tem o preso psiquiátrico os mesmos direitos que o preso comum, com a diferença de que para exercê-los devidamente necessita de representação.
No direito brasileiro não existe a incapacidade de direito, já que todos são capazes de adquiri-los com o nascimento (art. 1º do Código Civil). O que existe é a incapacidade de fato, consistente na restrição ao exercício de alguns atos da vida civil. Essa incapacidade pode ser suprida pela representação e pela assistência. Na representação, o incapaz não chega sequer a participar do ato, que é praticado somente por seu representante. Na assistência, por sua vez, reconhece-se ao incapaz certo discernimento, e, portanto, é ele quem pratica o ato, mas sempre assistido por seu representante.
Portanto, desde que devidamente assistido ou representado, pode o preso internado em Hospital Psiquiátrico e Judiciário exercer normalmente seus direitos, dentre os quais pedir vista de seu Prontuário Médico ou mesmo autorizar sua exibição a familiares. O que não se afiguraria possível seria o fornecimento desse prontuário à família sem a autorização do paciente ou seu representante.
Assistente Jurídico do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais
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